Mulher francesa que matou marido abusivo é libertada por tribunal
Valérie Bacot sofreu abusos de padrasto – que virou marido – por 18 anos; ela foi condenada a 4 anos de prisão, com suspensão de 3 – e já ficou 1 ano detida
Uma francesa que admitiu ter matado seu marido depois de quase duas décadas de abusos deixou o tribunal como uma mulher livre na noite de sexta-feira (25), recebendo aplausos de simpatizantes na conclusão de sua provação que chocou muitos no país.
Valérie Bacot foi condenada a quatro anos de prisão, mas três deles foram suspensos. Ela foi libertada porque já havia passado um ano na prisão, disse a advogada de Bacot, Nathalie Tomasini, do lado de fora do tribunal de Chalon-sur-Saône, na França.
“Gostaria de agradecer ao tribunal e a todo o apoio que recebi. Agora é a hora de uma nova luta por todas as outras mulheres e por todos os maus-tratos”, disse Bacot a jornalistas. Ela afirmou disse ela “não estava aliviada, mas sim esvaziada mental e fisicamente”.
A advogada de Bacot disse que “a justiça foi feita e que está, particularmente, comovida”. “Esta mulher vai voltar para os filhos esta noite. Para mim, é uma grande vitória”, acrescentou Tomasini.
Bacot admitiu ter atirado em Daniel Polette em 2016. Polette começou a estuprá-la quando ela tinha apenas 12 ou 13 anos, de acordo com documentos judiciais.
Naquela época, ele era o namorado de sua mãe; mais tarde, se tornou marido de Bacot e pai de seus quatro filhos. Ela já se referia a ele como seu padrasto antes de se casarem.
Na sexta-feira, no tribunal, Bacot desmaiou, aparentemente em choque e aliviada, depois de ouvir a sentença proposta contra ela pelos promotores que permitiria que ela deixasse a corte em liberdade.
Ela enfrentava, potencialmente, uma sentença de prisão perpétua por atirar em Polette e matá-lo.
A promotoria pediu a pena de cinco anos de prisão, com quatro anos suspensos, disse a advogada da acusada.
Tomasini disse à afiliada francesa da CNN, BFM, na sexta-feira que “imploraria clemência” e não esperava por isso “de forma alguma”.
“Como ela ficou detida por um ano, ela não voltaria se o júri e o tribunal seguissem a opinião da promotoria”, acrescentou a advogada.
Depois que Bacot desmaiou, os serviços de emergência a atenderam no tribunal em Chalon-sur-Saone, leste da França.
‘Todo mundo sabia’
Em seu livro best-seller “Tout Le Monde Savait” (“Todo mundo sabia”), publicado em maio, Bacot, de 40 anos, disse que Polette, 25 anos mais velho, a estuprou pela primeira vez quando ela tinha 12 anos, engravidou-a aos 17 e continuou abusar dela ao longo de 18 anos.
“Eu simplesmente queria me proteger. Proteger minha vida, a vida de meus filhos. Aos meus olhos, nada mais importava”, escreveu ela em sua autobiografia.
O julgamento mostrou a falta de apoio às vítimas de incesto e violência doméstica na França.
Uma petição pela liberdade de Bacot, lançada por um grupo de apoio em janeiro, reuniu mais de 715.000 assinaturas.
Em seu livro, Bacot disse que ela deveria ser punida. Mas argumentou que matar Polette era a única maneira de proteger a si mesma e a seus filhos de um homem que fez de sua vida um “inferno” desde o momento em que a estuprou até que ela o matou a tiros em 2016.
“Eu não sou apenas uma vítima. Eu o matei; é normal que eu seja punida. Mas se minha sentença for pesada, isso significará para mim que ele tinha o direito de se comportar da maneira como se comportou comigo”, escreveu Bacot.
Em fevereiro deste ano, acusações de abuso de dentro de uma família francesa proeminente levaram a um julgamento nacional sobre o incesto na França, e mudanças legislativas foram feitas, incluindo a proibição de sexo com crianças menores de 15 anos. Além disso, a nova lei tornou a prática de incesto um crime de estupro quando a vítima tiver menos de 18 anos.
‘Ninguém disse nada’
Todos sabiam que Polette era violento, escreveu Bacot em seu livro, no qual ela conta como Polette, que era parceira de sua mãe, abusou dela durante anos.
A mãe de Bacot, Joëlle Aubague, se defendeu no tribunal na quarta-feira, dizendo que “tudo aconteceu pelas suas costas”, relatou o Le Monde.
Polette até foi para a prisão em 1995, ond ficou por dois anos e meio, por agredir sexualmente uma menor, disse Tomasini à CNN. Bacot tinha então cerca de 15 anos.
Durante esse período, Aubague levou sua filha para visitas à prisão, de acordo com o livro, e para audiências judiciais amplamente divulgadas pela mídia francesa.
“Trazer sua própria filha para a prisão, para ver o homem que a estuprou? Esta mulher não entende nada!”, exclamou a irmã de Polette, Mireille Polette, no tribunal na quarta-feira, segundo o jornal francês Le Monde.
A mãe de Bacot argumentou no tribunal que Valérie “queria ir, ela estava crescida, não foi forçada”, de acordo com o jornal diário francês.
“Dessa forma, ela também foi capaz de completar suas horas de condução acompanhada”, acrescentou Aubague, para surpresa do tribunal.
Após sua libertação, Polette foi autorizado a voltar para a casa da família, onde continuou a abusar dela, escreveu Bacot.
“Ninguém parecia achar bizarro que Daniel voltasse a morar conosco como se nada tivesse acontecido”, escreveu a mulher em seu livro. “Todos sabiam, mas ninguém disse nada”, acrescentou.
“Eu fui ingênua quando pensei que, talvez, alguém possa ser perdoado e ter uma segunda chance”, disse a mãe de Bacot ao tribunal na quarta-feira, de acordo com o BFM.
Anos de medo
Bacot engravidou aos 17 anos e Polette a instalou em um apartamento com ele, segundo documentos judiciais.
Depois de vários anos do que ela descreveu como violência diária, Bacot escreveu que Polette, um caminhoneiro, a forçou a se prostituir na parte de trás de sua van.
Bacot escreveu em seu livro que “o medo congelou meu cérebro” depois de saber que ela teria que se prostituir. “Daniel me possui completamente, sou um objeto que pertence a ele, ele pode fazer o que quiser comigo”, escreveu ela.
“Um dia ele vai me matar, está escrito. Eu sei disso desde que eu era criança, desde que minha mãe abriu as portas diante dele.”
De acordo com os documentos do tribunal, um psiquiatra nomeado pelo tribunal disse que Bacot exibia sinais de transtorno de estresse pós-traumático grave e outras características de mulheres em relacionamentos abusivos.
“Ela sempre esteve sob a tutela de Daniel Polette, então não podia dizer nada”, disse Tomasini à CNN no início desta semana.
Indiferença da sociedade
Os advogados de Bacot dizem que ela foi decepcionada por todos ao seu redor. Adolescente e jovem vulnerável, ela foi “destruída e devastada” por anos de violência “mas também, e sobretudo, pela indiferença e pela omerta da sociedade”, escreveram seus advogados Janine Bonaggiunta e Tomasini no prefácio do livro.
O caso mostra “enormes falhas na sociedade e no sistema que se destinava a apoiar as vítimas de violência no seio da família, falhas ao nível da polícia, é claro, mas também dos serviços sociais e dos médicos”, disse Tomasini à CNN.
Bacot tentou obter ajuda da polícia, disse ela em seu livro. Incapaz de escapar da vigilância de Polette, pediu ao filho e ao namorado da filha que fossem à polícia. Mas ela disse que eles foram recusados ??duas vezes por policiais que disseram que o caso não era de sua jurisdição e que Bacot tinha que comparecer pessoalmente.
“Depois disso, decidimos não fazer nada, desistir da luta. De qualquer forma, ninguém está pronto para ouvir. Para nós, não há saída – tudo está perdido”, escreveu ela.
De acordo com os autos, nenhum dos funcionários presentes nas delegacias se lembrava de tê-los visto e nenhum registro foi encontrado. Durante as audiências judiciais relatadas pelo Le Monde, tanto seu filho quanto o namorado de sua filha na época insistiram que eles foram à polícia, segundo o Le Monde.
Os ativistas há muito apontam a falta de sistemas de apoio para vítimas de incesto e violência doméstica na França.
Isabelle Aubry, presidente do Face à l’Inceste, grupo de apoio francês que luta por mudanças legislativas para proteger as vítimas de incesto e violência familiar e que dá apoio às vítimas, diz que recai sobre elas a responsabilidade de buscar ajuda.
“Em vez de levar assistência às vítimas de incesto, um crime que afetará suas vidas inteiras e as deixará com transtornos de estresse pós-traumático, o estado espera que elas o solicitem”, disse Aubry à CNN.
“Mas como poderiam? Eles já são incrivelmente vulneráveis”, disse.
Alegação de legítima defesa
No julgamento, Bacot disse que ficou extremamente assustada quando soube que Polette havia perguntado se sua filha Karline era sexualmente ativa, de acordo com relatos de jornalistas no tribunal.
“Aí, fiquei com muito medo. Com medo de que ele fosse cafetão dela. Eu sabia que quanto mais ela crescesse, mais ele a machucaria. E eu não sabia o que fazer”, gritou Bacot, segundo jornalistas em Tribunal.
A promotoria “criticou Bacot por não ter deixado o marido, por não ter fugido, disseram a ela que havia outras soluções além de matar seu marido”, disse Bonaggiunta ao BFM na segunda-feira.
“Isso é verdade, claro, mas era impossível para Valérie”, disse o advogado.
De acordo com a jurista Catherine Perelmutter, a lei francesa não tem cláusulas específicas para mulheres agredidas que matam seus maridos abusivos.
A defesa caracterizou o que Bacot fez como um ato de sobrevivência, mas a lei francesa não permite que seu caso seja considerado sob essa luz, de acordo com documentos judiciais.
“Legalmente, a ideia de legítima (autodefesa) não se aplica aqui, porque a ameaça deve ser simultânea (ao ataque) e a resposta deve ser proporcional”, explicou Perelmutter.
“No entanto, as circunstâncias são tais que seu julgamento foi alterado, ela não estava em seu estado normal. Isso poderia ser levado em consideração… tudo o que ela passou pode ser levado em consideração”, acrescentou Perelmutter.
Um psiquiatra nomeado pelo tribunal disse que o julgamento de Bacot foi severamente alterado pelo estresse pós-traumático extremo, e que ela agiu “com a certeza absoluta de que apenas esta ação permitiria que ela protegesse seus filhos”, de acordo com documentos do tribunal.
A advogada de Bacot, Tomasini, disse à CNN que, por ela estar em um estado de “julgamento alterado”, pode-se argumentar que ela não tinha outra escolha.
Apoio popular
Um porta-voz do grupo de apoio a Bacot, Florian Maïly, disse à CNN que a iniciativa começou localmente de boca em boca, mas rapidamente se expandiu pela França e depois pela Europa.
“No início, éramos apenas um punhado de pessoas que queriam ajudá-la”, disse Maïly. “[Depois], lançamos uma petição que decolou, especialmente porque estávamos ganhando a atenção da mídia.”
“Acho que o que comove as pessoas é que isso é completamente horrível. Essa história é realmente chocante e anormal, mas ao mesmo tempo toca nas questões sociais que conhecemos: incesto, ou MeToo, e outros.”
O caso ecoa o de Jacqueline Sauvage, uma mulher francesa condenada a 10 anos de prisão depois de atirar fatalmente em seu marido abusivo em 2012 – apenas um dia depois que seu filho se suicidou. Ela foi perdoada em 2016 pelo então presidente François Hollande e libertada da prisão.
Os dois advogados que atualmente defendem Bacot, Bonaggiunta e Tomasini, representaram Sauvage. Eles também visavam caracterizar a acusada como uma vítima aos olhos do público, de acordo com a historiadora da mídia Claire Sécail.
“A opinião pública foi conquistada, há muito tempo”, disse ela à CNN.
“Embora Bacot possa ser condenada legalmente, as instituições não podem condená-la moralmente”, disse Sécail. “O que ela fez tornou-se quase insignificante em comparação com o que passou, o que, aos olhos da opinião pública, a torna a verdadeira vítima.”
(Texto traduzido; leia o original em inglês)