Mulher é baleada ao fugir com o neto, que segurava uma bandeira branca em Gaza
Um número crescente de vídeos mostram civis desarmados e segurando bandeiras brancas sendo mortos a tiros por tropas de Israel
Sara Khreis repassa mentalmente o último dia que teve com a mãe. A sua família passou semanas agoniada sobre a possibilidade de fugir enquanto as tropas israelenses se deslocavam para o bairro de al-Rimal, na Cidade de Gaza, com tanques passando em frente a sua porta e um som aterrorizante de bombas, drones quadricópteros e tiros trovejando à sua volta.
Depois de duas noites de bombardeios tão intensos que eles pensaram que poderiam destruir sua casa, eles estavam decididos: tinham que partir.
“Acordamos no dia 12 de novembro, dia que nunca esquecerei em toda a minha vida. Me lembro de cada detalhe, minutos, horas, segundos”, disse Sara, 18 anos, à CNN, contendo as lágrimas.
Aquela manhã foi uma bagunça, disse ela. Mais de 20 pessoas, parentes e vizinhos, esconderam-se em suas casas à medida que a guerra piorava. A mãe de Sara, Hala, de 57 anos, sempre tão focada em cuidar de todos, menos de si mesma, preparou um café da manhã rápido em meio a uma agitação de arrumação de malas e fez uma oração.
De repente, ouviram os vizinhos do lado de fora gritando que uma rota de evacuação havia sido organizada: “Vamos, saiam, vamos, saiam!”
A próxima coisa que Sara percebeu foi que eles estavam calçando os sapatos e correndo porta afora. Ela teve uma breve discussão com a mãe – agora angustiante de contar – sobre se ela poderia ajudar a carregar a mala dela. Depois estavam na rua, juntando-se a uma onda de outras pessoas que seguravam bandeiras brancas: um símbolo universal de rendição.
Alguns passos à frente dos outros, Hala caminhava com seu neto, Tayem, então com 4 anos, de mãos dadas enquanto caminhavam por uma rua cheia de escombros, com uma bandeira branca na outra mão. Segundos depois, um tiro foi disparado e Hala caiu no chão.
Esse momento impensável foi capturado em câmera. O vídeo apareceu no início desse mês em uma reportagem do site de notícias Middle East Eye, com sede no Reino Unido. Assistir a ele deixa Sara e seus irmãos nauseados.
O vídeo do assassinato de Hala faz parte de um número crescente que mostra civis desarmados segurando bandeiras brancas sendo mortos a tiros em Gaza. O Euro-Med Human Rights Monitor, com sede em Genebra, disse que está investigando nove desses incidentes. A CNN examinou quatro casos, incluindo o de Hala Khreis.
A CNN fez várias tentativas de se reunir com as Forças de Defesa de Israel (FDI) para compartilhar suas descobertas. Eles disseram à CNN na sexta-feira (26) que “o incidente está sendo examinado” e, quando pressionados ainda mais, disseram que se referiam a al-Mawasi. Eles não informaram se os outros incidentes estão sendo investigados.
O incidente em al-Mawasi, uma cidade costeira no sul de Gaza anteriormente designada como “zona segura” pelas FDI, ocorreu no início dessa semana. Ramzi Abu Sahloul, de 51 anos, estava entre um grupo de cinco homens, com as mãos levantadas e chacoalhando uma bandeira branca.
Sahloul disse a Ahmed Hijazi, um jornalista palestino, que eles estavam tentando voltar para uma casa onde seu irmão estava sendo detido por soldados israelenses para implorar pela sua libertação. Momentos depois de entrevistá-lo, Hijazi filmou dois tanques israelenses à distância, atrás de uma barreira elevada, e então Sahloul sendo morto com um tiro no peito. O impacto do primeiro tiro é visível nas imagens e parece vir da direção dos tanques.
Entre os incidentes mais amplamente divulgados que a CNN analisou estava o tiroteio de três reféns israelenses, que as FDI admitiram ter matado, acreditando erroneamente que sua rendição era uma armadilha. As FDI têm afirmado repetidamente que estão fazendo tudo o que podem para evitar ferir civis, mas os seus soldados dispararam contra reféns que agitavam uma bandeira branca, violando as suas regras de combate e levantando questões sobre esses esforços.
Outro vídeo, anteriormente divulgado pela CNN, mostra um jovem caído no chão após ser baleado enquanto tentava evacuar da Cidade de Gaza. Seu pai, segurando uma bandeira branca, podia ser visto chorando sobre seu corpo. A filmagem não mostra o momento em que ele foi baleado e as FDI não responderam ao pedido de comentário da CNN.
O fato de a filmagem do assassinato de Hala existir é uma bênção duvidosa, dizem os seus filhos, que falaram com a CNN a partir de Gaza e da Turquia. Eles esperam que isso possa servir como prova em uma possível investigação futura sobre sua morte. Mas, por outro lado, dizem que isso os forçou a reviver repetidamente o dia devastador em que a sua mãe lhes foi roubada, em busca de pistas para perguntas que temem nunca serem respondidas.
“Minha mãe completaria 58 anos no dia 30 de dezembro e estava com o neto. Então por que vocês atirariam nela? O que há entre vocês e ela? Vocês nos fizeram sentir que era seguro partir, tínhamos bandeiras brancas em nossas mãos conforme as instruções”, disse Sara à CNN em entrevista de Istambul, onde ela se juntou ao noivo turco depois de fugir pela passagem de Rafah. “Ninguém sabe. Ninguém sabe”.
Minha mãe completaria 58 anos no dia 30 de dezembro e estava com o neto. Então por que vocês atirariam nela? O que há entre vocês e ela? Vocês nos fizeram sentir que era seguro partir, tínhamos bandeiras brancas em nossas mãos conforme as instruções
Sara Khreis
Sara e o resto da sua família dizem que Hala foi baleada pelas forças israelenses, apesar de, como eles descreveram, haver um acordo para proporcionar uma passagem segura para fora do bairro sitiado.
As FDI não comentaram a alegação da família, mas imagens de satélite e fotos do mesmo período analisadas pela CNN mostram que tropas israelenses estavam estacionadas na área, inclusive em uma escola a apenas 200 metros à oeste de onde Hala foi morta. A família de Hala disse que tanques também foram posicionados na estrada à sua frente, ao sul.
A família Khreis afirma ter sido informada de que o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) havia organizado uma rota de evacuação em uma estrada que ia para o sul, mas quando fugiram, a mensagem mudou, informando para ir para o leste. Hala não ouviu os gritos pedindo que ela se virasse até que fosse tarde demais.
O CICV disse que nunca concordou em ajudar na evacuação, sublinhando os desafios que as famílias enfrentam para obter informações claras sobre como escapar. “Dado o quão perigosa e insegura a situação era e continua a ser, não faz parte do papel do CICV dar instruções sobre a evacuação, pois não seríamos capazes de garantir a sua segurança”, afirmou a organização humanitária em nota.
“De acordo com o Direito Internacional Humanitário, é responsabilidade das partes em conflito garantir a passagem segura aos civis, independentemente dos preparativos para evacuações, zonas seguras ou pausas humanitárias. Mesmo que as pessoas optem por ficar, elas permanecem protegidas”.
A história de como a família Khreis decidiu fugir lança luz sobre a confusão que envolve os planos de evacuação e as escolhas impossíveis que centenas de milhares de palestinos tiveram que fazer à medida que os combates se aproximavam das suas casas, destruindo vidas, desintegrando famílias e destruindo sonhos para o futuro.
“Minha mãe foi toda a minha vida; ela era minha amiga e meu tudo”
Os meses anteriores ao início da guerra foram felizes para Hala e sua família. Ela havia se aposentado quatro anos antes do previsto como professora de árabe, depois de mais de 35 anos trabalhando em uma escola local, Hala e o seu marido tinham comprado uma nova casa e estavam vivendo a alegria de ver os seus filhos e netos crescerem.
Sara tinha acabado de ficar noiva do namorado, Faisel, e estava começando a planejar o casamento, organizando detalhes com a mãe para que a família viajasse à Turquia para a cerimônia. O filho de Hala, Mohammad, de 22 anos, tinha se formado na universidade e a família organizou uma grande festa em um dos seus restaurantes favoritos para festejar a ocasião.
Hala pretendia ajudar Mohammad, seu único filho homem, a encontrar uma esposa. Eles haviam planejado anunciar o noivado dele no dia 7 de outubro. Então tudo mudou.
“Minha mãe foi toda a minha vida; ela era minha amiga e meu tudo. Não fazia nada sem consultá-la ou ouvir a opinião dela, ela esteve comigo em cada passo”, disse Sara, folheando as fotos de família e contendo as lágrimas. “Todos tínhamos planos, sonhos, objetivos e tudo incluía minha mãe. Eles roubaram nossa mãe de nós, todos esses sonhos se foram”.
Nour, outra filha de Hala, que está em Rafah, disse que implorou à mãe durante semanas para fugir, mas ela recusou, preocupada com a forma como ela e o resto da família poderiam sobreviver à viagem para o sul, em meio a relatos de que áreas de evacuação estavam sendo atingidas. Nour fugiu depois que os militares israelenses lançaram panfletos instando os residentes da Cidade de Gaza a evacuarem para o sul, em meados de outubro.
Todos tínhamos planos, sonhos, objetivos e tudo incluía minha mãe. Eles roubaram nossa mãe de nós, todos esses sonhos se foram
Sara Khreis
Quando o resto da família decidiu evacuar, em 12 de novembro, os combates se tornaram implacáveis. Mas Sara disse que sua mãe parecia calma. Enquanto todos se preparavam para sair, arrumando seus pertences, ela lia o Alcorão em silêncio. “Ela disse que se tivéssemos sorte de fazer parte deste mundo, viveríamos. E se morrermos, seremos mártires”, lembrou Mohammad.
Quando saíram para a rua, havia incerteza sobre a direção que deveriam seguir, com as forças israelenses posicionadas ao redor do bairro. No cruzamento, alguns membros do grupo disseram que um soldado os havia acenado em direção ao Estádio Palestina, mas Mohammad não tinha certeza.
“Então comecei a chamar minha mãe, ‘venha aqui, venha aqui’, mas ela não ouviu e estava caminhando para o seu destino”, disse Mohammad, parando para respirar fundo. “Houve sons de tiros e ela caiu no chão. Fiquei chocado. Fiquei parado, congelado, e não entendi o que tinha acontecido”.
Ele correu até Hala, com um ferimento de bala no peito, e pediu que outros o ajudassem a carregá-la da rua. Mas estavam aterrorizados com os tanques israelenses, que Mohammad disse ter visto diretamente à frente do grupo, ao sul; As tropas israelenses também estavam localizadas a oeste, mostraram imagens de satélite. Seu pai e um vizinho correram para se juntar a ele, arrastando Hala de volta para sua casa, onde tentaram em vão ressuscitá-la.
Na turbulência, o neto de Hala, Tayem, desapareceu. A princípio, sua mãe, Heba, que estava no fundo da multidão, pensou que seu filho havia levado um tiro ao lado de Hala. Mas então, quando ele não estava no chão e não conseguiram encontrá-lo, ela entrou em pânico. Heba e o marido, Youssuf Abdel A’atti, corriam pela rua perguntando às pessoas se tinham visto Tayem, se tinham visto uma criança pequena.
“A mãe dele começou a me perguntar: ‘Onde está Tayem, onde está Tayem?’ E ninguém sabia onde estava o Tayem. Tentamos de tudo e ligamos para todo mundo, nesse momento minha sogra já era mártir, então queríamos nos acalmar pelo menos para saber onde está Tayem”, disse Abdel A’atti.
Eu senti como se estivesse em um pesadelo, até agora sinto que ainda estou em negação de tudo, ainda estou esperando minha mãe mandar uma mensagem no chat do grupo para nos ver, ‘Como vocês estão, meninas? Qual a novidade? O que vocês fizeram hoje?’
Sara Khreis
Só horas mais tarde, quando a família estava em casa, de luto por Hala, é que alguém ligou para dizer que Tayem tinha continuado para sul com um grupo de conhecidos – um pequeno conforto no meio do horror. Heba e o marido ainda aguardam o reencontro com o filho, que recentemente completou cinco anos sem eles. Ele está agora em Rafah, no sul de Gaza, com o seu tio, Mohammad.
“Estou preocupado com ele. Imaginem os bombardeios contínuos e eles alegam que essas áreas são seguras. E agora ele deveria estar na área mais segura e todos os dias ouvimos que há bombardeios e ataques em Rafah”, disse Heba. “O aniversário dele aconteceu durante a guerra, e ele completou 5 anos, e eu não o vi. Seu irmão mais novo todos os dias pergunta: ‘Onde está Tayem? Onde está Teta?’, usando um apelido da sua avó.
Mais tarde, a família enterrou Hala fora de sua casa, em um pequeno beco arenoso. Eles esperam voltar para poder dar à ela um enterro adequado quando a guerra terminar e pedem uma investigação sobre o seu assassinato.
“Eu me senti como se estivesse em um pesadelo, até agora sinto que ainda estou em negação de tudo, ainda estou esperando minha mãe mandar uma mensagem no chat do grupo para saber como estamos, ‘Como vocês estão, meninas? Qual a novidade? O que vocês fizeram hoje?’”, disse Sara.
Ela quer que o mundo saiba quem era sua mãe: uma avó dedicada, uma mãe que ainda fazia sanduíches para Sara levar para almoçar na universidade, uma professora aposentada querida por seus alunos. “Minha mãe era muito amorosa, atenciosa e generosa. Ela tinha muitas características incríveis. Eu quero ser exatamente como ela”.
A CNN voou para Israel para se reunir com as FDI esta semana, oferecendo-se para compartilhar as conclusões de sua investigação, incluindo evidências de vídeo, em uma entrevista em frente ou fora das câmeras. Eles recusaram, mas forneceram uma declaração depois que a CNN publicou este artigo:
“A CNN recusou-se a fornecer as imagens em questão antes da publicação do artigo, conforme solicitado pelas FDI para examinar minuciosamente o incidente e fornecer qualquer tipo de resposta abrangente. A hesitação da CNN em compartilhar os materiais revela a natureza parcial do seu artigo, prestando um desserviço à natureza complexa da realidade operacional no terreno. O incidente está sendo examinado”.
A nota não especificou quais dos incidentes da investigação da CNN estavam sendo examinados, mas, quando pressionados, as FDI disseram que se referiam a al-Mawasi. Eles não disseram se os outros incidentes estão sendo investigados, nem reconheceram as tentativas da CNN de compartilhar suas descobertas antes da publicação.
*Com informações de Scott McWhinnie, Gianluca Mezzofiore e Oscar Featherstone, da CNN.