Prisão de jornalista americano acirra confronto entre Kremlin e Washington
Detenção de Evan Gershkovich também faz o governo russo vitorioso ao causar calafrios na imprensa estrangeira da Rússia, diz analista
O jornalista americano Evan Gershkovich fez uma observação contundente no ano passado após a prisão da proeminente figura da oposição russa Ilya Yashin. “Reportar sobre a Rússia”, escreveu ele, “agora também é uma prática regular de observar pessoas que você conhece sendo trancadas por anos”.
Essas palavras têm uma ressonância terrível hoje, após a prisão de Gershkovich na cidade russa de Yekaterinburg.
O Serviço Federal de Segurança, a agência de inteligência doméstica da Rússia, afirmou na quinta-feira (30) que Gershkovich estava tentando obter segredos de Estado, uma acusação que poderia significar uma longa pena de prisão. Um tribunal distrital em Moscou disse na quinta-feira que Gershkovich ficaria detido até 29 de maio.
O “Wall Street Journal” negou categoricamente as acusações, chamando Gershkovich de “repórter confiável e dedicado”. Muitos amigos de Gershkovich se uniram em sua defesa. E a Casa Branca chamou as alegações de espionagem da Rússia de “ridículas”.
Mas o Kremlin já teve sucesso em duas frentes: a medida causa calafrios na imprensa estrangeira da Rússia e aguça ainda mais o confronto com Washington.
Na sexta-feira (31), o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, disse que jornalistas estrangeiros credenciados poderiam continuar trabalhando no país, quando questionado sobre o conselho editorial do jornal instando o governo Biden a considerar retaliação diplomática e política contra a Rússia.
“Todos os jornalistas estrangeiros que possuem credenciamento válido aqui podem continuar suas atividades jornalísticas em nosso país”, disse Peskov. “Eles não enfrentam nenhuma restrição e trabalham bem”.
Essa declaração branda, é claro, contém uma inverdade descarada.
A Rússia reprimiu extensivamente suas poucas liberdades de imprensa desde a invasão em grande escala da Ucrânia no ano passado, particularmente com a aprovação de uma lei que torna crime disseminar informações “falsas” sobre as chamadas “informações militares especiais” da Rússia ou desacreditar os militares russos.
Yashin, o líder da oposição, por exemplo, foi condenado a oito anos e meio por espalhar “informações falsas” sobre a guerra na Ucrânia.
Ilya Yashin, one of the last prominent opposition politicians in Russia, is now facing 10 years in prison for spreading fake news about the war. He predicted this when I spoke to him a few weeks ago while he was still a free man and said he was prepared for it pic.twitter.com/KxE9EyxEE0
— Evan Gershkovich (@evangershkovich) July 12, 2022
A prisão de Gershkovich aperta ainda mais os parafusos. Uma declaração da porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova, foi particularmente digna de nota para quem já trabalhou como jornalista credenciado na Rússia.
“Sob o disfarce do jornalismo, essa pessoa estava envolvida em uma atividade completamente diferente”, disse ela. “Tem muitos relatos de que ele tinha credenciamento, então ele é jornalista. Não, não, não… isso é o que ele afirma ser”.
Vamos deixar de lado o fato de que Gershkovich trabalha para um jornal com alguns dos padrões editoriais mais rigorosos do mundo – antes de ingressar na CNN, eu era chefe do escritório de Moscou do WSJ. Tais declarações não são tranqüilizadoras: elas sugerem que qualquer um que trabalhe na Rússia como um jornalista legítimo pode ser acusado de espionagem.
O estado já apresentou acusações semelhantes contra jornalistas russos: o caso recente mais famoso é o do ex-repórter de defesa Ivan Safronov, condenado no ano passado a 22 anos de prisão por supostamente divulgar informações sigilosas.
A virada feia e repressiva do estado russo atingiu cidadãos comuns, bem como jornalistas e ativistas da oposição.
Um tribunal russo condenou recentemente um homem a dois anos de prisão cuja filha de 13 anos fez um desenho contra a guerra na escola por seus próprios comentários online críticos à invasão da Ucrânia pela Rússia. Depois que o homem foi colocado em prisão domiciliar, sua filha foi levada para um orfanato.
As condenações de Washington à prisão de Gershkovich foram rápidas.
O deputado Adam Schiff, um democrata da Califórnia que é o ex-presidente do Comitê de Inteligência da Câmara, disse à CNN que este último movimento deve ser visto “em conjunto com os anúncios nucleares, a revogação das obrigações de tratado, como uma forma de apenas aumentar pressão sobre o Ocidente, sinalizando que Moscou usará todas as ferramentas de que dispõe, incluindo essencialmente a tomada de reféns, para tentar impedir os Estados Unidos e o Ocidente de se oporem às suas ambições na Ucrânia”.
Schiff estava se referindo ao anúncio do presidente russo, Vladimir Putin, de que estava suspendendo a participação de Moscou no novo tratado de redução de armas nucleares, START, uma declaração que ele fez em um discurso de estado da nação em fevereiro.
A Rússia disse que todas as notificações nucleares foram suspensas – embora o Departamento de Estado dos EUA diga que não recebeu notificação formal da Rússia – aumentando ainda mais as tensões com os EUA.
O presidente Joe Biden foi direto sobre a prisão. “Deixe-o ir”, disse Biden a Arlette Saenz, da CNN, na Casa Branca.
Mas não está claro que tipo de influência o governo Biden pode ter sobre a Rússia.
Em dezembro, os EUA conseguiram garantir a libertação da estrela do basquete Brittney Griner, detida no ano passado pelo que os EUA descreveram como acusações forjadas de tráfico de drogas, em uma troca de prisioneiros pelo traficante de armas russo Viktor Bout. Mas a troca não incluiu outro americano que o Departamento de Estado declarou como detido ilegalmente, Paul Whelan.
Em um e-mail à imprensa, o irmão de Paul, David, disse: “Nossa família lamenta saber que outra família americana terá que passar pelo mesmo trauma que tivemos de suportar nos últimos 1.553 dias”.
É uma avaliação sombria da situação. As relações EUA-Rússia continuam atingindo novos marcas negativas, mas a velha sabedoria permanece verdadeira na Rússia: бывает и хуже (sempre pode ser pior).
*Com informações de Sarah Dean, Jennifer Hansler e Tim Lister.