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    O que as tentativas de Putin de reescrever passado dizem sobre futuro da Rússia

    Para presidente russo, o surgimento de uma Ucrânia soberana e independente é uma ferramenta do Ocidente para enfraquecer a Rússia

    O presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante fórum econômico em São Petersburgo
    O presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante fórum econômico em São Petersburgo via REUTERS

    Nathan Hodgeda CNN

    O passado do presidente russo Vladimir Putin ganhou destaque recentemente com a admissão de que, nos dias tumultuados que seguiram o colapso da União Soviética, ele ganhou dinheiro como motorista de táxi.

    “Às vezes, eu tinha que fazer um trabalho noturno e dirigir um táxi”, disse Putin em um trecho de uma entrevista para “Rússia. Nova História”, um documentário da televisão estatal. “É desagradável falar sobre isso, mas, infelizmente, isso aconteceu”, complementou.

    A revelação, na verdade, nos diz muito pouco sobre a sina pós-soviética do ex-oficial da KGB (entidade espiã russa). Era bastante comum no vale-tudo econômico da década de 1990 que os motoristas russos aceitassem passageiros por alguns rublos extras. Nos dias anteriores ao transporte por aplicativos, tudo o que precisava fazer era sinalizar para um carro que passava e concordar com a tarifa que seria cobrada.

    A confissão de Putin sobre o táxi não foi um momento de candura – o Kremlin, afinal, guarda de perto os detalhes reais de sua vida pessoal. Mas esse pequeno momento biográfico revela algo sobre o objetivo político abrangente de Putin: rebobinar a fita até 1991 e compor um roteiro alternativo para as décadas que se seguiram.

    “Nós nos transformamos em um país completamente diferente. E o que havia sido construído ao longo de mil anos foi em grande parte perdido”, lamentou na entrevista o líder russo de longa data.

    Nos últimos meses, o projeto favorito de Putin tem sido uma tentativa de reescrever um dos capítulos mais significativos da história europeia recente: o surgimento, em 1991, de uma Ucrânia soberana e independente – vizinha da Rússia.

    Em junho, durante um call-in show televisionado nacionalmente, Putin declarou que ucranianos e russos eram um “único povo”. Ele então elaborou o assunto em um artigo de cinco mil palavras em que lamentava a “divisão artificial entre russos e ucranianos”.

    Despojado em sua essência, o argumento de Putin era que a Ucrânia e os ucranianos fazem parte de uma “Rússia histórica” maior – e que a atual Ucrânia, que conquistou a independência em 1991, era apenas o subproduto das fronteiras administrativas e territoriais elaboradas pela liderança soviética.

    O presidente russo não fez nenhuma menção, é claro, aos milhões de ucranianos que votaram esmagadoramente a favor da independência.

    Não, na opinião de Putin, a Ucrânia pós-soviética tornou-se uma ferramenta do Ocidente para enfraquecer a Rússia.

    “A Ucrânia foi arrastada para um perigoso jogo geopolítico com o objetivo de transformar o país em uma barreira entre a Europa e a Rússia, um trampolim contra a Rússia”, escreveu ele. “Inevitavelmente, chegou a um momento em que o conceito de ‘Ucrânia não é a Rússia’ não era mais uma opção. Havia uma necessidade para o conceito de ‘anti-Rússia’, ao qual nunca aceitaremos”, completou.

    Em outras palavras, Putin parecia estar testando uma justificativa histórica – caso necessário – para a mudança de regime na Ucrânia.

    E nos meses que se seguiram à incursão de Putin na história, o aumento de tropas russas na fronteira com a Ucrânia enviou um sinal claro de que a invasão era uma opção em jogo.

    Avaliações da segurança ucraniana dizem que a Rússia aumentou o efetivo das tropas perto da fronteira em 120 mil pessoas, e os Estados Unidos compartilharam informações com aliados da Otan e parceiros europeus sobre movimentos de tropas e equipamentos perto da Ucrânia, os quais as autoridades americanas acreditam que apontam para uma potencial invasão.

    O Kremlin nega os planos de atacar a Ucrânia, e o Ministério da Defesa diz que estão ocorrendo exercícios militares de inverno “regulares” na região militar que faz fronteira com a Ucrânia.

    Nesta quinta-feira (23), durante sua maratona anual de coletivas de imprensa, Putin disse aos jornalistas nacionais e internacionais que a Rússia “não quer nenhuma ação militar”, mas apontou o dedo para os EUA e para a Otan.

    “Pedimos diretamente que não houvesse mais nenhum movimento da Otan para o leste. A bola está no campo deles”, afirmou. Mais tarde, ele acrescentou: “Às vezes, sinto que estamos em planetas diferentes”.

    Chame isso de “autopiedade como política externa”. As humilhações da década de 1990, desde a perda do status de poder até a segunda opção de renda como motorista de táxi em São Petersburgo, servem para justificar o projeto de restauração da “Grande Rússia” de Putin.

    Com certeza, as queixas de Putin em relação à Ucrânia não são novidade. Ele tocou nos mesmos temas em seu discurso de 2007 na Conferência de Segurança de Munique: a duplicidade de uma aliança da Otan em expansão bem na porta da Rússia e a mão escondida do Ocidente, provocando protestos nas rua da Ucrânia.

    O presidente pode estar bancando o historiador amador, mas sua memória histórica é decididamente seletiva.

    Os promotores da Rússia de Putin tomaram medidas para fechar a International Memorial Society, uma organização cívica respeitada dedicada a documentar e educar o público sobre a história do totalitarismo soviético, incluindo o sistema Gulag de trabalho forçado, a prisão de dissidentes e as ondas de execuções que ocorreram na URSS.

    Em uma recente palestra para o Prêmio Nobel da Paz, o jornalista investigativo russo Dmitry Muratov defendeu o Memorial, chamando a organização de “amiga do povo” – uma caracterização justa de uma organização que trava uma luta muitas vezes solitária para preservar a memória das vítimas do sistema soviético.

    O Memorial foi designado um “agente estrangeiro” pelo Kremlin.

    Muratov também tinha algo a falar sobre o assunto favorito de Putin, a Ucrânia, afirmando que o apoio da Rússia aos separatistas no leste do país havia acabado com as chances de amizade russo-ucraniana.

    “Além disso, na cabeça de alguns geopolíticos malucos, uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia não é mais algo impossível”, disse Muratov, que cobriu o conflito na região separatista da Chechênia na década de 1990. “Mas eu sei que as guerras terminam com a identificação de soldados [mortos] e a troca de prisioneiros”, pontou.

    Isso não quer dizer que Putin invadirá a Ucrânia. Pressionado no final de outubro sobre como ele propunha interromper a expansão potencial da Otan na nação do leste europeu, Putin disse: “Infelizmente, eu provavelmente irei desapontá-lo – ainda não sei a resposta para essa pergunta”.

    Este conteúdo foi criado originalmente em inglês.

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