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    Relatório independente aponta possível genocídio do povo uigur na China

    Relatório afirmou que o governo “tem a responsabilidade de estado por um genocídio em curso contra os uigures em violação da Convenção de Genocídio (ONU)”

    Ben Westcott e Rebecca Wright, , da CNN, em Hong Kong

    As supostas ações do governo chinês no território de Xinjiang violaram todas as disposições da Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio das Nações Unidas, de acordo com um relatório independente feito por mais de 50 especialistas globais em direitos humanos, crimes de guerra e direito internacional. Xinjiang é um território autônomo no noroeste da China com muitas minorias étnicas, sobretudo uigures, com presença muçulmana.

    O relatório, divulgado na terça-feira (9) pelo Newlines Institute for Strategy and Policy, de Washington DC, afirmou que o governo chinês “tem a responsabilidade de estado por um genocídio em curso contra os uigures em violação da Convenção de Genocídio (ONU)”.

    É a primeira vez que uma organização não governamental realiza uma análise jurídica independente das acusações de genocídio em Xinjiang, incluindo a responsabilidade que o governo chinês pode assumir pelos supostos crimes. Uma cópia do relatório foi antecipada com exclusividade para a CNN.

    Acredita-se que até dois milhões de uigures e outras minorias muçulmanas foram colocados em uma ampla rede de centros de detenção em toda a região, de acordo com o Departamento de Estado dos EUA. Neles, ex-detentos contam que foram sujeitos a doutrinação, abuso sexual e até mesmo esterilizados à força. A China nega as acusações de abusos dos direitos humanos, dizendo que os centros são necessários para prevenir o extremismo religioso e o terrorismo.

    Falando em uma coletiva de imprensa em 7 de março, o ministro das Relações Exteriores chinês, Wang Yi, disse que as alegações de genocídio em Xinjiang “não poderiam ser mais absurdas”.

    No penúltimo dia na presidência dos Estados Unidos, 19 de janeiro, o governo de Donald Trump declarou que o governo chinês estava cometendo genocídio em Xinjiang. Um mês depois, os parlamentos da Holanda e do Canadá aprovaram moções apontando o crime, apesar da oposição de seus líderes.

    Azeem Ibrahim, diretor de iniciativas especiais da Newlines e coautor do novo relatório, disse que há evidências “esmagadoras” para apoiar a alegação de genocídio.

    “É uma grande potência global, cujas lideranças são os arquitetos de um genocídio”, afirmou.

    Bandeira da China
    Bandeira da China
    Foto: Divulgação / Pixabay

    Convenção de Genocídio

    As quatro páginas da Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio da ONU foram aprovadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas em dezembro de 1948 e têm uma definição clara do que constitui “genocídio”. A China é signatária à convenção, junto com 151 outros países.

    O Artigo II da convenção declara que o genocídio é uma tentativa de cometer atos “com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”.

    Existem cinco maneiras pelas quais o genocídio pode ocorrer, de acordo com a convenção: matar membros do grupo; causar sérios danos físicos ou mentais aos membros do grupo; infligir deliberadamente condições de vida calculadas para provocar sua destruição física no todo ou em parte; impor medidas destinadas a prevenir nascimentos dentro do grupo; ou transferir de forma forçada crianças do grupo para outro grupo.

    Desde que a convenção foi oficializada em 1948, a maioria das condenações por genocídio ocorreram nos Tribunais Criminais Internacionais mantidos pela ONU, como os de Ruanda e Iugoslávia, ou nos tribunais nacionais. Em 2006, o ex-ditador Saddam Hussein foi considerado culpado de genocídio em um tribunal no Iraque.

    No entanto, qualquer decisão de um Tribunal Criminal Internacional exige a aprovação do Conselho de Segurança da ONU, do qual a China é um membro permanente com poder de veto. Isso torna improvável qualquer audiência sobre as alegações de genocídio em Xinjiang.

    Embora a violação de apenas um ato da Convenção de Genocídio já seja uma constatação do ato, o relatório do instituto Newlines afirma que o governo chinês cumpriu todos os cinco critérios com suas ações em Xinjiang.

    “As políticas e práticas da China voltadas para os uigures na região devem ser vistas em sua totalidade, o que equivale a uma intenção de destruir os uigures como um grupo, no todo ou em parte”, escreveu o relatório.

    Um relatório separado publicado em 8 de fevereiro pelo Essex Court Chambers em Londres, que foi encomendado pelo Congresso Mundial Uigur e pelo Projeto de Direitos Humanos Uigur, chegou a uma conclusão semelhante de que há um “caso verossímil” contra o governo chinês por genocídio.

    Nenhuma pena ou punição específica é estipulada na convenção para estados ou governos que tenham cometido genocídio. Mas o relatório da Newlines disse que, de acordo com a convenção, os outros 151 signatários têm a responsabilidade de agir.

    “As obrigações da China de prevenir, punir e não cometer genocídio são erga omnes, ou seja, são devidas à comunidade internacional como um todo”, acrescentou o relatório.

    “Claro e convincente”

    Yonah Diamond, assessora jurídica do Raoul Wallenberg Center for Human Rights, que trabalhou no relatório, disse que um mal-entendido público comum sobre a definição de genocídio era que era preciso ter provas de assassinato em massa ou extermínio físico de um povo.

    “A verdadeira questão é se há evidências suficientes para mostrar que há uma intenção de destruir o grupo como tal – e é isso que este relatório revela”, explicou.

    Todas as cinco definições de genocídio estabelecidas na convenção são examinadas no relatório para determinar se as alegações contra o governo chinês cumprem cada critério específico.

    “Dada a gravidade das violações em questão, este relatório aplica um padrão de prova claro e convincente”, confirmou o relatório.

    O Newlines Institute for Strategy and Policy foi fundado em 2019 como um think tank apartidário pela Fairfax University of America, com o objetivo de “aprimorar a política externa dos EUA com base em uma compreensão profunda da geopolítica das diferentes regiões do mundo e seus sistemas de valores”. Anteriormente, o instituto era conhecido como Center for Global Policy.

    Milhares de depoimentos de testemunhas oculares de exilados uigures e documentos oficiais do governo chinês fazem parte das evidências analisadas pelos autores.

    De acordo com o relatório, entre um milhão e dois milhões de pessoas teriam sido detidas em 1.400 centros de internação extrajudicial em Xinjiang pelo governo chinês desde 2014, ano em que foi lançada uma campanha que visava ostensivamente o extremismo islâmico.

    O governo chinês afirmou que a repressão foi necessária após uma série de ataques mortais em Xinjiang e em outras partes da China, que o país classificou como terrorismo.

    O relatório detalha as alegações de agressões sexuais, tortura psicológica, tentativa de lavagem cerebral cultural e um número desconhecido de mortes dentro dos campos.

    “Nos campos, os presos uigures são privados de suas necessidades humanas básicas, severamente humilhados e submetidos a tratamento ou punição desumana, incluindo confinamento solitário sem comida por períodos prolongados”, afirmou o relatório.

    “Os suicídios se tornaram tão difundidos que os detidos devem usar uniformes ‘seguros contra suicídio’ e não têm acesso a materiais suscetíveis de causar lesões autoprovocadas”.

    O relatório também atribuiu uma queda dramática na taxa de natalidade uigur em toda a região (cerca de 33% entre 2017 e 2018) à suposta implementação de um programa oficial do governo chinês de esterilização, aborto e controle de natalidade, que em alguns casos foi imposto às mulheres sem o seu consentimento.

    O governo chinês confirmou a queda na taxa de natalidade para a CNN, mas afirmou que entre 2010 e 2018 a população uigur de Xinjiang aumentou de forma geral.

    Segundo o relatório, durante a repressão, os livros didáticos da cultura, história e literatura uigures foram supostamente retirados das aulas para crianças em idade escolar. Nos campos, os detidos aprenderam mandarim à força e foram descritos como torturados caso se recusassem ou fossem incapazes de falar a língua.

    Usando documentos públicos e discursos proferidos por funcionários do Partido Comunista, o relatório alegou que a responsabilidade pelo suposto genocídio cabia ao governo chinês.

    Os pesquisadores citaram discursos e documentos oficiais nos quais os uigures e outras minorias muçulmanas são chamados de “ervas daninhas” e “tumores”. Uma diretriz governamental supostamente pedia às autoridades locais que “quebrassem sua linhagem, suas raízes, suas conexões e suas origens”.

    “Em suma, as pessoas e entidades que perpetram os atos enumerados de genocídio são órgãos e agentes do Estado segundo a lei chinesa”, disse o relatório. “A prática desses atos enumerados de genocídio contra os uigures são, portanto, necessariamente atribuíveis ao Estado da China”.

    Rian Thum, colaborador do relatório e historiador uigur da Universidade de Manchester, no Reino Unido, disse que em 20 anos as pessoas olhariam para trás para a repressão em Xinjiang como “um dos grandes atos de destruição cultural do século”.

    “Acho que muitos uigures vão considerar este relatório como um reconhecimento do sofrimento que eles e suas famílias, amigos e comunidade passaram”, disse Thum.

    Bandeira da China em Pequim
    Bandeira da China em Pequim (27/05/2019)
    Foto: Jason Lee/Reuters

    “A mentira do século”

    O governo chinês tem defendido repetidamente suas ações em Xinjiang, dizendo que os cidadãos agora desfrutam de um alto padrão de vida.

    “A alegação de genocídio é a mentira do século, inventada por forças extremamente anti-China. É uma farsa absurda com o objetivo de difamar e vilanizar a China”, disse o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Wang Wenbin, em uma coletiva de imprensa em 4 de fevereiro.

    Os campos de detenção, que Pequim chama de “centros de treinamento vocacional”, são descritos por funcionários e pela mídia estatal como parte de uma campanha de redução da pobreza e um programa de desradicalização em massa para combater o terrorismo.

    “Mas é possível ter simultaneamente uma campanha antiterrorismo que é genocida”, disse John Packer, colaborador do relatório John Packer, professor associado da Universidade de Ottawa e ex-diretor do Escritório do Alto Comissariado da OSCE para Minorias Nacionais em Haia.

    A diretora do Congresso Mundial Uyghur do Reino Unido, Rahima Mahmut, que não esteve envolvida no relatório, disse que muitos países “dizem que não podem fazer nada, mas podem”.

    “Os países que assinaram a Convenção de Genocídio têm a obrigação de prevenir e punir. Sinto que todos os países podem agir”, afirmou.

    Embora a equipe do relatório tenha evitado fazer recomendações para manter a imparcialidade, o coautor Ibrahim disse que as implicações de suas descobertas eram “muito sérias”.

    “Não é uma peça de defesa, não estamos defendendo nenhum curso de ação. Não houve ativistas envolvidos neste relatório: ele foi feito totalmente por juristas, especialistas da área e de questões étnicas da China”, resumiu.

    Mas Packer disse que tal “violação séria da ordem internacional” na segunda maior economia do mundo levanta questões sobre a governança global.

    “Se isso não é suficiente para instigar algum tipo de ação ou mesmo para tomar posições, o que realmente é necessário?”, questionou o professor.

    (Texto traduzido. Leia o original em inglês).

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