Voo AF447: 14 anos após acidente, tribunal decide se Airbus e Air France são culpadas
Justiça francesa profere nesta segunda (17) decisão sobre julgamento arquivado em 2019 e reaberto em 2021; voo deixou 228 mortos em 2009 ao cair no Oceano Atlântico
O Tribunal de Apelação de Paris decide nesta segunda-feira (17) se as companhias Airbus e Air France são culpadas pela queda do voo 447 entre Rio de Janeiro e Paris, 14 anos após o desastre que deixou 228 mortos, 216 passageiros e 12 tripulantes. As empresas são julgadas por homicídio culposo.
Em 1º de junho de 2009, o voo AF447 caiu no Oceano Atlântico no meio da noite, 3 horas e 45 minutos depois de decolar do Aeroporto do Galeão, às 19h29 do horário de Brasília. O avião transportava passageiros de 33 nacionalidades, entre eles: 61 franceses, 58 brasileiros, 28 alemães, nove italianos e dois espanhóis.
Os primeiros destroços do avião e os corpos de algumas das vítimas foram encontrados nos dias seguintes.
O que torna um dos acidentes mais fatais da história da França ainda mais excepcional é a demora de dois anos para encontrar o resto do avião e as duas caixas-pretas. Após longas buscas, a fuselagem da aeronave modelo A330 foi encontrada em 2 de abril de 2011, a 3.900 metros de profundidade.
As duas caixas-pretas foram localizadas nos dias 1 e 3 de maio de 2011 e trouxeram informações precisas sobre os parâmetros da aeronave e as conversas entre os três pilotos, momentos antes do impacto. Com a recuperação das caixas-pretas, foi revelada a principal causa do acidente: o congelamento dos sensores de velocidade Pitot.
O avião reportou ao centro de controle em Recife sua posição e depois seguiu para o leste, em direção a uma tempestade tropical, em uma zona de encontro de massas de ar dos Hemisférios Sul e Norte, na região equatorial, chamada de “Doldrums”, local onde ocorrem tempestades frequentes.
O comandante, Marc Dubois, de 58 anos, com 11 mil horas de experiência de voo, havia deixado o cockpit para descansar.. Às 2h10, os outros dois pilotos, menos experientes, Pierre-Cédric Bonin, 32, David Robert, 37, estavam sozinhos no comando da aeronave, quando o cenário mudou.
Com as falhas na medição de velocidade e a desconexão do piloto automático, Bonin, que assumiu o controle manual da aeronave, em vez de manter a altitude de voo, comandou erroneamente para a aeronave subir, ultrapassando a altitude máxima prevista, o que levou a aeronave a perder sustentação. A tripulação não conseguiu recuperar o controle e o avião então caiu em queda livre, de uma altitude de 11,5 quilômetros, em 3 minutos e meio.
A caixa-preta revelou registros dos momentos antes do acidente que causaram forte comoção. Os pilotos diziam: “Não entendo o que está acontecendo (…) Não tenho mais controle do avião. Não tenho controle do avião de jeito nenhum (…) vai subir ou vai descer?”
Em 5 de julho de 2012, o Escritório de Investigações e de Análises (BEA) da Aviação Civil, órgão do Ministério dos Transportes, concluiu as investigações. O relatório do BEA diz essencialmente que o acidente foi provocado principalmente por erros dos pilotos e falta de treinamento da tripulação, que não soube agir diante de um problema mecânico. O órgão concluiu que três fatores foram decisivos para a queda: falhas técnicas, falta de treinamento e erros de pilotagem.
Posteriormente, reportagem da revista francesa Le Point revelou que o relatório do BEA omitiu um diálogo entre os registros da caixa-preta sobre a fadiga do comandante Marc Dubois.”Ontem à noite não dormi o suficiente. Uma hora antes não foi suficiente”, disse Dubois, poucos minutos antes de ir para o descanso.
Durante as investigações, muitas famílias questionaram a imparcialidade do BEA, acusando a agência de proteger a Airbus e a Air France ao concluir que a tragédia havia sido causada sobretudo pela negligência dos pilotos..
Luis Claudio Lupoli, coronel aviador da reserva, que foi o representante brasileiro dentro da investigação do BEA, afirma que um dos principais pontos de conclusão do órgão sobre o acidente foi que Bonin comandou o nariz da aeronave para cima após a falha dos sensores, o que a levou a perder a sustentação.
“Quando os sensores Pitot falharam, o piloto automático deixou de funcionar, é como se o sistema falasse: ‘estou louco, então assumam o controle manual da aeronave’. O piloto deveria ter olhado o horizonte de voo e mantido a altitude. Mas ele se assustou, talvez temendo ultrapassar a velocidade máxima estrutural, e ‘cabrou’ o avião, puxou para cima, subindo à altitude de 38 mil pés. Com o ar rarefeito, a aeronave perdeu sustentação e não conseguiu mais se apoiar no ar””, diz o coronel.
Ele acrescenta que o sensor pitot descongelou logo em seguida, portanto se a manobra não tivesse ocorrido a situação poderia ter sido controlada. “A gente até levantou uma questão de ergonomia, de psicologia, que é a tendência do ser humano de puxar, de não deixar que o avião afunde, não caia”, diz Lupoli.
Um especialista em acidentes aeronáuticos que trabalhou por décadas no setor, mas prefere não revelar o nome, afirma que as investigações não respondem questões cruciais como: por que os sensores pitot não foram trocados previamente, sendo que havia indicações anteriores de falhas em voos e recomendações para troca; e por que o comandante master, Dubois, não estava na cabine.
Longo julgamento
As duas empresas, Air France e Airbus, foram indiciadas em 2011 por “homicídios culposo”. Mas em 2019, os juízes rejeitaram as acusações e arquivaram o caso, argumentando que a investigação não permitiu estabelecer responsabilidade criminal das companhias “em conexão com as falhas de pilotagem que provocaram o acidente”.
Mas esta decisão inicial, que causou revolta entre os familiares e sindicatos de pilotos, foi anulada em um pedido de recurso, em maio de 2021. Os grupos de apoio às vítimas alegavam que a decisão havia sido corporativista.
A Procuradoria-Geral da França recorreu da decisão e abriu caminho para a reabertura do julgamento, cuja decisão vai ser proferida nesta segunda-feira (17).
A Air France e a Airbus sempre foram parceiras comerciais, mas desde o início das investigações têm trocado acusações, negando qualquer responsabilidade pelo acidente e transferindo para os pilotos.
Os papéis dos pilotos e da falha no sensor Pitot serão pontos cruciais para o resultado do julgamento.
As empresas podem ser condenadas a pagar, cada uma, uma multa de € 225 mil. Mas nenhum cenário está descartado: o tribunal pode condenar as duas empresas, multar apenas uma e não a outra, ou inocentar as duas.
Os parentes das vítimas já disseram que o valor de multa é irrisório. A quantia seria o equivalente a apenas dois minutos da receita da Airbus antes da pandemia e cinco minutos de receitas de passagens da Air France. Acordos extrajudiciais envolvendo maiores indenizações também foram realizados, embora o valor total não tenha sido divulgado.
A tragédia do voo AF447 trouxe enormes mudanças no treinamento de pessoal e na tecnologia das companhias aéreas e é visto como um acidente que mudou a história da aviação. O modelo da Airbus foi substituído em todo o mundo, foram implementadas melhorias na localização de aeronaves, caixas-pretas e também no treinamento de pilotos para situação de estresse e em situações de estol, quando a aeronave perde a sustentação
LINHA DO TEMPO
- 31 de maio de 2009
→ Voo AF447 decola 19h29 do Galeão rumo a Paris
→ 3h45 minutos depois cai no Oceano Atlântico - 01 e 03 de Maio 2011→ Caixas-pretas são recuperadas
- 18 de março de 2011 → Air France e Airbus são indiciadas por homicídios culposo
- 05 de julho de 2012 → Conclusão da investigação pela agência francesa BEA
- 29 de agosto de 2019 → Juízes arquivam o caso, sem culpar empresas
- 12 de maio de 2021 → Decisão inicial é anulada e julgamento é reaberto
- 10 de outubro 2022 → Início do novo julgamento
- 17 de Abril de 2023 → Resultado da nova investigação