Primeiro-ministro deposto do Paquistão diz que EUA conspiram contra ele
Segundo especialistas, desconfiança mútua de décadas, principalmente após eventos ocorridos no vizinho Afeganistão, fazem alegações parecerem reais aos paquistaneses
Em cima de um caminhão, cercado por uma enorme multidão, Imran Khan, visivelmente enfurecido, repetia a afirmação que se tornou um grito de guerra para seus milhões de apoiadores.
O Paquistão, dizia o ex-primeiro-ministro deposto, estava sendo governado por “traidores” instalados por “uma conspiração estrangeira” tramada pelos Estados Unidos.
Khan estava discursando na manhã de quinta-feira (26) na capital, Islamabad, no que ele disse ser “o maior protesto de todos os tempos” na história do país, depois que manifestantes entraram em confronto com seguranças e ele foi forçado a encerrar o evento.
Mas suas palavras foram acompanhadas de um aviso: “Estou dando a este governo importado seis dias para declarar novas eleições. Caso contrário, voltarei a Islamabad com 2 milhões de pessoas”.
Gritos arrebatadores de apoio e de indignação contra os Estados Unidos e a atual administração paquistanesa ecoaram pela multidão.
As alegações de Khan de que havia uma conspiração liderada pelos EUA contra ele tornaram-se um marco nos muitos comícios que ele tem realizado em todo o Paquistão, em uma tentativa de retornar ao poder após sua deposição em 10 de abril em uma moção de censura parlamentar.
As alegações atingiram uma população jovem em um país onde o sentimento antiamericano é comum e o anti-convencionalismo está sendo alimentados por uma crise crescente do custo de vida.
Mas os críticos de Khan dizem que há um problema em suas alegações: não há evidências de uma conspiração.
Tanto os militares dos EUA quanto do Paquistão negaram vigorosamente as alegações de Khan, e o ex-primeiro-ministro se recusou a oferecer qualquer prova substancial para apoiá-las.
“Imran Khan está tentando aproveitar os sentimentos antiamericanos para mobilizar apoio”, disse Maleeha Lodhi, ex-embaixadora paquistanesa nos EUA e nas Nações Unidas. O “grupo leal dos apoiadores de Khan [está] pronto para descartar os fatos e acreditar em sua narrativa de conspiração estrangeira, mesmo que não haja um pingo de evidência para apoiá-la”.
O objetivo, disse Lodhi, é claro: Khan vê a possibilidade de usar as animosidades de décadas como seu caminho de volta ao poder.
Quais são as alegações de conspiração de Khan
Khan afirmou repetidamente que Donald Lu, secretário-assistente do escritório de Assuntos da Ásia Meridional e Central dos EUA, se encontrou com o embaixador do Paquistão em Washington, em março, e disse a ele que Khan deveria ser demitido do poder em uma moção de censura.
Khan disse à CNN na segunda-feira (23) que Lu ameaçou dizendo que o Paquistão “sofreria consequências” a menos que ele fosse retirado do poder.
“Não há verdade nessas alegações”, disse um porta-voz do Departamento de Estado dos EUA à CNN, tendo anteriormente negado envolvimento na deposição de Khan.
Quando solicitado a fornecer evidências de suas alegações, Khan disse que havia anotações feitas tanto do lado norte-americano quanto do paquistanês na reunião, mas não respondeu diretamente quando perguntado se ele tornaria alguma anotação pública – para cada uma das alegações.
Ele também disse com evidências que uma cifra – um cabo diplomático codificado – descrevendo os detalhes da reunião enviado pelo embaixador paquistanês foi encaminhado ao gabinete do Paquistão. Khan afirmou que apresentou a ata dessa reunião ao Conselho de Segurança Nacional do Paquistão (CSNP).
O CSNP rejeitou firmemente as acusações de Khan no mês passado, dizendo em um comunicado que “não encontraram evidências de qualquer conspiração”.
Khan também disse estar ciente de que sua visita oficial a Moscou no final de fevereiro, coincidindo com o dia da invasão russa da Ucrânia, provavelmente irritou as autoridades americanas.
Além disso, Khan acusou anteriormente os militares do Paquistão e a oposição liderada pelo atual primeiro-ministro, Shehbaz Sharif, de conspirar com os EUA, o que ambos negam.
“As pessoas estão tão indignadas e se sentem insultadas pelo fato de esses criminosos terem sido impingidos a nós”, disse Khan.
Uma história de desconfiança
Para entender como até mesmo a mais frágil das teorias da conspiração pode se mostrar uma ferramenta de mobilização tão potente nesta democracia de 220 milhões de pessoas no sul da Ásia, os especialistas apontam para a desconfiança mútua que já vem apodrecendo há décadas.
É um período de tempo notável que abrange guerras às portas do Paquistão, traições percebidas, operações de forças especiais e empreiteiros desonestos da CIA. De acordo com o analista político Hussain Nadim, de Islamabad, considerando esse pano de fundo, as afirmações “das conspirações estrangeiras não parecem muito estranhas”.
Na verdade, elas são até “acreditáveis”, disse ele.
Grande parte da desconfiança decorre de eventos ocorridos no vizinho Afeganistão, onde muitos paquistaneses culpam as ações dos EUA por desestabilizar seu próprio país – incluindo ataques de militantes baseados no Afeganistão em solo paquistanês.
As cenas caóticas dos afegãos desesperados para escapar do avanço do Talibã estão frescas na mente dos paquistaneses, que se lembram dos afegãos agarrados às rodas dos aviões que decolavam do aeroporto de Cabul, em agosto de 2021. E à medida que a situação de segurança se deteriora, muitos paquistaneses sentem que são eles que pagarão o preço.
A invasão do Afeganistão pelos EUA em 2001, após os ataques de 11 de setembro – quando lançou sua caça a Osama bin Laden e sua rede terrorista Al Qaeda – só aprofundou a divisão.
Enquanto o Paquistão foi cedo para assinar a “guerra ao terror” de George W. Bush, muitos no país de maioria muçulmana viram a invasão – e a subsequente guerra no Iraque – mirando no Islã.
Uma série de controvérsias de guerra exacerbou esse sentimento; Islamabad acusou os EUA de matar milhares de paquistaneses em ataques de drones em solo paquistanês e se sentiu humilhado quando os EUA não avisaram antecipadamente sobre o ataque dos Navy Seals ao esconderijo de Bin Laden na cidade militar paquistanesa de Abbottabad, em 2011.
A raiva do país foi exacerbada após um falso programa de vacinação que a CIA promoveu em uma tentativa de coletar amostras de DNA para verificar a presença de Bin Laden no complexo. A operação foi um sucesso aos olhos dos americanos, mas os paquistaneses responderam com ceticismo, raiva e violência em relação à vacinas.
Em 2011, um empreiteiro americano da CIA chamado Raymond Davis matou dois homens paquistaneses em Lahore. Davis alegou que atirou nos homens em legítima defesa quando eles tentaram roubá-lo com uma arma, mas as autoridades na época chamaram o caso de “assassinato claro”.
Ele foi acusado de assassinato e posse ilegal de arma de fogo, mas foi absolvido depois que mais de US$ 2 milhões em indenização foram pagos às famílias das vítimas. O incidente aumentou as tensões entre as duas nações, com o Congresso alertando os líderes paquistaneses de que bilhões de dólares em ajuda dos EUA poderiam ser comprometidos caso Davis não fosse libertado.
Tais eventos causaram “danos irreparáveis à confiança”, de acordo com Hassan Kamal Wattoo, advogado e colunista de Islamabad, que acrescentou que isso está “dando credibilidade à crença de que figuras sombrias estão conspirando contra o Paquistão de longe”.
‘Crença cega’
Essa história conturbada explica de alguma forma por que, mesmo quando Khan estava no cargo – exceto por um breve período de simpatia com o ex-presidente dos EUA, Donald Trump – ele estava ansioso para usar a cartada antiamericana.
Agora que está buscando um retorno ao poder, Khan procura uma ferramenta familiar para angariar apoio, disse Madiha Afzal, pesquisadora de política externa da The Brookings Institution.
“Isso faz parte de uma longa história de teorias da conspiração ganhando força no Paquistão, especialmente sobre o papel do Ocidente no país”, disse ela.
“É algo que seus apoiadores acreditam cegamente”.
A carreira estelar de Khan no críquete garantiu seu apelo duradouro com os eleitores. Aproveitando uma onda de apoio popular, ele foi eleito há quatro anos com a promessa de erradicar a pobreza e a corrupção e de construir um “novo Paquistão”.
De acordo com Afzal, da Brookings Institution, os apoiadores de Khan foram atraídos pelo argumento do ex-primeiro-ministro de que é a corrupção dos partidos tradicionais “que governaram o Paquistão durante grande parte de seu período democrático é onde está a raiz dos problemas do Paquistão”.
O primeiro-ministro do Paquistão, Shehbaz Sharif – que liderou a campanha para remover Khan do cargo de primeiro-ministro, junto com seu partido no poder, a Liga Muçulmana do Paquistão – é um herdeiro da dinastia do aço que enfrenta acusações de corrupção não resolvidas.
Seu irmão, Nawaz Sharif, é um ex-primeiro-ministro que foi três vezes acusado de corrupção e impedido pelo mais alto tribunal do Paquistão de ocupar cargos políticos.
De acordo com a ex-embaixadora Lodhi, há agora “uma onda de simpatia por Khan” devido a forma como ele foi derrubado.
E o advogado Wattoo disse que os apoiadores de Khan o veem como uma “alternativa independente e destemida para uma elite política mais convencional”.
O que acontece depois?
Ainda não se sabe se esse apoio será suficiente para devolver Khan ao poder. Mas o que parece claro é que, com mais de um mês de mandato, o governo de Shehbaz Sharif pouco fez para lidar com as crescentes inflação e crise econômica que contribuíram para a deposição de Khan.
Enquanto, na quinta-feira (26), o governo suspendeu o teto sobre os preços dos combustíveis, o que permitirá a aprovação de um acordo muito necessário com o Fundo Monetário Internacional (FMI), a jornalista financeira Ariba Shahid, que está baseada em Karachi, disse que a disputa pelo poder só está dificultando as coisas.
“Essa necessidade de influência política está custando à inflação média de longo prazo do Paquistão, uma rúpia em rápida desvalorização e, eventualmente, impostos mais altos para compensar o grande déficit”, disse ela.
Enquanto isso, a popularidade de Khan “subiu a níveis sem precedentes”, disse o analista político Nadim.
Para seus apoiadores – principalmente jovens, de classe média, que estão cansados da corrupção e da elite política – Khan ainda é a escolha óbvia como líder do país.
“(Sua expulsão) deu a ele vitimização e fez dele uma tragédia política”, disse Nadim, acrescentando que foram “duas emoções muito poderosas” que galvanizaram o apoio público de Khan.