Mar-a-Lago e Trump há muito causam preocupações para a inteligência dos EUA
Mansão de 114 cômodos e várias dependências se tornaram o centro de uma investigação sobre manuseio de material confidencial por Trump; resort foi considerado "pesadelo" para segredos do governo
A revelação de um ataque aéreo enquanto saboreia um bolo de chocolate “lindo”. Uma invasora da China carregando pen drives e outros eletrônicos. Fotos de celular mostrando a maleta da “bola de futebol nuclear”, que contém códigos para lançamento de armas nucleares – tudo isso aconteceu em Mar-a-Lago. E agora, documentos confidenciais foram recuperados durante uma busca do FBI na última semana.
Mar-a-Lago, a propriedade à beira-mar com paredes de pedra que Donald Trump chamou de “Casa Branca de Inverno”, há muito é uma fonte de dores de cabeça para os profissionais de inteligência e de segurança nacional. A atmosfera de clube, extensa lista de convidados e o falante proprietário, combinados, viram um “pesadelo” para manter os segredos mais bem guardados do governo, disse um ex-oficial de inteligência.
Agora, a mansão de 114 cômodos e suas várias dependências está no centro de uma investigação do Departamento de Justiça dos Estados Unidos sobre o manuseio de material presidencial por Trump. Após uma busca de horas na propriedade na semana passada, agentes do FBI apreenderam 11 conjuntos de documentos, alguns marcados como “informações compartimentadas confidenciais” – que estão entre os mais altos níveis de confidencialidade do governo.
A CNN informou no sábado (13) que um dos advogados de Trump afirmou em junho que nenhum material sigiloso permaneceu no clube – levantando novas questões sobre o número de pessoas que têm exposição legal na investigação em andamento.
De muitas maneiras, o complexo de 20 acres de Trump em Palm Beach, na Flórida, equivale à forma física do que alguns ex-assessores descrevem como uma abordagem casual do ex-presidente a documentos e informações confidenciais.
“Mar-a-Lago tem sido um lugar poroso desde que Trump declarou sua candidatura e começou a ganhar as primárias há vários anos”, disse Aki Peritz, ex-analista de contraterrorismo da CIA. “Se você fosse qualquer serviço de inteligência, amigável ou hostil, que se preze, eles estariam concentrando seus esforços neste lugar incrivelmente poroso”.
Quando Trump deixou o governo em janeiro de 2021, foi em Mar-a-Lago que ele levantou seu acampamento, dolorido por uma perda que se recusou a reconhecer. O clube, com seus membros pagantes e grandes pinturas a óleo de Trump quando jovem, era um refúgio bem-vindo.
Esse foi também o destino de dezenas de caixas, empacotadas às pressas nos últimos dias de sua administração e enviadas em caminhões brancos para a Flórida. Pessoas familiarizadas com a saída de Trump de Washington disseram que o processo de fazer as malas e empacotar tudo foi apressado, em parte porque o até então presidente se recusou a se envolver em atividades que sinalizariam que ele havia perdido a eleição.
Quando ficou claro que ele precisaria deixar a Casa Branca, os itens foram rapidamente guardados em caixas e enviados para o sul sem um sistema claramente organizado.
“Trump manteve muitas coisas em seus arquivos que não estavam no sistema regular ou que foram entregues a ele durante reuniões de inteligência”, disse John Bolton, ex-assessor de segurança nacional de Trump.
“Posso imaginar facilmente nos últimos dias caóticos na Casa Branca, já que ele não achava que ia sair até o último minuto, eles estavam apenas jogando coisas em caixas, e isso incluía muitas coisas que ele havia acumulado ao longo os quatro anos”.
Algumas caixas contendo documentos confidenciais, acabaram no clube após o fim do mandato presidencial de Trump. Quando investigadores federais – incluindo os chefes de contra-inteligência e de controle de exportação do Departamento de Justiça – viajaram para Mar-a-Lago em junho para discutir os documentos confidenciais com Trump e seus advogados, eles expressaram preocupação de que o cômodo da mansão não estivesse devidamente protegido.
A equipe de Trump colocou uma nova fechadura na porta. Mas os agentes do FBI voltaram a Mar-a-Lago na semana passada para executar um mandado de busca na propriedade que identificou três possíveis crimes: violações da Lei de Espionagem, obstrução da justiça e manipulação criminal de registros governamentais.
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Vista do imóvel do ex-presidente dos EUA ao fundo de lago na Flórida • Joe Raedle/Getty Images
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Mar-a-Lago funcionava como um clube social até Trump deixar a presidência dos EUA e sair da Casa Branca • Joe Raedle/Getty Images (13.fev.2021)
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Residência do ex-presidente dos EUA Donald Trump, na Flórida • Marco Bello/Reuters (08.fev.2021)
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Uma entrada para o resort Mar-a-Lago do ex-presidente Donald Trump, em Palm Beach, Florida • Joe Raedle/Getty Images (11.fev.2022)
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Pessoa corta a grama na propriedade Mar-a-Lago em fevereiro de 2022 • Joe Raedle/Getty Images (11.fev.2022)
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Agentes do FBI executaram mandado de busca na propriedade de Trump na segunda-feira, 8 de agosto • Charles Trainor Jr./Miami Herald/Tribune News Service via Getty Images
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Os itens levados após a busca de segunda-feira (8) incluíam uma caixa de couro com documentos, pastas de fotos, “documentos ultrassecretos diversos” e “Informações sobre o presidente da França”, de acordo com o mandado de busca.
Trump e seus aliados alegaram que ele usou sua prerrogativa presidencial para derrubar a confidencialidade dos documentos antes de deixar o cargo, embora não tenham fornecido nenhuma evidência de um processo formal para isso.
“Minha única surpresa foi que não haviam levado ainda mais coisas para Mar-a-Lago”, disse Bolton.
O hábito de desafiar as normas
O que aconteceu na semana passada, não foi a primeira vez que funcionários da inteligência federal se preocuparam com a forma como Trump estava mantendo os segredos do governo. Quase de imediato que ele assumiu o cargo, Trump demonstrou vontade de desrespeitar os protocolos de proteção de informações confidenciais.
Em 2017, ele revelou espontaneamente informações altamente confidenciais sobre uma trama do Estado Islâmico a uma comitiva de visitantes russos, que incluía o ministro das Relações Exteriores, que os EUA haviam recebido de Israel. Isso causou profunda raiva nos serviços de inteligência de ambos os países.
Quando ele foi informado por oficiais de inteligência em 2019 sobre uma explosão no Irã, mais tarde ele twittou uma foto de satélite altamente confidencial da instalação – apesar de ter ouvido as preocupações das autoridades de que isso poderia revelar as capacidades americanas.
Trump preferia receber atualizações de inteligência eletronicamente, de acordo com seu terceiro chefe de gabinete, Mick Mulvaney, embora às vezes pedisse para manter documentos físicos de briefings confidenciais.
“De tempos em tempos, o presidente dizia: ‘Posso ficar com isso?’. Mas tínhamos equipes inteiras de pessoas para garantir que esses documentos não fossem deixados para trás, não fossem levados para a residência. Ele os usaria. Esse era seu direito como presidente dos Estados Unidos”, disse Mulvaney.
Ainda assim, o rastreamento de registros não era uma prioridade para Trump, de acordo com vários ex-funcionários. Quando ele pedia para guardar documentos confidenciais, as autoridades às vezes ficavam preocupadas com o que poderia acontecer com o material. Quando ele viajava, os assessores costumavam seguir de perto, carregando caixas de papelão e recolhendo pilhas de papéis que Trump havia deixado para trás.
Misturando negócios com prazer
Em Mar-a-Lago, as preocupações sobre Trump revelar os principais segredos do governo – acidentalmente ou não – foram amplificadas. A instalação funciona como um clube com piscina, spa, restaurante e clubhouse para os membros e seus convidados; o salão de baile Donald J. Trump, decorado em ouro, pode ser alugado para casamentos e outros eventos.
Embora o Serviço Secreto rastreie os visitantes em busca de armas e verifique seus nomes em uma lista, eles não são responsáveis por proteger documentos secretos ou evitar possíveis interferências.
Os membros se reuniam no clube de Trump quando ele estava na cidade como presidente, e as regras promulgadas no início de seu mandato contra tirar fotos na sala de jantar nem sempre foram seguidas à risca.
Isso ficou evidente em fevereiro de 2017, quando Trump recebeu o falecido então primeiro-ministro do Japão, Shinzo Abe, para um jantar no pátio. Depois que o lançamento de um míssil norte-coreano interrompeu a refeição, Trump e Abe se reuniram com seus assessores de segurança nacional à vista de outros clientes, que comiam saladas com blue cheese enquanto registravam com os celulares as conversas improvisadas de gerenciamento de crise dos líderes.
Mais tarde, os assessores de Trump insistiram que ele havia entrado em uma sala segura – conhecida como Instalação de Informações Compartimentadas Sensíveis (SCIF, na sigla em inglês) – para receber atualizações sobre o lançamento, e que ele e Abe estavam simplesmente discutindo a logística de suas declarações à imprensa.
No entanto, a enxurrada de fotos postadas nas redes sociais por membros de Mar-a-Lago mostrou os dois líderes examinando documentos na mesa de jantar, junto com assessores trabalhando em laptops e Trump falando em seu celular. A certa altura, os funcionários usaram as lanternas em seus celulares para iluminar os documentos que os líderes estavam lendo.
Logo depois, algumas novas regras entraram em vigor para limitar quem poderia estar no clube quando Trump estivesse lá. Foi exigido que as reservas fossem feitas com duas semanas de antecedência, e impostos novos limites no número de convidados que os membros podiam trazer.
Trump retornou ao SCIF de Mar-a-Lago na primavera de 2017 para discutir o lançamento de um ataque aéreo na Síria; na época, ele estava recebendo o presidente chinês, Xi Jinping, para um jantar. Mais tarde, ele disse que voltou à mesa para informar Xi sobre sua decisão enquanto eles comiam o “pedaço de bolo de chocolate mais bonito que você já viu”.
Uma das preocupações dos assessores de Trump em Mar-a-Lago era a relativa incapacidade dele de discernir com quem exatamente ele estava falando enquanto estava lá. Comparado à Casa Branca, com suas listas de acesso restritas, às vezes não ficava claro até mesmo para os conselheiros mais antigos de Trump com quem ele entrava em contato no clube.
O segundo chefe de gabinete de Trump, John Kelly, trabalhou para limitar quem tinha acesso a Trump em Mar-a-Lago, embora houvesse pouca expectativa de que ele ou qualquer outro assessor pudesse restringir totalmente as conversas do presidente com amigos e membros pagantes de Mar-a-Lago. Kelly disse aos associados na época que estava mais interessado em saber com quem Trump estava falando do que em impedir que as conversas acontecessem.
Kelly também trabalhou para implementar um sistema mais estruturado para o manuseio de material confidencial, embora a colaboração de Trump para o sistema nem sempre era garantida.
Gerenciando uma variedade de riscos
Enquanto estava em Mar-a-Lago, Trump nem sempre usou o SCIF para ver documentos confidenciais, de acordo com uma fonte familiarizada com o assunto. E sua propensão a compartilhar o que sabia com seus interlocutores era fonte de constante frustração.
“Ele era um presidente difícil de apoiar em termos de tentar dar a ele as informações de que precisava enquanto ainda protegia a maneira como as coletamos para que ele não falasse acidentalmente ou de outra forma e mencionasse algo que um adversário pudesse usar para rastrear onde tínhamos um agente”, disse Douglas London, ex-funcionário de contraterrorismo da CIA, que serviu durante o governo Trump.
London disse que era irônico Trump manter documentos confidenciais, já que o ex-presidente “não era muito um leitor”.
Manter informações confidenciais dos membros de Mar-a-Lago era uma coisa; impedir a entrada de potenciais ameaças à segurança provou ser um desafio.
Em 2019, uma empresária de 33 anos de Xangai foi presa por invasão de propriedade do clube de Trump. No momento de sua prisão, Yujing Zhang tinha em posse quatro telefones celulares, um laptop, um disco rígido externo e um pen drive. Os promotores disseram que também encontraram um tesouro de eletrônicos adicionais – incluindo um detector de sinal para detectar câmeras escondidas – e milhares de dólares em dinheiro em seu quarto de hotel.
Outra cidadã chinesa, Lu Jing, também foi acusada de invadir Mar-a-Lago no final daquele ano. Autoridades disseram que durante o incidente, Lu foi convidada a sair pela segurança antes de retornar às instalações e tirar fotos.
Nunca foi determinado quais eram os motivos dessas mulheres ao tentar acessar o clube. Lu foi considerada inocente; Zhang acabou sendo sentenciada a oito meses de prisão.