Massacre em Burkina Faso deixou 600 mortos, o dobro das estimativas iniciais
Militantes ligados à Al-Qaeda mataram 600 pessoas em Burkina Faso, quase o dobro do estimado, em massacre brutal em agosto enquanto civis cavavam trincheiras para se defender, diz relatório francês
Até 600 pessoas foram mortas a tiros em questão de horas por militantes ligados à Al-Qaeda em um ataque ocorrido em agosto em uma cidade de Burkina Faso, de acordo com uma avaliação de segurança do governo francês que quase dobra o número de mortos citado em relatórios anteriores.
O novo número faria do ataque, no qual civis foram mortos a tiros enquanto cavavam trincheiras para defender a remota cidade de Barsalogho, um dos ataques mais mortais na África nas últimas décadas.
Militantes do Jama’at Nusrat al-Islam wal-Muslimin (JNIM), um grupo afiliado da Al-Qaeda baseado no Mali e ativo em Burkina Faso, abriram fogo metodicamente enquanto invadiam os arredores de Barsalogho em motos e matavam os moradores, que jaziam indefesos na terra recém-revolvida da trincheira, de acordo com vários vídeos do ataque de 24 de agosto postados em contas pró-JNIM nas redes sociais.
Muitas das vítimas eram mulheres e crianças, e as imagens são pontuadas pelo som de disparos automáticos e gritos das vítimas, que são atingidas pelos tiros enquanto aparentemente fingiam-se de mortas.
O número horrível de mortos, se a estimativa do governo francês for confirmada, marcaria um momento brutalmente incomum no Sahel, uma faixa cada vez mais sem lei no oeste da África, logo ao sul do Saara, onde projetos de segurança liderados pelos militares dos Estados Unidos e da França têm lutado para conter o avanço dos jihadistas.
Uma série de golpes de Estado em Mali, Burkina Faso e Níger levaram à saída das forças francesas e americanas. Os mercenários russos convocados pelas juntas para fortalecer seu controle deixaram, na verdade, um vácuo no qual os jihadistas prosperaram, segundo a avaliação, fornecida à CNN por um oficial de segurança francês.
As Nações Unidas inicialmente estimaram que o número de mortos era de pelo menos 200. O JNIM afirmou ter matado cerca de 300 pessoas, mas alegou que tinha como alvo membros de milícias afiliadas ao exército, em vez de civis, de acordo com uma tradução do Site Intelligence Group citada pela Reuters.
“Os grandes ataques letais (pelo menos cem mortes) contra populações civis ou forças de defesa e segurança têm ocorrido há várias semanas a uma taxa que parece insustentável para o governo”, diz o relatório sobre Burkina Faso, “que já não tem realmente uma estratégia militar para oferecer e cujo discurso de propaganda parece sem fôlego e ideias”.
O oficial francês disse à CNN que houve uma “deterioração muito significativa na situação de segurança” em Burkina Faso, onde “grupos armados terroristas estão desfrutando de uma liberdade de ação crescente, pois as forças de segurança não conseguem lidar com a situação”.
O relatório menciona um ataque a um comboio militar na vila de Tawori, 15 dias antes do ataque em Barsalogho, onde “não menos de 150 soldados” foram mortos por jihadistas, acrescentando que o exército está lutando para manter sua força e credibilidade.
Em 17 de setembro, a capital do vizinho Mali, Bamako, foi abalada por outro ataque do JNIM, que atingiu o aeroporto, entre outros prédios importantes, e matou mais de 70 pessoas.
“Trincheiras defensivas” tornaram-se uma vala comum
O massacre em Barsalogho ocorreu enquanto os moradores eram ordenados pelo exército a cavar uma vasta rede de trincheiras ao redor da cidade para protegê-la de jihadistas que circulavam nas proximidades.
Os homens armados do JNIM então atacaram as defesas, que estavam em construção, alegando falsamente que os civis eram combatentes por causa de seu envolvimento, de acordo com testemunhas oculares.
Um sobrevivente, que pediu anonimato ao falar com a CNN, pois ainda temia por sua segurança apesar de ter fugido da cidade, disse que era um dos dezenas de homens que foram instruídos a cavar as trincheiras pelo exército naquele sábado. Ele estava a quatro quilômetros da cidade por volta das 11h, em uma trincheira, quando ouviu os primeiros tiros.
“Comecei a rastejar para dentro da trincheira para escapar”, disse ele. “Mas parecia que os agressores estavam seguindo as trincheiras. Então, saí rastejando e me deparei com a primeira vítima ensanguentada. Na verdade, havia sangue por toda parte no meu caminho. Havia gritos por toda parte. Fiquei deitado de bruços debaixo de um arbusto até mais tarde, à tarde, escondido”.
“Restaram poucos homens na cidade depois disso. Ver os corpos chegando em carrinhos motorizados do local do massacre foi a coisa mais horrível que já vi na vida. Nem mulheres nem crianças tinham lágrimas para derramar. Estávamos mais do que chocados. Como se pode chorar se não há lágrimas para derramar?”.
“Nós, os sobreviventes, já não somos normais. O problema está além de todos nós. O massacre começou na minha frente. Os primeiros tiros foram disparados bem na minha frente. Eu fui uma das pessoas que recolheu os corpos e os enterrou. Vejo meus amigos falecidos quando estou dormindo”, disse ele, acrescentando que os primeiros relatórios de 300 mortos eram muito baixos. “Quem negar isso, deve vir me ver”.
Outro sobrevivente disse à CNN que dois membros de sua família foram mortos no ataque. “Eles mataram pessoas o dia inteiro. Durante três dias, estávamos recolhendo corpos – espalhados por toda parte. O medo entrou em nossos corações. Na hora do enterro, havia tantos corpos no chão que o enterro foi difícil”.
O ataque levou a protestos furiosos, nos quais o líder da junta de Burkina Faso, o capitão Ibrahim Traoré, que assumiu o poder no segundo de dois sucessivos golpes militares em 2022, foi ridicularizado como “IB Capitão Zero” por endossar a construção das trincheiras pelos civis.
O relatório francês disse que sua construção das trincheiras fazia parte de um plano do ministro do Serviço Civil, no qual cada assentamento “deve se organizar e ter seu próprio plano de resposta a um ataque”.
A junta militar não assumiu a responsabilidade por ter ordenado que os civis cavassem as trincheiras sem qualquer proteção, em meio a uma ameaça crescente dos jihadistas. Os sobreviventes disseram que o regime não queria que eles falassem sobre o ocorrido. A junta não respondeu ao pedido de comentário da CNN.
Os golpes de 2022 em Burkina Faso ocorreram em meio à frustração com a incapacidade das autoridades de acabar com a violência jihadista recorrente, apesar da intensa assistência militar francesa, que tirou milhares de vidas por quase uma década. Mas essa violência piorou sob Traoré, segundo especialistas e observadores de direitos humanos.
Embora inicialmente bem-sucedidas, em 2014, as operações militares da França na região começaram a enfrentar um crescente sentimento contra a França.
A França ampliou sua presença de contraterrorismo, mas não conseguiu conter os grupos armados em expansão, que ameaçavam os civis. Como resultado, as populações locais passaram a desconfiar da antiga potência colonial.
Traoré fez apenas uma aparição pública desde o massacre, e a avaliação – redigida no final de agosto – questiona seu estado mental e aptidão para o cargo. “Vemos ali toda a impotência das autoridades em fornecer uma resposta séria e credível à ameaça terrorista”, diz o relatório.
Mercenários russos em dificuldades enquanto a violência se espalha
Enquanto isso, os mercenários russos que chegaram a Burkina Faso há quase um ano não conseguiram trazer calma ao país e estão, ao menos parcialmente, sendo retirados para ajudar Moscou em sua guerra contra a Ucrânia, acrescenta a avaliação.
Aumento da segurança na capital Ouagadougou ao redor de prédios-chave pode estar ligado à retirada de grande parte da unidade “Bear” de 100 mercenários do grupo Wagner, encarregada da proteção pessoal de Traoré, diz o relatório.
O grupo de mercenários está sob nova administração desde a morte do fundador do Wagner, Yevgeny Prigozhin, em um acidente de avião no ano passado, mas o Wagner ainda é coloquialmente referido pelo seu nome antigo no Sahel.
O relatório sugere que a unidade foi realocada para conter a invasão ucraniana das regiões fronteiriças russas e pode ser substituída por militares russos menos capacitados.
As críticas ao exército, expressas por parentes dos mortos e sobreviventes de Barsalogho, que afirmam que os militares fugiram do ataque, foram ampliadas por recentes acusações de canibalismo por soldados de Burkina Faso, acrescenta o relatório. Ele cita vídeos postados publicamente nas redes sociais que parecem mostrar soldados do Batalhão de Intervenção Rápida 15 (BIR-15) comendo partes de jihadistas mortos.
O relatório acrescenta: “O estado-maior dos exércitos de Burkina Faso publicou uma nota de imprensa em 24 de julho de 2024, no qual ‘condena esses atos macabros’ e ‘reafirma que medidas serão tomadas para identificar formalmente a origem dessas imagens, bem como seus autores'”.
Avalia-se que o incidente é mais um sinal da deterioração da disciplina no exército desde o golpe de Estado há dois anos, que colocou Traoré no poder e levou à saída dos franceses.
A CNN revisou vídeos do suposto canibalismo que parecem mostrar soldados de Burkina Faso desmembrando e erguendo partes do corpo de supostos jihadistas mortos.
A avaliação de segurança francesa acrescenta que a violência em Burkina Faso começou a se espalhar para pelo menos um de seus vizinhos pacíficos do sul, citando um ataque no Togo, a partir de uma cidade fronteiriça de Burkina Faso, Kompienga, em 20 de julho, quando um campo militar togolês foi tomado, matando pelo menos 12 soldados e saqueando armas.
“Rumores indicam a criação de uma nova Wilaya do GSIM para Togo”, acrescenta o relatório, referindo-se a um novo afiliado da Al-Qaeda no país, “alimentado por terroristas do norte”.
“Barsalogho é prova de que Burkina Faso está à beira do colapso, pois os terroristas têm um controle tão grande sobre o país. Seiscentas pessoas morreram, e isso é terrível, mas o que é pior é que é como se isso nunca tivesse acontecido, pois os assassinos continuam a vagar livremente sem medo de represálias”, segundo o relatório.