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    Após virar símbolo antigolpe em Mianmar, jovem tem túmulo violado por militares

    Ma Kyal Sin, conhecida como Angel, foi morta em manifestação contra o golpe militar no país asiático

    Sandi Sidhu, Helen Regan, Ivan Watson e Salai TZ, da CNN

     

    Horas depois de sua família, amigos e milhares de pessoas de luto terem colocado o corpo de Angel para descansar, as forças de segurança de Mianmar entraram no cemitério, à noite, retiraram as coroas de flores, cuidadosamente colocadas pelos apoiadores, e violaram a sepultura.

    Na manhã seguinte, de acordo com imagens compartilhadas com a CNN e relatos de testemunhas, o túmulo havia sido profanado com detritos espalhados ao redor da sepultura, além de lâminas de barbear, botas de borracha, aventais cirúrgicos, pás e uma luva de plástico ensanguentada.

     

    O túmulo de Angel foi ainda preenchido com cimento. Uma placa grossa cinza tomou o lugar das flores e dos tributos.

    Houve, pela segunda vez, indignação e tristeza.

    Morte durante protesto

    Ma Kyal Sin, ou simplesmente Angel, morreu após levar um tiro na cabeça na cidade de Mandalay, em 3 de março, durante uma manifestação contra o golpe militar que tirou o governo eleito de Mianmar do poder.

    Vestindo uma camiseta com o slogan “Tudo ficará bem”, a jovem de 19 anos rapidamente se tornou um símbolo da luta do país pela democracia – sua imagem era exibida em cartazes em protestos e em postagens na internet.

    Sua luta é símbolo de uma geração que batalha pela liberdade e democracia contra uma junta implacável e violenta que tem lançado ataques sistemáticos contra manifestantes pacíficos. Pelo menos 80 pessoas foram mortas e centenas ficaram feridas desde o golpe militar em Mianmar, de acordo com as Nações Unidas. Mais de 2 mil foram detidas e há denúncias de tortura e desaparecimentos. Muitas das que sumiram não foram encontradas desde então.

    A dor de uma geração de jovens mortos nas ruas por policiais e soldados armados está alimentando uma raiva e uma determinação que os ativistas dizem que não será extinta tão facilmente.

    “Vamos lutar até o fim, nunca vamos recuar, não teremos medo”, disse Min Htet Oo, que estava com Angel quando ela morreu.

    Dia mais sangrento

    O dia da morte de Angel foi um dos mais sangrentos desde que começaram os protestos contra o golpe militar, quando as forças de segurança abriram fogo contra multidões em todo o país, matando pelo menos 38. Fotografias e vídeos, capturadas por cidadãos locais e repórteres, mostraram corpos caídos nas ruas cercados por poças de sangue e manifestantes que corriam para se proteger.

    Angel havia se juntado aos protestos em Mandalay e fazia parte de um grupo central de ativistas na linha de frente dos protestos. O grupo se dispôs a proteger outros manifestantes dos avanços da polícia, neutralizar bombas de gás lacrimogêneo com panos molhados e liderar a multidão com palavras de ordem, de acordo com Min Htet Oo.

    “Foi muito perigoso porque estávamos na linha de frente e Angel estava conosco. Ela era a única garota no grupo. Era a mais corajosa, a mais ativa e comandava todos na linha de frente”, disse.

     

    Por volta do meio-dia, os manifestantes enfrentaram as forças de segurança na 84ª rua de Mandalay. As filmagens mostram Angel gritando: “Tenho medo, mas vamos lutar por nossa liberdade” e “não vamos fugir”.

    Cerca de meia hora depois, vídeos de ativistas mostram Angel e os outros manifestantes recuando e se agachando, enquanto o som de tiros soa. Em um vídeo antes de sua morte, era possível ouvi-la gritando: “Pessoas da frente, por favor, sentem-se. Vocês não podem morrer.”

    Momentos antes de ela ser morta, as fotos mostravam a parte de trás de sua cabeça voltada para a linha das forças de segurança. Em um curto vídeo, os ativistas dizem que o braço de Angel ficou visível antes de ela cair no chão.

    Outros manifestantes podem ser vistos na imagem carregando-a até uma motocicleta, que teria ido em direção a uma clínica improvisada. Um médico disse que ela chegou morta ao local. A principal causa da morte foi lesão cerebral causada por arma de fogo, disse o médico, que não quis ser identificado por motivos de segurança.

    “Ela estava pronta para arriscar sua vida muito antes desse dia”, disse Min Htet Oo.

    Poucos dias antes de sua morte, Angel postou uma mensagem no Facebook oferecendo-se para doar seu sangue e órgãos para qualquer pessoa que pudesse precisar.

    “Suas últimas palavras foram que ela tinha vergonha de não ter sido uma cidadã zelosa pelo país. Eu perguntei a ela o que seria se ela morresse. Ela disse que vale a pena arriscar sua vida para acabar com este sistema”, disse Min Htet Oo.

    Autópsia sem autorização da família

    Milhares de pessoas compareceram ao funeral de Angel ou seguiram a procissão do carro funerário até o cemitério. Muitos fizeram a saudação de três dedos dos filmes “Jogos Vorazes”, que se tornou um símbolo de resistência entre os manifestantes.

    Porém, poucas horas depois de ela ser enterrada, a polícia de Mianmar desenterrou o corpo de Angel para realizar o que alegou ser uma autópsia necessária para investigar a causa de sua morte.

    Uma testemunha ocular, que a CNN preferiu não identificar para sua segurança, disse que, entre as 16h e 19h, cerca de 20 pessoas chegaram aos portões do cemitério.

    “Eles chegaram aqui primeiro com um carro e uma motocicleta, apontaram suas armas e pediram para abrir o portão. Havia outro carro militar na parte de trás”, disse a testemunha.

     

    “Eu vi um cara abrir o portão para eles… Disseram que a gente não tem permissão para entrar, não tem permissão para ir ver e nem avisar ninguém sobre isso.”

    A testemunha disse que não podiam ver o que o grupo estava fazendo no cemitério depois que entraram, mas, na manhã seguinte, viram que eles tinham “revirado o túmulo” de Angel.

    Fotos amadoras mostraram lixo espalhado ao redor do local do túmulo, incluindo pás, uma luva de plástico ensanguentada e lâminas de barbear, aparentemente deixadas pela polícia na noite anterior.

    A notícia da exumação chocou muitos, incluindo o médico que recebeu o corpo de Angel após sua morte.

    “Em casos anteriores, em que cavamos o túmulo para autópsia, precisamos de muitos motivos, e com a permissão da família, assim por diante. Neste caso, acho que foi desrespeito às regras e aos regulamentos”, disse o médico, que não quis ser identificado por medo da segurança.

    Os ativistas já haviam demonstrado preocupações sobre a possibilidade de os militares tentarem encobrir a maneira como Angel morreu.

    Phil Robertson, vice-diretor do Observatório dos Direitos Humanos para a Ásia, disse: “Para começar, as pessoas dificilmente são exumadas em Mianmar. Por isso, houve um choque sobre as autoridades terem ido tão longe”.

    “Ir sem avisar, no meio da noite, é um reconhecido desrespeito às regras, porque os soldados e policiais não queriam ser filmados fazendo seu trabalho sujo”, acrescentou.

    A Força Policial de Mianmar disse que precisava investigar a morte de Angel, mas sua família não consentiu com a autópsia. Em um comunicado à mídia estatal, a polícia disse que seu corpo foi exumado “com a permissão de um juiz, delegados distritais, patologistas forenses e testemunhas”.

     A junta militar tentou se distanciar de sua morte, dizendo que as forças de segurança usaram “força mínima” para dispersar os manifestantes naquele dia. A conclusão da autópsia policial em 4 de março foi que o pedaço de chumbo de 1,2 centímetro de comprimento e 0,7 centímetro de largura alojado na cabeça de Angel, logo atrás de sua orelha esquerda, não veio de uma bala policial.

    “A peça de chumbo encontrada na cabeça era um tipo de munição que pode ser disparada com uma espingarda com cartuchos de munição de 0,38 polegada”, disse o comunicado da polícia, acrescentando que “é diferente das balas de controle de distúrbios usadas pela Força Policial de Mianmar.”

    A polícia pareceu se distanciar ainda mais, dizendo que embora suas forças estivessem “frente a frente com a multidão, o ferimento foi nas costas da pessoa falecida”.

    “Aqueles que não querem estabilidade no país estão tentando intensificar o conflito”, disse a polícia.

    Mas um vídeo de ativistas, filmado os momentos depois do tiro que atingiu Angel e na mesma rua onde ela foi mortalmente ferida, mostra um militar disparando o que parece ser um rifle contra os manifestantes.

    Observadores de direitos humanos mostraram preocupação sobre o fato de a junta policial ter chegado ao ponto de violar o túmulo de Angel para tentar esconder suas ações e evitar transformá-la em uma mártir.

    “A Tatmadaw (Forças Armadas de Myanmar) está disposta a matar um grande número de manifestantes, mas tem medo de fazer mártires, e viram que Kyal Sin estava rapidamente se tornando uma. Então, no típico estilo militar desajeitado, eles fizeram sua exumação noturna para fazer um acobertamento médico”, disse Robertson.

    “As únicas pessoas na rua naquele dia com armas eram o exército e a polícia, e muitas pessoas a viram ser baleada e morrer. Profanando seu túmulo e sua memória, tudo o que as autoridades fizeram foi atiçar ainda mais a indignação justificável em sua morte, e acirrar ainda mais os ânimos.”

    A família de Angel não fala com a mídia desde sua morte. Quando a CNN entrou em contato, um membro da família disse que não iria comentar sobre sua morte ou autópsia à beira do túmulo por medo de repercussões.

    A vida pela democracia

    A profanação do túmulo de Angel faz parte do aumento da violência dos militares contra civis em Mianmar.

    Na quinta-feira, um alto funcionário da ONU colocou a culpa nas forças de segurança e disse que a “resposta brutal” dos militares aos protestos pacíficos pode estar “atingindo o limite legal para crimes contra a humanidade”.

    “O povo de Mianmar precisa não apenas de palavras de apoio, mas de ação de apoio”, disse o Relator Especial da ONU para os direitos humanos em Mianmar, Tom Andrews, em uma declaração ao Conselho de Direitos Humanos da ONU em Genebra. “Eles precisam da ajuda da comunidade internacional, agora.”

    Este aparente desrespeito pela vida humana foi catalogado pelo grupo de direitos humanos Anistia Internacional, que disse que os militares implantaram um “vasto arsenal e numerosas tropas” durante uma “onda de matança” em todo o país.

    Os militares de Mianmar, disse, estão usando contra manifestantes e transeuntes pacíficos táticas e armas cada vez mais letais, normalmente vistas em campo de batalha, e que as tropas – apontadas como responsáveis por abusos contra os direitos humanos em áreas de conflito – foram enviadas para as ruas.

    Ao verificar mais de 50 vídeos da repressão em curso, o Laboratório de Evidências de Crise da Anistia Internacional confirmou que as forças de segurança parecem estar implementando estratégias planejadas e sistemáticas, incluindo o uso intensivo de força letal, disparo indiscriminado de munição letal em áreas urbanas e que muitos dos assassinatos documentados equivalem a execuções extrajudiciais.

    Mesmo assim, os jovens manifestantes continuam voltando às ruas todos os dias em todo o país.

    “A Tatmadaw não previu que, uma vez que as pessoas gozaram das liberdades básicas, como o povo de Mianmar na última década, elas lutarão duplamente para mantê-las. Os militares também subestimaram a resiliência e engenhosidade dos jovens birmaneses que cresceram conectados ao mundo pela internet e não concordarão em ser arrastados de volta ao passado, aos pesadelos do regime militar que foram relatados pelos pais aos seus filhos”, disse Robertson.

    Os amigos de Angel a chamam de mártir, mas muitos outros morreram de forma semelhante nas mãos das forças militares.

    A adolescente – que adorava dançar, gravar vídeos para o TikTok e treinar taekwondo – será lembrada como um símbolo de desafio, dizem seus amigos.

    “Ela gostava de viver livremente, era uma menina de bom coração”, disse Min Htet Oo, que, como muitos manifestantes, tem paradeiro mantido em segredo, protestando durante o dia e tentando escapar das forças de segurança à noite.

    “Ela caiu por ajudar os outros. Ela arriscou sua vida pela democracia de Mianmar”, disse.

    Texto traduzido. Leia aqui a versão original em inglês.

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