O inverno que pode mudar o curso da guerra na Ucrânia
Temperaturas congelantes terão impactos na população e nas tropas que atuam na resistência à invasão russa
Os pais dos alunos que estudam na escola onde Mariya Yasnyska trabalha, no oeste da Ucrânia receberam a notícia de que as aulas poderão voltar a ser online. A volta do ensino a distância no país se torna cada vez mais uma realidade, à medida que o rigoroso inverno se aproxima e a possibilidade de os colégios ficarem sem aquecimento passa a ser considerada uma realidade.
“Trabalharemos offline o quanto for possível, mas se não pudermos, os estudos serão online. Eles [os pais] concordaram”. Além disso, a professora explica que o período de pausa que os alunos teriam no outono foi movido para o inverno.
Os ucranianos têm vivido em um mundo de incertezas e precauções desde o dia 24 de fevereiro, quando o silêncio gelado da madrugada foi interrompido pelo som das explosões provocadas pela invasão russa.
Desde então, parte do curso da guerra tem seguido a mudança nas estações. Na primavera, por exemplo, tanques russos ficaram atolados e atrasaram uma fila quilométrica que avançava em direção à capital, Kiev. Mas nos próximos meses, o país voltará a enfrentar o período mais frio do ano. Dependendo da região, as temperaturas podem despencar a -20º. Nessa temperatura, é praticamente impossível viver sem alguma forma de aquecimento.
O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, informou na última terça-feira (18) que os ataques russos têm sido concentrados em infraestruturas críticas, particularmente relacionadas ao fornecimento de energia. “Desde o dia 10 de outubro, 30% das centrais elétricas ucranianas foram destruídas, causando largos apagões por todo o país”, escreveu. Com os recentes ataques, líderes regionais têm pedido à população que reduzisse o consumo energético.
A precaução se tornou parte do padrão de vida dos ucranianos. Mariya conta que fogões a lenha, muitas vezes utilizados para decorar os ambientes, voltaram a ser comprados para aquecer as casas em caso de falta de gás ou de energia elétrica.
Outro item que voltou a ser imprescindível são as velas que podem queimar de 50 a 100 horas. “Certamente estará mais frio, mas os serviços de reparo têm sido rápidos. Depois da última sirene, ficamos por cerca de dez horas sem energia. Teremos outras situações no futuro e é importante ter uma fonte de calor, em caso de necessidade”. disse Mariya.
Sem um sistema de aquecimento à moda antiga em sua casa, Mariya precisa pensar no que fazer em um cenário de total escassez. Por enquanto, a melhor alternativa será buscar abrigo na casa dos sogros, no interior de Lviv.
“Tudo é possível. E espero que não fiquemos muito tempo sem eletricidade, porque com eletricidade você pode comprar aquecedores especiais. Também é possível se aquecer com gás. Se não tivermos nada, eu e o Andriy [marido] provavelmente nos mudaremos para a casa dos pais dele, onde há uma lareira que mantem os quartos aquecidos. Esperaremos que até lá tudo esteja consertado”, conta.
Impactos diferentes em cada região
A Ucrânia está entre os maiores países da Europa. Esse fator contribui para que os impactos da guerra sejam diferentes em cada região do país. Cidades a oeste, por exemplo, têm servido de apoio às tropas que estão concentradas no leste e no sul da Ucrânia.
Mas independentemente da região, para o professor de Relações Internacionais da ESPM Gunther Rudzit, os impactos negativos do inverno serão sentidos principalmente pela população civil, que já está acostumada a viver com energia e gás durante o período mais frio.
“Eles tendo que voltar para a lenha, para a madeira, podem até sobreviver, mas não é todo mundo. Tem gente ainda em cidades, prédios. Como é que você consegue se manter aquecido dentro de um prédio?”, questiona.
O professor considera que a chegada do inverno também vai levar graves problemas para as linhas de contato. “Vai ser uma crise humanitária gigantesca. E vai ser um desafio para a logística militar também. Porque manter os equipamentos militares funcionando nas temperaturas negativas que chegam lá não é fácil. Será preciso uma nova logística que não foi enviada até agora para lá. Principalmente com os equipamentos modernos que estão chegando, em especial os americanos”, explica.
Ajuda estrangeira à Ucrânia
Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, os Estados Unidos investiram quase US$ 18 bilhões em assistência e equipamentos de guerra para a Ucrânia. Além disso, o governo de Joe Biden tem buscado apoio de outros países contra a ofensiva de Vladimir Putin.
Na última terça-feira (18), por exemplo, a embaixada norte-americana na Guatemala organizou um evento virtual com ativistas e um jornalista que trabalham na Ucrânia.
“Apesar de a Ucrânia parecer longe da América Latina, o custo da guerra de Putin está afetando a todos nós. E os custos seguem aumentando”, explicou o embaixador dos EUA na Guatemala, William Popp.
O diplomata, que já serviu como encarregado de negócios na embaixada dos EUA no Brasil, reforçou a posição do governo de Biden: “apoio constante à soberania e integridade territorial da Ucrânia. Vamos continuar a prestar assistência econômica, humanitária e de segurança, para que a Ucrânia possa se defender e cuidar deste povo”, afirmou.
O Brasil tem defendido um acordo de paz e votou a favor de uma resolução que condena a anexação de territórios ucranianos pelo Kremlin, na Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Apesar disso, o governo brasileiro optou por não adotar sanções contra a Rússia.
Ataques a estruturas de energia
A ex-chefe do Comitê de Relações Exteriores do parlamento ucraniano Hanna Hopko afirmou que “o genocídio russo não é apenas um problema europeu” e destacou dificuldades que podem ser enfrentadas no período mais gelado do ano.
A especialista em direitos humanos acredita que o governo russo buscará destruir estruturas de energia antes do inverno, para congelar as cidades e criar condições de empregar uma estratégia que já foi utilizada pela então União Soviética no século passado: a fome coletiva.
No início da década de 1930, o regime liderado por Joseph Stalin impôs um período conhecido como A Grande Fome, no qual a colheita de grãos e cereais de camponeses de países da URSS eram controlados pelo Estado. O período, chamado na Ucrânia de Holodomor, cuja tradução significa algo como “deixar morrer de fome”, deixou milhões de mortos. A estratégia, segundo Hopko, faz parte de um plano russo de utilizar o inverno como arma.
Em contrapartida, a ex-parlamentar, que atualmente compõe o Centro de Anticorrupção da Ucrânia (AntAC em inglês), acredita ser possível evitar mais ataques às estruturas ucranianas com reforços aos sistemas de defesa antiaérea e reparos em centrais danificadas.
A especialista disse que a Ucrânia compreendeu a estratégia dos russos e citou os recentes ataques de drones a usinas de energia. “Isso não vai parar a nossa luta, nossa contraofensiva, operações e busca pelos territórios. Esperamos que os europeus desenvolvam uma estratégia de pacificação energética e não permitam que a Rússia chantageie toda a Europa, utilizando a energia como arma.” Hopko afirmou ainda que prefeitos das grandes cidades ucranianas estão sendo preparados para elaborar planos de resposta aos ataques às infraestruturas críticas.
“Guerra de logística”
Para o repórter ucraniano Illia Ponomarenko, do jornal Kyiv Independent, que cobre a guerra desde os primeiros dias da invasão russa, a chegada do inverno é atualmente o maior problema da Ucrânia. O jornalista especializado em segurança e defesa acredita que a batalha pela manutenção de sistemas de aquecimento será uma nova linha de frente e o sucesso ou fracasso da chamada “guerra de logística” até o período da primavera definirá o restante da guerra.
De acordo com o repórter, que está baseado na região do Donbass, no leste da Ucrânia, tanto as tropas ucranianas quanto as russas enfrentarão problemas com a chegada do inverno. “Haverá uma dificuldade dos dois sistemas. De quem consegue ser melhor no fornecimento às tropas. Roupas, comida e várias outras coisas. Acredito que os ucranianos serão melhores nisso, porque provamos sermos melhores em logística”, afirmou.
Além dos impactos do frio na população e nas tropas, a chegada do inverno preocupa o professor Gunther Rudzit pelas reações que o Kremlin pode ter em caso de colapso do exército russo. De acordo com ele, possíveis baixas e deserções poderiam contribuir para a utilização de uma arma nuclear de baixa intensidade. “Chega o inverno e se eles [russos] não tiverem como se manter no mínimo aquecidos, essa frente russa pode colapsar. E ai há um perigo de uma escalada da guerra”, explica.
Enquanto isso, Mariya se mantém otimista. Mas ela admite que o momento mais assustador da guerra até agora foi quando chegaram as primeiras notícias sobre ataques nucleares. Ela explica, porém, que após repetidas ameaças, houve uma espécie de normalização em relação a uma possível ofensiva nuclear. Além disso, ela entende que os russos distorcem a realidade ucraniana. “Nosso inverno é frio, mas não tanto como a propaganda russa quer que todos acreditem ser”.
Em meio ao aumento diário de sirenes que indicam uma possível ameaça, a professora sugere que a precaução deve ser coletiva. “Nos pediram para gastar menos energia, então estamos desligando equipamentos elétricos. Não estamos usando as luzes à tarde. São pequenas coisas, mas é o que podemos fazer”. Em meio a uma pausa contemplativa, a ucraniana sorri. “Não podemos fazer muito. Será um duro e gelado inverno. Vamos ver.”