Minoria uigur que vive no Afeganistão teme aproximação entre China e Talibã
Grupo rebelde que tomou o controle do Afeganistão pode entregar minoria perseguida na China para agradar Pequim
A família de Tuhan cruzou a fronteira da região de Xinjang, no oeste da China, para o Afeganistão há 45 anos para escapar da perseguição.
Agora, enquanto o Talibã controla o país, ela teme que ela e outros uigures sejam mandados de volta para a China por membros do grupo militante que está ansioso para obter favores de Pequim, acusada de cometer genocídio contra a minoria muçulmana.
Tuhan, que usa um pseudônimo para proteger sua identidade, está presa entre uma pátria onde os uigures enfrentam repressão e um país onde são considerados estranhos. O que mais a preocupa é que eles podem ser deportados para a China.
É apenas uma questão de tempo até o Talibã descobrir que somos uigures. Nossas vidas estão em perigo
Tuhan, uma uigure que vive no Afeganistão
Nos últimos anos, o governo chinês aumentou a repressão religiosa em Xinjang. O Departamento de Estado dos Estados Unidos estima que até dois milhões de uigures e outras minorias muçulmanas passaram por uma ampla rede de centros de detenção em toda a região.
Ex-detentos alegam que foram submetidos a intensa doutrinação política, trabalho forçado, tortura e até abuso sexual. A China nega veementemente as acusações, insistindo que os campos são “centros de treinamento vocacional” voluntários, projetados para erradicar o extremismo religioso e o terrorismo.
Tuhan disse temer o que vai acontecer com ela e sua família se forem forçados a retornar.
“Em todos esses anos, a vida foi difícil, mas o que está acontecendo agora é pior”, disse ela, se referindo à tomada de poder pelo Talibã. “É apenas uma questão de tempo até o Talibã descobrir que somos uigures. Nossas vidas estão em perigo.
“Refugiado da China”
Tuhan tinha apenas sete anos quando ela e seus pais fugiram de Yarkand, um oásis na antiga Rota da Seda, perto da fronteira chinesa com o Afeganistão.
Na época Cabul era conhecida como a “Paris do Oriente” e era um santuário para os uigures, que se protegeram lá da Revolução Cultural da China, uma década de turbulência política e social entre 1966 e 1976. Durante o período, o Islã – como todas as outras religiões – foi duramente reprimido.
Tuhan é uma dos até três mil uigures vivendo no Afeganistão, de acordo com Sean Roberts, professor da Universidade George Washington e autor de “A guerra contra os uigures”. Eles são uma pequena minoria em um país de mais de 37 milhões de habitantes.
Muitos deles fugiram da China depois que o Partido Comunista assumiu o controle de Xinjang em 1949. Alguns – como Tuhan – migraram em meados da década de 1970, durante o caos dos últimos anos da Revolução Cultural, cruzando desfiladeiros no sul de Xinjang para buscar refúgio, explica Roberts.
Muitos uigures agora têm cidadania afegã, mas seus documentos de identificação ainda os colocam como refugiados chineses – incluindo imigrantes de segunda geração, de acordo com uma foto de uma identidade compartilhada com a CNN.
Abdul Aziz Naseri, cujos pais fugiram de Xinjang em 1976, disse que sua identidade ainda o coloca como “refugiado da China”, embora ele tenha nascido em Cabul.
Naseri, que agora mora na Turquia, disse que coletou os nomes de mais de 100 famílias uigures que querem fugir do Afeganistão.
“Eles estão com medo da China, porque o Talibã estava tratando com a China. Eles têm medo de voltar para a China”, disse Naseri.
Um bom amigo
Há motivos para os uigures do Afeganistão estarem preocupados, dizem especialistas. Em julho, uma delegação do Talibã fez uma visita ao ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi.
Wang disse que o Talibã é “uma importante força militar e política do Afeganistão” e declarou que eles desempenhariam “um papel importante no processo de pais, reconciliação e reconstrução do país”.
Em troca, o Talibã chamou a China de “um bom amigo” e prometeu “nunca permitir que nenhuma força use o território afegão para se envolver em atos prejudiciais à China”, de acordo com um comunicado do Ministério das Relações Exteriores chinês.
Na semana passada, um porta-voz do Talibã pediu relações mais estreitas com Pequim em uma entrevista à emissora estatal chinesa CGTN.
“A China é um país muito importante e forte em nossa vizinhança e tivemos relações muito boas e positivas com o país no passado”, disse Zabihullah Mujahid. “Queremos fortalecer ainda mais essas relações e melhorar o nível de confiança mútua”.
O professor Sean Roberts disse que os temores dos uigures de que o Talibã possa deportá-los para a China para ganhar mais apoio de Pequim são legítimos.
“O Talibã tem muitos motivos para tentar agradar Pequim para obter reconhecimento internacional e assistência financeira no momento em que a maior parte da comunidade internacional não está os ajudando”, disse.
A preocupação de Tuhan é aprofundada pelos esforços cada vez mais agressivos de Pequim nos últimos anos para trazer uigures estrangeiros de volta para Xinjang, incluindo o de países de maioria muçulmana.
A CNN coletou mais de uma dúzia de relatos detalhando a detenção e deportação de uigures a pedido da China no Egito, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita.
Em um relatório publicado em julho deste ano, o Projeto Uigur de Direitos Humanos disse que houve pelo menos 395 casos de uigures deportados, extraditados ou devolvidos à China de países em todo mundo desde 1997.
Em uma declaração à CNN, o Ministério das Relações Exteriores da China chamou o Projeto Uigur de Direitos Humanos de “organização separatista totalmente anti-China”.
“Os chamados dados e relatórios divulgados por eles não têm imparcialidade e credibilidade, e não vale a pena refutar de forma alguma”, disse o comunicado.
Reprimindo militantes
O governo chinês tem uma longa história de envolvimento com o Talibã, que remonta ao final da década de 1990, quando o grupo militante controlou o Afeganistão pela primeira vez.
Pequim exortou repetidamente o Talibã a reprimir os militantes uigures no Afeganistão, principalmente o Movimento Islâmico do Turquestão Oriental (ETIM), responsável por quase todos os ataques terroristas ou incidentes violentos em Xinjang e outras partes do país.
Durante sua reunião com autoridades do Talibã, Wang – ministro das Relações Exteriores da China – disse que o ETIM “representa uma ameaça direta à segurança do país e à integridade do território da China”.
Um vídeo divulgado pela emissora estatal CGTN em 2019 comparou o ETIM à Al Qaeda e ao Estado Islâmico, dizendo que o grupo “tentou recrutar pessoas em grande escala, espalhando uma ideologia radical que continua a causar o caos em muitos países ao redor do mundo”.
Mas especialistas dizem que há poucas evidências para confirmar as afirmações da China sobre o tamanho, a capacidade e a influência do ETIM – e há dúvidas sobre a existência do grupo atualmente.
O ETIM começou como um pequeno grupo de uigures que foi para o Afeganistão governado pelo Talibã em 1998 com a intenção de estabelecer uma insurgência contra o domínio chinês, de acordo com o professor Roberts.
O Talibã inicialmente permitiu que o grupo se estabelecesse em seu território, mas, na tentativa de garantir apoio chinês em meio ao isolamento internacional, disse a Pequim que não permitira nenhum grupo que usasse seu território para atacar a China.
Nas décadas de 1990 e 2000, Xinjang viu um aumento nos ataques violentos, que Roberts disse serem frequentemente explosões de queixas contra as políticas repressivas do governo chinês.
Mas, depois do 11 de setembro, Pequim tentou reformular todos esses incidentes como relacionados ao terrorismo islâmico dirigido por grupos como o ETIM, disse o professor.
Poucas pessoas ouviam falar no ETIM até que o grupo foi apontado pelo governo dos Estados Unidos como uma organização terrorista em 2002, durante um período de maior cooperação antiterrorismo com a China. Essa decisão, no entanto, foi questionada por especialistas e autoridades, que viram como uma troca de Washington para obter apoio de Pequim para a invasão do Iraque.
No ano passado, em meio à piora nas relações EUA-China, o governo Trump retirou o ETIM da lista de grupos terroristas, gerando desconforto com Pequim. O Departamento de Estado dos EUA disse que a remoção aconteceu porque “por mais de uma década, não houve nenhuma evidência de que o ETIM ainda exista”.
O fundador do ETIM, Hassan Mahsum, foi morto em 2003 por tropas no Paquistão, para onde ele e seus seguidores fugiram após o bombardeio norte-americano no Afeganistão. O grupo parece ter morrido com ele, disse Roberts.
Mas, em 2008, um grupo sucessor do ETIM, chamado Partido Islâmico do Turquestão (TIP), surgiu e ameaçou atacar as Olimpíadas de Pequim. O grupo é conhecido por ser afiliado à Al Qaeda e mais tarde se tornou uma peça-chave na guerra civil da Síria.
“Eles produzem muitos vídeos ameaçando Pequim, mas não há evidências de que consigam realizar qualquer ataque dentro da China”, disse Roberts.
Mas o governo chinês continuou a usar a existência do TIP – ainda chamado de ETIM por Pequim – para destacar a ameaça terrorista e justiicar sua repressão em Xinjang, disseram especialistas e ativistas uigures.
“Por que mandar um amigo?”
Agora, com cerca de 50 anos, Tuhan mora no norte do Afeganistão e ganha a vida costurando roupas enquanto seus filhos fazem bicos, como pintar casas de vizinhos. Mas mesmo pessoas comuns como ela podem ser arrastadas para a campanha de Pequim contra grupos terroristas.
Roberts disse que não está claro se o TIP tem uma presença significativa no Afeganistão, embora haja especulação de que um pequeno número de seus membros viva no país. Se o Talibã for deportar alguém para a China, provavelmente serão os uigures comuns, e não os membros do TIP com os quais eles mantêm relações de longo prazo, disse ele.
“Se eles querem mostrar a Pequim que estão sendo receptivos às suas demandas (de repatriação), por que enviar um amigo que eles conhecem quando eles poderiam simplesmente enviar qualquer uigur aleatório e sugerir que eles são uma ameaça para Pequim?” Roberts disse.
Apesar de terem vivido por décadas no Afeganistão, os uigures são considerados forasteiros e, ao contrário de milhares de pessoas levadas de avião para a segurança pelos Estados Unidos e seus aliados, eles não têm um país para ajudar a negociar sua saída.
“Eles realmente não têm ninguém para advogar em seu nome, para ajudá-los a sair do país”, disse Roberts.
Tuhan disse que ela e sua família nem mesmo têm passaportes, então eles têm opções limitadas para deixar o Afeganistão, mesmo se outro país estiver disposto a recebê-los.
“Eles não fornecem passaportes de graça e não podemos pagar por isso. Mas agora, de qualquer maneira, eles pararam de emitir passaportes”, disse ela.
“Já se passaram 45 anos desde que fugimos para cá. Envelhecemos sem ver um bom dia”, disse ela. “Nossa esperança é que nossos filhos tenham uma vida melhor. Isso é tudo que queremos. Só queremos ser salvos dessa opressão.”
(Esta matéria foi traduzida. Clique aqui para ler a versão original, em inglês)