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    Não acorde o gigante nuclear à nossa porta, diz ucraniana que viveu em Zaporizhzhia

    Maior usina nuclear da Europa, próxima a cidade ucraniana de Zaporizhzhia, é local de bombardeio russo e temores de desastre, relembrando aos moradores catástrofe de Chernobyl

    Sasha Dovzhyk*colaboração para a CNN

    Com que tipo de inimigo você lutou em seus pesadelos quando criança? O meu não tinha forma, nem voz, nem cheiro ou sabor, mas podia rastejar sob a minha pele e me corroer por dentro.

    Desde os 10 anos, quando me deparei com um livro sobre as consequências do desastre nuclear de Chornobyl*, tive pesadelos regulares sobre envenenamento por radiação. Minha melhor amiga e parceira de escrita teve que sofrer com minhas interpretações desses pesadelos em prosa e verso ao longo de nossos anos escolares.

    Crescendo em Zaporizhzhia, a cidade do sudeste da Ucrânia, a cerca de 50 quilômetros da maior usina nuclear da Europa – agora, local de bombardeio da Rússia e dos crescentes temores de um desastre nuclear – nós não éramos estranhas à ansiedade atômica.

    Afinal, a catástrofe de Chornobyl, que acontecera apenas dois anos antes de eu nascer, aparecia regularmente no currículo escolar.

    Livros didáticos à parte, minha tia estava entre os cidadãos soviéticos que marchavam sem saber no centro de Kiev durante o desfile de 1º de maio de 1986, enquanto, a cerca de 110 quilômetros ao norte, o reator 4 de Chornobyl estava soprando radiação no céu.

    Enquanto o mundo ocidental está de luto pela morte de Mikhail Gorbachev, os ucranianos lembram do último governante soviético por aquelas festividades em Kiev, que já enfrentava a radiação, e o disfarce dele para encobrir Chornobyl.

    Em nosso último ano na escola, fizemos uma viagem a Enerhodar, uma pequena cidade que abriga a usina nuclear de Zaporizhzhia. Eu estava secretamente desapontada com a monotonia ordenada da estação.

    Ao longo dos anos 2000, a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) classificou a usina como uma das mais bem administradas do mundo.

    A usina parecia arrumada, bem organizada, assim como os milhares de funcionários encarregados de seus seis reatores nucleares. Minha lembrança mais forte daquela viagem foi o ônibus quebrando nos campos no caminho de volta para casa.

    Agora, duas décadas depois, esses campos estão em chamas, minha cidade natal está nas garras da guerra e os bons profissionais da usina nuclear de Zaporizhzhia foram feitos reféns pelos invasores e trabalham sob enormes pressões físicas e psicológicas.

    Tia de Sasha Dovzhyk, Tetiana Kulihina, com amigos em Kiev, maio de 1986 / Sasha Dovzhyk / Arquivo Pessoal

    Eu me pergunto o quão organizada a usina está, com quase 50 itens de equipamento militar armazenados no local de onde os russos bombardeiam regularmente a cidade ucraniana de Nikopol, lançando até 120 foguetes por noite.

    Duvido que a comissão da AIEA que inspeciona a estação a classifique entre as mais seguras do mundo novamente.

    O exército russo capturou a usina nuclear de Zaporizhzhia em março, com funcionários operando sob a mira de armas. Isso aconteceu em uma rara noite que passei sozinha em um apartamento alugado em Lviv.

    Durante aquelas primeiras semanas da invasão em grande escala, era normal dividir acomodação com muitos amigos e não conhecidos: ucranianos do leste, sul e norte do país estavam se movendo para o oeste, fugindo das tropas invasoras e dos bombardeios.

    Entre eles estavam meus pais que tinham acabado de partir para a Alemanha. Minha melhor amiga, a fiel leitora de meus desabafos escritos de inspiração nuclear na adolescência, estava saindo de Zaporizhzhia a caminho de Lviv junto com sua jovem família.

    Um alerta de notícias me acordou depois de meia hora de sono ansioso. Assisti a um vídeo dos militares russos bombardeando a usina nuclear que havia lançado uma sombra sobre minha infância.

    Nos meus pesadelos, as pessoas eram mais espertas do que isso. Isso não era um sonho. A realidade acabou sendo muito mais sinistra.

    Sasha Dovzhyk com sua melhor amiga, Diliara Didenko, em Zaporizhzhia, em 2002 / Sasha Dovzhyk / Arquivo Pessoal

    Os militares russos que bombardeiam os reatores podem ser homens-bomba. Ou, eles podem não ter educação básica sobre os riscos da radiação, algo que uma criança ucraniana comum conhece muito.

    A mesma falta de conhecimento foi exibida na decisão dos invasores de cavar trincheiras na Floresta Vermelha durante sua missão abortada em Kiev. Situada no coração da Zona de Exclusão de Chornobyl, a floresta é um dos locais nucleares mais contaminados do mundo. É impossível imaginar um ucraniano perturbando esse cemitério de lixo radioativo.

    A tragédia de Chornobyl faz parte da memória coletiva na Ucrânia. Infiltrou-se na literatura nacional e impulsionou a política.

    Documentando a experiência dos sobreviventes, escritores ucranianos como Ivan Drach e Volodymyr Yavorivskyi se tornaram ativistas antinucleares, fundaram organizações políticas de base e fizeram campanha pela nossa independência de Moscou – que permitiu que o pior desastre nuclear da história ocorresse em solo ucraniano e minimizou as consequências.

    De fato, o encobrimento do desastre pelo Kremlin tornou-se uma causa poderosa que permitiu que ambientalistas e dissidentes ucranianos abalassem os alicerces do domínio soviético.

    Cinco anos após a catástrofe, os ucranianos se retiraram da União Soviética. A independência do Estado ucraniano moderno tem uma marca de nascença nuclear. Essa associação política torna a energia nuclear o tema de lembrança na Ucrânia – e o local da amnésia na Rússia.

    Em março, abracei minha melhor amiga que estava prestes a cruzar a fronteira e buscar segurança para seus filhos na Europa Ocidental. Como lembrança, dei a ela meu livro de poesia favorito. É com palavras e braços que os ucranianos estão acostumados a lutar contra seus inimigos.

    Sasha Dovzhyk com sua tia, Tetiana, na região de Zaporizhzhia, em 1994 / Sasha Dovzhyk / Arquivo Pessoal

    Caso enfrentássemos um inimigo que também não pudesse ser combatido, minha amiga me deu quatro pílulas de iodo. Carrego seu presente de despedida na carteira durante os seis meses de terrorismo nuclear russo.

    Agora, minha tia, que há 36 anos foi convocada para marchar sob a nuvem radioativa de Chornobyl, é uma dos moradoras que fazem fila pelo iodo distribuído pelo governo em Zaporizhzhia.

    Se os invasores causarem um acidente de radiação na usina nuclear ocupada de Zaporizhzhia, nossa cidade natal provavelmente terminará em uma nova zona de exclusão – e a propagação da radiação não se apega às zonas e fronteiras.

    Durante os oito anos em que a Rússia travou sua guerra contra a Ucrânia, os ucranianos vêm alertando a comunidade internacional sobre os perigos de combates ativos nas proximidades da maior usina nuclear da Europa. Seus avisos não foram ouvidos. O agressor foi apaziguado.

    Agora é tarefa da comunidade internacional devolver o controle sobre os objetos da infraestrutura nuclear civil na Ucrânia para aqueles que tratam – com conhecimento da história, respeito pelo passado e responsabilidade pelo futuro – os ucranianos.

    *A escritora deste depoimento usa a grafia ucraniana de Chornobyl. 

    **Nota do editor: Sasha Dovzhyk é curadora de projetos especiais no Instituto Ucraniano de Londres e Professora associada de Ucraniano na Escola de Estudos Eslavos e do Leste Europeu, da University College London. Ela tem PhD em Inglês e Literatura Comparada da Birkbeck, na Universidade de Londres. Ela divide seu tempo entre o Reino Unido e a Ucrânia. As opiniões expressas neste artigo são dela.

    Este conteúdo foi criado originalmente em inglês.

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