Prime Time

seg - sex

Apresentação

Ao vivo

A seguir

    CNN Plural

    Velia Vidal: “O acesso à escrita é uma ferramenta histórica de exclusão“

    Escritora e gestora colombiana, que está no Brasil para lançamento do seu livro “Águas de Estuário”, conversou com CNN Plural sobre a importância da leitura e escrita na inclusão social

    Velia Vidal, escritora colombiana
    Velia Vidal, escritora colombiana Rodrigo Trevisan

    Letícia Vidicada CNN

    De um lado, um lugar rico por sua biodiversidade e natureza exuberante. Do outro, uma das zonas mais excluídas da Colômbia, com alta taxa de analfabetismo, homicídios e com grande índice de insegurança alimentar. Este último é Chocó, um departamento colombiano na costa pacífica colombiana, perto de Medelín e Cali e perto da fronteira com o Panamá. E é no meio de todos esses contrastes que começa a história de Velia Vidal, a escritora, ativista e gestora cultural afro colombiana nascida em Bahía Solano, um município de Chocó.

    Foi neste local, onde a maioria da população é negra e indígena convivendo com a triste realidade da pobreza e da violência, que Velia encontrou na leitura e na escrita uma forma de dar mais acesso, autonomia e reduzir a exclusão das pessoas que vivem lá.

    Há 17 anos, ela lidera o projeto Motete, que promove a alfabetização e a leitura naquela região. Justamente, dessa relação da escritora com a palavra que nasceu o livro “Águas de Estuário”, que acaba de ser lançado no Brasil pela editora Jandaíra. Em sua passagem pelo país, Velia Vidal conversou com o CNN Plural e contou mais sobre seu trabalho e trajetória.

    • O seu livro “Águas de Estuário” (editora Jandaíra) é uma coleção de cartas para um amigo. Quais foram os temas dessas cartas e como foi o processo de criação do livro?

    O livro nasceu de uma troca de cartas em que conversávamos sobre a vida, sobre o que conversamos com os amigos. Sempre gosto da analogia: quando você trabalha no escritório ou em um estúdio de televisão e pensa em fazer amizade cm alguém, toda vez que vai a cozinha tomar um café ou comer algo, vocês vão construindo uma amizade. Nós vivemos esse mesmo processo, mas em cartas. Fomos nos conhecendo cada vez mais, construindo uma confiança até contarmos as coisas mais íntimas e pessoais. Quando a editora me propôs transformar as cartas em um livro, encontramos o tema que estava aí o tempo todo: essa relação com meu território e também lá estava a minha história de como encontrei minha vocação e como me reconectei com a escritura e a literatura. Como me encontrei comigo mesmo, como a palavra se tornou uma ferramenta e para assumir com liberdade tudo que sou. Por fim, o livro é a geografia das mais distintas dimensões da vida de uma mulher negra e o que isso significa e representa num território como Chocó.

    • O que significa publicar esse livro aqui no Brasil?

    É muito importante para mim que este livro seja publicado aqui no Brasil e, em particular, este livro. Ele, para mim, é absolutamente autêntico. Me sinto honrada com isso e me permite uma conexão genuína com o Brasil. Nós temos muito mais coisas em comum do que imaginamos – entre brasileiros e colombianos e, sobretudo, entre afro-brasileiros e afro colombianos. Sinto que esta publicação é uma oportunidade para estabelecer esse diálogo para conectar-nos com essas coisas que temos em comum. Me sinto honrada também de ser a primeira mulher afro latino-americana traduzida para o português no selo editoral Jandaíra. Para mim, é um verdadeiro privilégio.

    • Como você e Djamila Ribeiro se conheceram? Como foi essa conexão? (a filósofa escreve o prefácio do livro)

    Nos conhecemos um projeto no Museu Britânico num festival latino-americano. Eu a conheci pelo seu texto e ela pelo meu. Isso nos permitiu vermos através da leitura os nossos interesses em comum. Depois, nos encontramos novamente num festival em Cartagena (Colômbia). E foi uma conexão imediata, porque definitivamente temos coisas em comum. Nossa preocupação por reivindicação e, como mulheres negras da atualidade, por reivindicar nossos direitos. Antes de conhecer Djamila, eu já tinha lido o seu livo “Lugar de Fala” que para mim foi uma revelação impressionante. Eu sinto que todas as mulheres negras deveríamos ler esse livro. Nos reconecta com nossa dor e com a necessidade de não sermos invalidadas.

    • Você se dedica a ensinar a ler e escrever. Daí, criou o projeto Motete. No que consiste projeto?

    É uma organização sem fins lucrativos que nasceu há 17 anos para promover o pensamento crítico em nosso território. Estamos um pouco cansados de que nos digam e nos ensinem como temos que ver o mundo e como temos que fazer. Basicamente, nos propomos a mostrar às famílias que temos que criar o nosso pensamento autônomo e crítico e a leitura nos permite isso. Estamos focados no acesso à leitura para que através dela a gente liberte a imaginação e o pensamento critico. Neste momento, trabalhamos com aproximadamente 2200 crianças e jovens do nosso departamento. Já vamos para sétima festa de leitura. Temos um compromisso absoluta com a garantia do direito à cultura, da leitura e da imaginação.

    • Como a leitura e a escrita podem ajudar na inclusão social e na luta contra o racismo?

    Em primeiro lugar, é preciso relacioná-la com inclusão. Está ligada ao homem branco, está ligado a alfabetização e a leitura. Por isso, para nós – que fomos escravizados -, eles negaram esse direito a leitura e escrita. Então, o acesso a escrita virou uma ferramenta histórica de exclusão. Não é por acaso que temos poucos escritores e que nossa representação na escrita seja pequena. Nos ensinaram que aquilo que não está escrito, não existe. Não há cidadania sem a escrita. Sem a possibilidade de assinarmos um documento, de escrever o nosso nome. Necessitamos fortalecer o acesso à escrita e acesso à leitura de textos escritos para reivindicar essa cidadania. Para reivindicar essa existência em um mundo escrito. Assim como ferramenta de exclusão, também foi usada como ferramenta racista. Nós encontramos textos em toda América Latina feitos para perpertuar estereótipos. No passado, na Colômbia, por exemplo, escreviam coisas desastrosas que criaram nosso imaginário. Por isso, temos que escrever nossas próprias histórias. Também temos que nos descolonizarmos porque, às vezes, nós mesmo escritores negros estamos perpetuando alguma forma de racismo e de exclusão. A ausência de alfabetização é um ato de racismo estrutural.

    • O que as mulheres negras do Brasil e as mulheres negras da Colômbia tem em comum?

    O que mais temos em comum é vitimização. Quando eu cheguei na semana passada em São Paulo, no primeiro dia eu vi um grafite numa parede que mostrava a quantidade de feminicídios aqui. É o mesmo na Colômbia. No dia seguinte, assassinaram uma líder social em Salvador. Na madrugada de domingo, assassinaram um músico em Cali. Eu entendo o que passa com as mulheres. Inclusive com as que não são negras, mas é indiscutível que sobre nós – negras – pesa uma quantidade maior de variáveis. Então, quando olhamos para a vitimização do conflito armado colombiano, por exemplo, piora quando se trata de mulheres negras, se agrava quando falamos do povo negro. Os negros são os mais assassinados na Colômbia também. Além das outras práticas do racismo cotidiano, como os questionamentos que somos constantemente submetidas. O que sofremos em Colômbia é o mesmo que acontece no Brasil. Definitivamente, estamos em luta que não pode cessar, que não pode parar porque seguimos sendo excluídas e seguimos sendo assassinadas.

    • É preciso olharmos para a questão racial da América Latina de uma maneira diferente?

    Definitivamente temos que discutir a questão racial na América Latina de uma forma diferente. Tal como é discutido nos Estados Unidos ou como é discutido no Reino Unido ou como é discutido na Europa. A América Latina teve um processo mais tardio de abolição da escravidão. Reinou aqui o mito da igualdade racial, onde todos aqui seriamos iguais. Continuamos tentando provar que na Argentina não tem negros, que somos todos mestiços e que, consequentemente, somos todos iguais, porque a lei diz que somos todos iguais. Isso é uma mentira absoluta, como você passa da escravidão para a igualdade? Isso não existe em lugar nenhum. Só após a década de 1970, alguns projetos sociais se tornam visíveis para a massa e começa o reconhecimento, em alguns países, da população afro como um grupo especial, com uma história especial e com uma necessidade de reivindicação. Isso teve como consequência um racismo oculto muito grave, que continuamos vivemos pelos nossos cabelos, pela nossa pele, pelos formatos dos nossos narizes extras, de nossas bocas. Mas continua o discurso de que todos somos iguais. Isto também implica que abordemos esta situação de uma forma particular. Não podemos abordar da mesma forma se tivemos histórias diferentes. Temos que exigir ações afirmativas. Nossos jovens seguem sendo os que têm menos acesso à universidade, menos acesso à educação. Então, precisamos de uma questão política para atender ações afirmativas.

    • Como está sendo sua passagem pelo Brasil e como foi a participação na Feira Literária de Ribeirão Preto (SP)?

    Estou encantada com a visita ao Brasil. Em Ribeirão, tivemos um evento maravilhoso com mais de 400 pessoas. Assinei muitos livros e aproveitei alguns dias para viver a cidade. Estive num local de maracatu, de samba… Fico muito feliz porque também temos uma conexão cultural. Estou com uma agenda extraordinária aqui. Vou para São Leopoldo (RS), Rio de Janeiro (RJ). Espero que seja só o início de uma carreira no Brasil, de uma carreira em português e de uma conexão de muito longo prazo, porque realmente sinto que temos muito em comum e muito o que conversar.