Sem dinheiro, acordos no Whatsapp. A saga de duas amigas para escapar do Talibã
Zahra e Sara tiveram de enfrentar a terrível decisão: ficar ou sair da cidade
Zahra se abriga em seu apartamento em Cabul, olhando ansiosamente pela janela e observando os combatentes do Talibã no estacionamento abaixo. Ela não ousa sair de casa há dias.
Há apenas duas semanas, ela e sua amiga Sara estavam bebendo e rindo em uma festa em Cabul. O Talibã estava se aproximando. Mas a volta ao seu governo de repressão ainda parecia distante.
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Nos dias desde 15 de agosto, quando Talibã retomou Cabul, mergulhando a capital do Afeganistão no caos, milhares de mulheres como Zahra e Sara enfrentaram a terrível decisão: ficar ou sair da cidade.
A CNN está usando pseudônimos para as amigas para sua própria segurança e de suas famílias, já que as pessoas em Cabul estão vulneráveis a represálias dos combatentes do Talibã após a decisão dos EUA de retirar as tropas do país.
Embora o Talibã tenha prometido um governo mais moderado e “inclusivo”, muitos temem o mesmo regime brutal de duas décadas atrás, quando as mulheres eram forçadas a ficar em casa e proibidas de ir à escola e ao trabalho.
Milhões de afegãos enfrentam um futuro incerto. Mas, para as mulheres, os riscos são extremos. Ficar pode significar uma vida de subserviência velada. Tentar fugir pode terminar em morte nas ruas instáveis de Cabul – ou conquistar a liberdade com o risco de nunca mais ver suas famílias novamente.
Zahra e Sara eram crianças nos anos 90, quando o Talibã governou o Afeganistão. Depois da invasão dos Estados Unidos e seus aliados em 2001, ambas deixaram o país para estudar no exterior, voltando anos depois com a ambição de fazer de sua terra natal um lugar melhor para meninas e mulheres.
No dia em que elas se encontraram na festa acima mencionada, há duas semanas, os combatentes do Talibã começavam a conquistar cidades do interior e ainda pareciam muito longe da capital. As duas e seus amigos queriam desfrutar a liberdade enquanto podiam.
“Alguns de nós pensava que aquela era nossa última festa, então era melhor fazermos uma mesmo”, contou Zahra, lembrando-se do sarau no telhado, onde ouviram música ao vivo até tarde da noite.
Em poucos dias, a vida mudou totalmente.
No domingo (15), as duas amigas ficaram presas em engarrafamentos separados enquanto milhares de residentes de Cabul. As pessoas voltavam para casa em meio a relatos de que combatentes do Talibã estavam nos arredores da cidade. Zahra passou horas numa fila para sacar dinheiro antes que a cidade fechasse.
“Todos os caixas eletrônicos estão sem dinheiro; as pessoas estão em pânico”, contou Zahra à CNN no último domingo.
Naquela noite, o Talibã ocupou o Palácio Presidencial, tirando fotos e se juntando para fotos ao redor da mesa de madeira do ex-presidente Ashraf Ghani. O dia seguinte trouxe mais confusão, já que o Talibã se reinstalou como líder do país pela primeira vez em 20 anos e prometeu ser um “governo inclusivo”.
Poucos acreditaram em suas palavras.
Na terça-feira (17), Sara e o marido já haviam empacotado os pertences de seu apartamento, levando o que podiam carregar em duas mochilas e deixando o restante com parentes.
Enquanto se dirigiam ao aeroporto, eles avistaram algumas bandeiras afegãs representando o antigo governo apoiado pelos EUA, dando-lhes algum conforto de que nem tudo estava perdido.
Fora do aeroporto, um combatente do Talibã se atrapalhou com uma placa de rua na tentativa de direcionar o tráfego.
“Nós rimos, e o Talibã nos viu”, lembrou. “Ele ficou com raiva. Começou a falar ‘Vocês acham que a gente não consegue orientar o trânsito aqui? Por que estão rindo?’”
“A gente respondeu que eles fazem tudo perfeito e que não estávamos rindo deles”, relatou.
O jovem combatente parecia nunca ter visto uma cidade movimentada antes, segundo Sara.
Durante anos, o Talibã se escondeu em cadeias de montanhas remotas enquanto os exércitos dos EUA, Afeganistão e aliados os repeliam com ataques aéreos e forças terrestres. Agora, no centro de Cabul, alguns dos combatentes pareciam perdidos: eram adolescentes de olhos arregalados, usando chinelos e carregando fuzis Kalashnikovs nos ombros. Segundo Sara, os combatentes mais velhos estavam mais calmos e no controle.
Mas, no aeroporto de Cabul, a raiva dos militantes aumentou quando milhares de pessoas se aglomeraram do lado de fora do portão externo, desesperadas para entrar no aeroporto e depois sair do país.
As rotas comerciais que deixam o aeroporto estão suspensas desde o dia 16, embora alguns voos diplomáticos ainda estejam partindo.
Vários países prometeram receber refugiados afegãos, mas isso ainda exige que eles saiam do Afeganistão em primeiro lugar – e, para a maioria, isso significa passar por guardas armados do Talibã no Aeroporto Internacional Hamid Karzai de Cabul.
Às 19h de terça-feira, Sara estima que cerca de três mil pessoas estavam se acotovelando para se aproximar do terminal, segurando todos os documentos (legítimos ou não) que achavam que poderiam convencer o Talibã a deixá-los passar pelo portão.
Muitos foram informados que não seriam salvos e deveriam voltar para casa, mas eles não ouviram e continuaram tentando entrar.
“Quando alguém corria para o portão, os militares reagiam”, disse Sara.
Os combatentes do Talibã começaram a atirar para o alto e, quando as pessoas desobedeciam à ordem de se sentar no chão, começaram a açoitá-las com chicotes.
“Um francês sentado ao meu lado foi chutado no chão por um talibã duas vezes. Não importa se você tem passaporte americano, se (você) é diplomata. Não importa se você é um militar – nada importa, é preciso seguir aquele caminho”, contou. “Não há uma rota confortável para chegar ao aeroporto”.
Por 11 horas durante a noite, Sara e seu marido se empurraram ao lado de outras pessoas na multidão. Eles recusaram ordens para sair e tentaram evitar serem chicoteados ou espancados, correndo para fora do caminho dos guardas furiosos.
“Não queríamos ser removidos à força, porque muitas pessoas foram tiradas de lá assim. A gente vê nos filmes de guerra que as pessoas correm para os cantos para se manterem vivas, e é assim que é”.
“Eu também sou muçulmana”
A amiga de Sara, Zahra, ficou acordada a noite toda terça-feira, em seu apartamento em Cabul, esperando uma mensagem de Sara confirmando que ela estava em um avião. Por volta das 4 da manhã, ela não conseguiu mais ficar acordada e pegou no sono.
Zahra não saía de seu apartamento há três dias, mas manteve a comunicação com amigos em um grupo do WhatsApp no qual compartilhavam fotos de combatentes do Talibã do lado de fora de suas janelas, debatendo se seria seguro sair de casa.
“É tão calmo quando as pessoas estão com medo”, disse ela, fazendo uma referência a ditado em persa que se traduz como “o silêncio antes da tempestade”.
Ela já tinha visto os combatentes confiscando carros, mas isso foi antes de o vice-líder do Taleban, Maulvi Mohammad Yaqub, emitir ordens para não levar veículos ou entrar em casas. Mas ainda recebeu relatos de combatentes revistando casas, procurando funcionários do governo, ativistas, jornalistas e pessoas com ligações com o exterior, apesar das garantias de anistia para aqueles que apoiavam as forças norte-americanas e aliadas.
Ninguém apareceu na porta de Zahra ainda. Ela assiste ao noticiário, mas, como grande parte do mundo, não sabe como o Talibã pretende governar o Afeganistão.
O Talibã insistiu que as mulheres ainda terão direitos desta vez – desde que dentro das premissas da lei islâmica.
“Sua interpretação das regras e regulamentos islâmicos é muito diferente da nossa. Eu também sou muçulmana, mas talvez muito moderada”, afirmou.
Já está claro que a vida será diferente das décadas passadas sob o governo apoiado pelos EUA. As estradas estão fechadas e guardadas pelo Talibã, que afirma que será guiado pela lei da Sharia, mas não especificou nada sobre crimes e punições.
Quando estiveram no poder, impunham sentenças que incluíam apedrejamentos, chicotadas e execuções públicas.
Na semana passada, reportagens denunciaram que mulheres já estão sendo expulsas do trabalho e da escola e espancadas por não encobrirem ou se aventurarem a sair sem a companhia de um homem.
Até a tomada do Talibã, Zahra trabalhava com educação. Agora, ela não tem certeza se manterá seu emprego, ou mesmo quanto tempo terá que ficar dentro de casa. “O medo está lá, então ninguém sai de casa”.
Portão da morte
Na quinta-feira (19), o telefone de Zahra recebeu uma mensagem especial. Sara estava na Polônia.
Ela e o marido entraram num grupo com algumas dezenas de outras pessoas graças a um jornalista polonês que fez contato com o Talibã para deixá-los passar pelo portão do aeroporto de Cabul.
Sara tem passaporte norte-americano, mas tem contatos na Polônia, e dos dois conseguiram assentos em um avião militar polonês para levá-los primeiro ao Uzbequistão. Em seguida, eles pegaram outro voo e chegaram a um centro de refugiados nos arredores da capital polonesa, Varsóvia.
Na Polônia, os afegãos foram levados para alojamentos antes de entrarem em quarentena por causa da Covid-19.
O Afeganistão relatou mais de 150 mil casos de coronavírus desde o início da pandemia. Embora Sara tenha sido vacinada contra a Covid-19, ela perdeu o cartão de vacinação para provar isso.
Sara e seu marido não tiveram tempo de sacar o dinheiro do banco antes de fugirem. Eles têm US$ 100 (cerca de R$ 537) e alguns poucos pertences.
Mas a maior preocupação da jovem não é a falta de recursos, e sim a situação da mãe ainda em Cabul. A mulher estava doente demais para considerar a possibilidade de enfrentar os guardas talibãs no portão do aeroporto.
“Passar pelo portão foi extremamente difícil. Esse é o ponto onde as pessoas estão sendo assassinadas ou morrendo por outras causas, especialmente pessoas vulneráveis, e especialmente crianças”, relatou Sara. Na quinta-feira (19), pelo menos 12 pessoas foram mortas dentro e ao redor do aeroporto de Cabul, informou a Reuters, citando fontes da OTAN e autoridades do Talibã.
Dois dias depois que sua amiga fugiu, Zahra decidiu que era hora de partir também.
Sua mãe insistiu para que ela fosse, dizendo que ela iria “matá-la de preocupação” se ficasse. A irmã adolescente já havia fugido com a bênção de sua mãe. Então Zahra (que tem passaporte afegão) fez as malas e rumou para o aeroporto, na esperança de embarcar em um dos raros voos que saíam do país.
Mas, ao chegar, descobriu que não poderia chegar nem sequer perto do portão do aeroporto. A multidão era muito grande, e Zahra, mesmo relutante, voltou para casa.
Na sexta-feira, tentou novamente.
A última mensagem sobre seu progresso veio da amiga Sara, já na madrugada de sábado, horário de Cabul: “Ela está no aeroporto. Ouvi dizer que pode sair em breve.”