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    CNN No Plural+: A comunidade está no front

    LGBTQIA+ encaram mais uma guerra; leia estreia da coluna semanal do CNN No Plural

    Rafael Câmarada CNN , Em São Paulo

    Antes de você dedicar o seu precioso tempo para ler esse texto, reportagem ou relato, podemos chamar como quisermos, já que o importante é ressaltar a conquista desse espaço para a comunidade LGBTQIA+, quero dizer que pensamos muito sobre o que falar no nosso assunto de estreia.

    Há mais de um mês o mundo parou para acompanhar a invasão do exército russo em território ucraniano, e a pergunta foi inevitável: como a comunidade LGBTQIA+ está no meio desse conflito? Quando começamos a pesquisar, não imaginaríamos o que iríamos ouvir.

    Depois de oito anos sem pisar na Ucrânia, sua terra natal, o ator Alex Budin, de 39 anos, nascido na Crimeia, e hoje morador nos Estados Unidos, tomou coragem e fez a tão sonhada viagem. O que ele não sabia é que a Rússia invadiria seu país natal e isso dificultaria o seu retorno.

    “Quando a guerra começou eu estava em Kiev, com meus amigos, a maioria LGBTQIA+, e eu precisei sair da cidade. Fiquei dois dias tentando pegar voos, mas todos foram cancelados”, conta.

    Alex e o marido em Los Angeles com a cachorrinha Vivienne
    Alex e o marido em Los Angeles com a cachorrinha Vivienne / Arquivo pessoal

    O cenário de guerra é assustador e preocupante para qualquer um que esteja em meio a um conflito, mas para Alex parece ser ainda mais complicado, por ser um homem gay e trans. E eu destaco isso porque a sociedade ucraniana ainda é extremamente homofóbica e preconceituosa.

    O ataque militar da Rússia, que Moscou chamou de “operação militar especial”, causou ondas de choque na comunidade LGBTQIA+ da Ucrânia, em parte porque o presidente Vladimir Putin sabidamente restringe direitos da comunidade há alguns anos, e uma possível tomada russa da Ucrânia poderia significar a incorporação dessas leis anti-LGBT em território ucraniano.

    Alex em Kiev
    Alex, homem gay e trans, em Kiev / Arquivo pessoal

    “Na Ucrânia, não temos mais barreiras para ir para a Europa [países da União Europeia] como antes, antes tínhamos que tirar o visto da zona Schengen para ir, era super complicado. Hoje, as pessoas podem viajar livremente para onde e quando, e a partir desse simples intercâmbio cultural as pessoas começaram a ser mais educadas e passaram a ser mais tolerantes com outras pessoas, com outras nações, outras etnias. E isso ajudou a comunidade LGBTQ dentro da Ucrânia a se tornar parte da sociedade, com menos pressão ou agressão”, conta Alex.

    Não é de hoje que o governo russo preocupa Alex. Em 1999, com dezoito anos, ele saiu da Crimeia, região tomada pelo Kremlin, onde vivia com os pais. De lá, se mudou para a Kiev, para conseguir fazer a transição de gênero e tirar novos documentos.

    “Nessa época, não tinha nenhuma informação sobre a comunidade trans, então eu não tinha ideia de quem eu era ou o que estava acontecendo comigo, e na área médica ninguém queria assumir qualquer responsabilidade por algo que desconheciam. Por isso, fui transferido muitas vezes para diferentes instituições até conseguir fazer a transição e tirar meus documentos”.

    Com medo da perseguição, pediu asilo nos Estados Unidos e hoje vive com o marido e o cachorro em Los Angeles. Quando a guerra estourou, começou uma longa jornada para conseguir para sair do país. Logo após as primeiras bombas, precisou se esconder em um bunker numa estação de metrô e, aos poucos, foi chegando perto da fronteira da Hungria.

    Chegando no posto militar na fronteira entre a Ucrânia e a Hungria, Alex foi barrado na travessia. Ele então explica que, como um homem trans, precisou fazer o alistamento militar após a transição – e, curiosamente, carregava o documento que comprovava sua dispensa militar (emitida em 2006) consigo enquanto tentava cruzar a fronteira.

    “Eles fazem de tudo para te impedir de cruzar a fronteira e eu tive que passar uma noite naquele lugar”, narra Alex. “As pessoas lá fora, homens que tinham documentos de dispensa semelhantes que eu tinha comigo tinham que passar por novos exames médicos no local.”

    Assim que o exército russo invadiu o território ucraniano, Volodymyr Zelensky proibiu homens de 18 a 60 anos de deixarem o país e pediu para que eles lutassem pela nação. Muitas pessoas da comunidade, para a nossa surpresa, não pensaram duas vezes e se alistaram ao Exército.

    Deixo claro que a surpresa é pelo fato da população LGBTQIA+, que que precisa lutar diariamente para garantir direitos básicos, seja uma das primeiras a se prontificar a defender o país.

    “Mesmo agora, no campo de batalha, há pessoas LGBTQIA+ que estão lutando pelo nosso país e são abertamente gays (…) Eles até têm uma marca específica nas mangas, que significa que pertencem à comunidade, então eu acho que é um progresso para todos nós”, destacou Alex.

    Alex em Kiev em uma estação de metrô quando a guerra eclodiu
    Alex em Kiev em uma estação de metrô quando a guerra eclodiu / Arquivo pessoal

    Um progresso mais que necessário, apesar da Ucrânia não criminalizar integrantes da comunidade LGBTQIA+, mas pouco avança nos direitos às minorias. O casamento homoafetivo não é permitido e muito menos a adoção de crianças por pessoas do mesmo sexo.

    Quem também vê como um avanço a presença da comunidade no front de batalha é a militante do movimento LGBTQIA+ Sofiia Lapina, que há oito anos está à frente de movimentos LGBTQIA+ na Ucrânia, dentre eles o Kiev Pride e o Ukraine Pride.

    Sofiia Lapina, da Ucrânia
    Sofiia Lapina, da Ucrânia / Arquivo pessoal

    “Há seis anos, eu e meus amigos estávamos organizando uma sessão de cinema, e o filme se chamava ‘Propaganda Gay’. Um grupo com cerca de cinquenta pessoas da extrema-direita veio e desligou a tela do filme. Chamamos a polícia e eles não fizeram nada, foi assim que eu me tornei uma militante dos direitos humanos LGBTQIA+”, conta.

    Sofiia é uma mulher lésbica. A ONG em que ela atua hoje, Ukraine Pride, tem a proposta de promover direitos LGBTQIA+ de uma forma alternativa, através da mídia e de peças audiovisuais. Essa militância, no entanto, mudou radicalmente depois do começo da guerra.

    “Meu papel agora é organizar campanhas de arrecadação de fundos para ajudar os LGBTQIA+ nas forças armadas e refugiados. Para os militares da comunidade, estamos doando equipamentos de proteção e para os refugiados ajudamos com dinheiro, comida, roupas, remédios e um lugar seguro”, completa.

    Para Sofia, o nacionalismo e a vontade de defender o país da invasão vêm derrubando barreiras e aproximando a comunidade da sociedade.

    “Desde o início da guerra estamos ajudando uns aos outros, estamos conectados para proteger o nosso país, porque tanto as pessoas LGBTQIA+ quanto os militares patriotas e pró-nacionalistas estão no mesmo local agora, um do lado do outro”.

    Quem também foi tomado por esse sentimento nacionalista é o cineasta Yura Dvizhon, de 29 anos, que atua com Sofiia na ONG Ukraine Pride como cofundador.

    cineasta Yura Dvizhon, de 29 anos
    Cineasta Yura Dvizhon, de 29 anos / Arquivo pessoal

    “Vivi meus últimos dez anos em Kiev e quando a guerra começou eu acordei as cinco horas da manhã, peguei o meu namorado, arrumamos as coisas rápido e nos mudamos par o oeste da Ucrânia, pois aqui é mais seguro”, explica.

    Hoje, Yura vê muitos amigos LGBTQIA+ lutando no exército.

    “Eu vejo como eles estão lutando e falam abertamente sobre a sua sexualidade, e me parece que muitas pessoas estão apoiando. Eu espero que quando essa guerra acabar a gente possa viver livremente no nosso país”.

    Não é de hoje que Yura luta pelos diretos da comunidade LGBTQIA+.

    Pouco antes da invasão russa, tentava implementar uma lei que garantia mais proteção para gays, lésbicas, trans, negros e pessoas de outras nacionalidades no país. Ele conta que por anos a Ucrânia tem servido de abrigo para pessoas que fogem de perseguições do Cazaquistão, Bielorrússia e Georgia.

    “Agora estamos ajudando militares e refugiados LGBTQIA+ e militares em geral. Estamos tentando conversar e explicar a situação e tentando arrecadar dinheiro para as pessoas”, conta.

    Fomos atrás de uma explicação para essa comoção no país. Para o professor de relações internacionais da PUC-SP Arthur Murta, o sentimento de nacionalismo que une Sofiia e Yura e tantos outros ucranianos na guerra tem explicação: “Quando você tem um inimigo comum e isso é posto na política internacional em várias frentes, a existência desse inimigo comum une a população, porque você está toda unida em prol desse inimigo e outros inimigos anteriores deixam de parecer o inimigo é o que parece estar acontecendo com a população LGBTQIA+ na Ucrânia”, explica.

    Enquanto o inimigo comum para eles não for derrotado e a Ucrânia não se torna um país realmente seguro para a comunidade LGBTQIA+, Yura só sonha com o dia em que vai poder apenas segurar a mão do seu namorado em público. Um gesto simples, muitas vezes esquecido por quem não é impedido de demostrar afeto em público. E faz diferença. E falo por mim. Como faz.

    *Produção: Letícia Brito, da CNN, em São Paulo

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