Estudo mostra que operações policiais afetaram diretamente 74% das escolas do Rio
Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) mostrou os impactos causados pelas ações no entorno das instituições e destacou o impacto acadêmico na vida das crianças
Algumas marcas da violência no Rio de Janeiro não são tão facilmente mensuradas como aquelas cravadas nas paredes. É o caso dos impactos na educação das crianças em áreas consideradas de risco, em que costumeiramente ocorrem operações policiais e tiroteios.
Um estudo inédito, divulgado nesta segunda-feira (7), pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), com base em dados do Instituto Fogo Cruzado, mostrou que 74% das escolas da rede municipal de ensino do Rio foram afetadas por pelo menos um tiroteio com a presença de agentes de segurança em 2019, em nome da chamada “guerra às drogas”.
O levantamento apontou que 57% das escolas sofreram com ao menos 10 episódios ao longo de 2019, e 11% registraram mais de 30 casos. Foi observado também que quatro escolas da rede municipal de ensino concentraram 95 tiroteios no próprio entorno em apenas um ano letivo. Para além destes números, o estudo buscou medir os impactos práticos no desenvolvimento de crianças e adolescentes em decorrência dessa exposição à violência.
O período de análise escolhido foi o de 2019, por ter sido um ano ainda sem os impactos da pandemia da Covid-19 na rede de ensino. De acordo com o estudo, em escolas com entorno violento (seis operações policiais ou mais durante o ano em questão), os alunos sofreram uma perda de aproximadamente 64% do aprendizado esperado em língua portuguesa no 5º ano. Ou seja, mais da metade do que seria aprendido durante todo o ano letivo. É uma redução de 7,2 pontos no Sistema de Avaliação do Ensino Básico (Saeb).
Uma das autoras do estudo, Mariana Siracusa, socióloga e pesquisadora do CESeC, disse já ser esperado que essas operações tivessem um impacto prático no aprendizado dos alunos. Porém, afirmou que o resultado obtido foi negativamente surpreendente.
“Infelizmente, já nos acostumamos com essa rotina de medo, confronto e de tiroteios. Já esperava que teria algum impacto na educação. As escolas fecham durante essas ações, os professores e alunos muitas vezes são impedidos de chegar às escolas e, mesmo quando elas já estão dentro dos estabelecimentos de ensino, são obrigadas a paralisarem as atividades escolares. Mas nós não prevíamos que seria um impacto tão grande no desempenho escolar, como esse observado”, ressaltou Siracusa.
A perda é ainda maior em matemática. Pouco mais de 80% no aprendizado, ou de 9,2 pontos no Saeb. Segundo os pesquisadores do levantamento, “todo o aprendizado esperado nessa etapa de ensino fica prejudicado em função da exposição a operações policiais frequentes no entorno da escola”.
A socióloga explica que o prejuízo, em relação à matemática, tende a ser maior porque é uma disciplina que dificilmente é desenvolvida fora da escola nesta idade.
“O aprendizado em matemática depende mais da escola nessa primeira infância. No português, muitas vezes já há a familiaridade da leitura e da escrita. Na matemática, é mais difícil, pois depende quase que unicamente da escolarização, por isso esse efeito é maior”, explicou.
Efeitos na renda futura
Esse prejuízo no aprendizado tem outros impactos como, por exemplo, na renda prevista destes jovens. Foi estimado que os rendimentos anuais acumulados por um trabalhador médio da capital fluminense ao longo do ciclo produtivo (16 aos 65 anos) são de R$ 617.440,00 (em valores de 2019).
Porém, para um aluno que tenha estudado, quando criança, numa escola da rede pública municipal da cidade, sujeita à violência da guerra às drogas no entorno, a perda desse rendimento é de R$ 24.698,00. O valor seria o equivalente a um “imposto” de 4% a ser pago por uma pessoa sobre os rendimentos de toda a vida produtiva.
O número é significativo, visto que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 29,2% dos brasileiros sobreviviam, em 2019, com renda inferior ou igual a meio salário-mínimo para cada indivíduo. O salário-mínimo, em dezembro daquele ano (R$ 998,00), comprava aproximadamente, segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), 1,9 cestas básicas no estado do Rio de Janeiro (R$ 516,91 cada), o que compromete 51,8% do salário bruto.
Violência racial
O levantamento chegou à conclusão de que, quanto maior a frequência de tiroteios nos arredores de uma escola, maior a quantidade de alunos negros estudando nesta instituição. Para Tainara Cardoso, psicóloga e coordenadora técnica do Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil Pequeno Hans, os resultados do estudo elucidam e ratificam um cotidiano já comum no Brasil, ainda muito marcado pela questão racial.
“Temos uma demografia muito marcada na pele. É um sofrimento marcado por uma pele, por um termômetro racial, algo que faz parte da história neste país, e que é uma história marcada por dor, por sangue e por interrupções. Estamos dizendo que essas crianças precisam ser interrompidas. Não somente ao nível intelectual, em relação a sua ida à escola, mas a sua possibilidade e ao direito de fazer uma interação social, de criar redes socioafetivas. Estamos impossibilitando que nossas crianças possam ter esses direitos básicos de construção de qualquer ser humano”, explica.
Segundo ela, o racismo é um fator determinante dessa não escolaridade de crianças e adolescentes. Ela ressalta que, muitas vezes, essas crianças que convivem com a pobreza precisam trabalhar de forma precoce para ajudar em casa ou até mesmo assumir as responsabilidades do lar. O que justifica, em parte, o alto índice de evasão. Para ela, a educação pública é pautada em violência.
“Há um pensamento social que entende que alguns corpos são mais passíveis, suscetíveis e expostos a uma violência, a um não cuidado. E as crianças já são precocemente atingidas por essa lógica de exclusão e truculência. É uma dinâmica social cíclica. O racismo, por ser um fator determinante, está ali permeando todas essas relações”, pontuou.
Tainara, que também é Mestre em Subjetividade, Política e Exclusão Social, explica ainda que, quanto mais violência essas crianças e adolescentes presenciarem, especialmente no ambiente escolar, mais inseridas neste ciclo de violência elas estarão.
“Quando essas crianças são alvejadas pelas formas mais truculentas possíveis, seja de forma letal ou seja de forma subjetiva, que é estar em exposição, com medo, com temor a esses conflitos armados, estamos educando essas crianças para a violência. No final, temos uma política social de insegurança muito grande para essa população vulnerabilizada, sem dizer para essas pessoas que há uma convocação do próprio estado, da própria política pública e social, para que essas crianças e adolescentes sejam produtoras dessa violência. Por isso não é incomum que essa população que foi exposta, esteja depois na linha de frente, assumindo a violência num confronto, com uma arma na mão, por exemplo”, concluiu.
Guerra às drogas
Conforme dados do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF), que também serviu como base na pesquisa do CESeC, a política de combate às drogas no Rio de Janeiro tem sido ineficaz e não tem cumprido o que ela mesma promete, que é a redução da circulação, da venda e o uso destas substâncias ilícitas. O estudo concluiu que, de 2007 a 2020, as operações policiais realizadas no estado tiveram resultados insignificantes ou catastróficos.
O relatório indicou que apenas 1,7% das incursões poderiam ser classificadas como eficientes, 12,5% deveriam ser consideradas desastrosas; 32,4%, ineficientes; 39,9%, pouco eficientes e 13,4%, só razoavelmente eficientes. Os pesquisadores da UFF também ressaltaram que “a principal justificativa para essas operações policiais na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (45% do total) é a repressão ao tráfico de armas e drogas”.
Para Mariana Siracusa, a política de segurança pública adotada pelos últimos governos estaduais tem sido pautada pelo enfrentamento e não pela inteligência.
“Essa política de segurança pública não preza muito pela inteligência, mas, sim, pelo enfrentamento bélico. E ela tem se mostrado ineficaz. Quando não mata crianças e jovens, como foi o caso da Maria Eduarda (morta em 2017 após ser atingida por tiros de fuzil disparados por policiais dentro da escola em Acari, na capital do Rio), afeta a vida das crianças de várias maneiras e uma delas é na educação. É uma rotina de medo que causa consequências imediatas e a longo prazo. É um impacto acumulado. Mas é uma violência que acontece apenas em certos territórios”, destacou a pesquisadora.
O que diz a Polícia Militar do Rio de Janeiro
“A Assessoria de Imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar informa que a Corporação tem como missão central e permanente a defesa da sociedade do Rio de Janeiro. Uma das premissas básicas de atuação da Polícia Militar é a preservação de vidas, sejam elas as da população em geral ou as dos policiais envolvidos nas ações.
As operações realizadas pela Corporação estão rigorosamente alinhadas ao que preconiza a ADPF 635 do Supremo Tribunal Federal (STF). Nossas ações policiais são baseadas em protocolos rígidos de atuação e preceitos técnicos de treinamento e orientação.
Além do irrestrito cumprimento à legislação, o comando da corporação tem investido em novas tecnologias e intensificado o treinamento da tropa, tanto para atuar em áreas conflagradas como nas abordagens em vias urbanas e demais missões que fazem parte da rotina dos policiais militares.
Vale acrescentar ainda que a Corporação está finalizando a produção de um “Manual Operacional”, que dará as diretrizes para o planejamento e execução das ações dos policiais militares, com base na legislação em vigor.
Todas essas ações estão contribuindo para redução de riscos.
Lembramos ainda que o estudo foi realizado com base no cenário de 2019.”