Ligações tentam furar a cortina de ferro digital da Rússia e falar sobre guerra
Iniciativa incentiva pessoas a fazerem chamadas telefônicas com russos para levar informações sobre conflito com a Ucrânia
Marija Stonyte pega o telefone e disca um número ansiosamente. Depois de alguns toques, uma mulher atende.
“Estou ligando para lhe dar uma mensagem muito importante. Eu não sei se você sabe muito sobre o que está de fato acontecendo agora na Ucrânia”, falou Stonyte numa ligação no mês passado, com a voz trêmula enquanto sua filha de 1 ano balbuciava ao fundo.
Há silêncio do outro lado da linha. “A verdade é que se trata de uma invasão terrível”.
Essa é uma das dezenas de ligações anônimas que Stonyte e seu marido fazem todos os dias para pessoas na Rússia de sua casa na Lituânia como parte de uma iniciativa voluntária destinada a furar a chamada cortina de ferro digital russa.
O ataque contínuo da Rússia na Ucrânia causou o bombardeio de cidades, a morte de civis e a saída de mais de 4 milhões de pessoas do país. Mas, na Rússia, muitos sabem pouco sobre o que está acontecendo.
A Rússia proibiu a mídia estatal de chamar a “operação militar especial” do presidente russo Vladimir Putin de “invasão” ou “guerra”, e aqueles que criticam a ofensiva podem enfrentar punições severas.
Um tribunal de Moscou bloqueou o Facebook e o Instagram por realizar “atividades extremistas” e uma nova lei de censura tornou a publicação de informações “falsas” sobre a invasão é punível com até 15 anos de prisão.
A pressão forçou os meios de comunicação independentes a saírem do país ou fecharem, deixando um vazio para a mídia estatal preencher com propaganda e desinformação.
Desesperadas para romper esse bloqueio, pessoas ao redor do mundo estão tentando maneiras criativas de se conectar com os russos. Ativistas online do grupo Anonymous dizem ter hackeado canais de TV russos para transmitir imagens da Ucrânia.
Outros, como a mulher que abre esta reportagem, Stonyte, estão tentando uma abordagem mais individual. Eles estão ligando ou enviando mensagens a estranhos na Rússia, esperando que seus apelos pessoais interrompam a propaganda do Kremlin – e potencialmente até ajudem a pôr fim à guerra mortal.
“Faça a ligação mais importante da sua vida”
Quando a Rússia iniciou sua invasão da Ucrânia em 24 de fevereiro, a documentarista Stonyte e seu marido Mantas Kazlauskas assistiram às notícias de sua casa na cidade portuária lituana de Klaipeda.
Stonyte, 30 anos, cresceu na Lituânia depois que o estado báltico declarou sua independência da União Soviética em 1990. Como conta, embora ela não se lembre da ocupação da Rússia, a ameaça russa nunca foi embora.
Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, ela disse que teve “uma sensação de desespero e desamparo”.
O casal começou a ligar para empresas, museus e restaurantes em Moscou e São Petersburgo, na esperança de contar o que estava acontecendo. Dias depois eles se depararam com a CallRussia.org, uma iniciativa lançada em 8 de março sob o slogan “Faça a ligação mais importante da sua vida”.
Cofundada por Paulius Senūta, diretor de uma agência de criação sediada na Lituânia, a iniciativa tem como objetivo fazer chamadas anônimas para 40 milhões de números de telefone em toda a Rússia.
A equipe reuniu números disponíveis publicamente na Rússia e criou uma plataforma que gera aleatoriamente um número de telefone da lista.
Um usuário pode optar por ligar por telefone, Telegram ou WhatsApp e, ao final da chamada, um pop-up do site pergunta ao usuário se ele conseguiu e, em caso afirmativo, se a ligação ocorreu bem.
A ideia é baseada na crença de Senūta de que o povo russo tem o poder de acabar com a guerra se tiver acesso a informações gratuitas e entender o sofrimento humano na Ucrânia.
“Há muito apoio na Rússia para essa guerra”, afirmou Senūta à CNN no mês passado. “Mas o engraçado disso é que eles não conhecem essa guerra. Eles não sabem que centenas, milhares de pessoas morreram, bombas foram lançadas, crianças mortas, mulheres deram à luz em metrôs – eles não sabem nada disso”.
Com a ajuda de psicólogos, a equipe de cerca de 30 pessoas de Senūta montou um roteiro para orientar os atendimentos. Eles não queriam entrar em confronto – em vez disso, o objetivo é “transmitir a tragédia humana e o fato de que eles não sabem disso”.
Em apenas uma semana após o lançamento do CallRussia, milhares de voluntários fizeram 84 mil ligações telefônicas.
Stonyte diz que poucas pessoas desligam. Em vez disso, a maioria se enquadra em uma das duas categorias: aqueles que argumentam de volta e aqueles que ouvem.
A lituana acredita que muitas pessoas podem não querer responder por medo de que a ligação seja monitorada e possam enfrentar punição.
Numa ocasião, ela fez uma ligação para um museu em Moscou, e a pessoa que atendeu o telefone falou muito pouco. Seu marido (que fala um pouco de russo) ajudou a traduzir as palavras que transmitiam o horror da guerra de Putin.
“Acredito que até o silêncio entre meu marido e aquela mulher foi muito importante”, disse Stonyte. “Sabe, ela não desligou o telefone. Ela esperou por um longo tempo, ela queria ouvir cada palavra”.
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“Eles existem em outra realidade”
Não são apenas estranhos que os ucranianos e outros estão tentando alcançar na Rússia. Após alguns dias de guerra, o dono de restaurante ucraniano Misha Katsurin se perguntou por que seu pai, que mora na Rússia, não ligou para ver como ele estava.
No entanto, quando ele mesmo ligou para seu pai, Katsurin descobriu algo perturbador: ele simplesmente não acreditava que houvesse uma guerra.
Mesmo quando Katsurin descreveu ser acordado por explosões e se esconder em um abrigo antiaéreo, seu pai permaneceu incrédulo. “Eles existem em outra realidade. Ele quer acreditar em mim, mas não pode”, lamentou.
O pai de Katsurin consome a mídia estatal russa, que vem apresentando uma narrativa muito diferente de como a guerra está se desenrolando.
Em 2 de março, por exemplo, quando ataques militares russos atingiram escolas e catedrais na segunda maior cidade da Ucrânia, Kharkiv, chamadas no canal de TV estatal russo RT afirmavam que 40 cidades e aldeias ucranianas haviam sido libertadas.
Até mesmo os impactos das sanções ocidentais (que agora estão sendo sentidos por pessoas comuns na Rússia) não são mencionados em notícias diárias russas.
Para ajudar outras pessoas em uma posição semelhante, Katsurin abriu um site chamado Papa Believe (Papai Acredite) que oferece dicas sobre como conversar com amigos e familiares sobre a guerra na Ucrânia.
Para aqueles que afirmam falsamente, como Putin fez, que os líderes do governo ucraniano são “nazistas”, ele recomenda dizer a eles que Zelensky é de uma família ucraniana-judaica.
Quando as pessoas afirmam que a invasão não é uma guerra, mas uma “operação especial”, ele recomenda explicar que um país cruzou a fronteira do outro e está bombardeando e capturando cidades.
Em uma gravação de uma ligação subsequente com seu pai, publicada em seu site, Katsurin tenta contrariar as ideias de seu pai de que os russos na Ucrânia são oprimidos, que os Estados Unidos estão fazendo os eslavos se matarem.
No início da ligação, Katsurin parece magoado. “Estou ligando para contar o que está acontecendo na minha vida e no meu país, coisas que vejo com meus próprios olhos, mas você não acredita em mim”.
No final da ligação, seu pai parece influenciado. “Eu sinceramente entendo seus sentimentos e estou muito preocupado com você”, o pai diz.
Mas convencer um estranho pode ser ainda mais difícil.
Henkka, um finlandês radicado na Estônia, que pediu para ser identificado apenas pelo primeiro nome, definiu sua localização no aplicativo de namoro Tinder para São Petersburgo, tomou alguns tragos e partiu em uma missão para contar aos russos sobre a guerra na Ucrânia.
Embora o Instagram e o Facebook tenham sido bloqueados, os aplicativos de namoro ainda estão acessíveis. Guias de “como fazer” ligações surgiram na plataforma de mídia social Reddit, aconselhando as pessoas a usar o recurso de passaporte do Tinder, que permite aos usuários se conectarem com pessoas de outros países, para compartilhar informações sobre a Ucrânia com os russos.
Os usuários compartilham dicas sobre como criar uma conta falsa confiável e dar “match” com o maior número possível de pessoas sem ser banido pelo algoritmo do Tinder, já que o Tinder diz que pode excluir contas usando o aplicativo para promover mensagens.
A cada “match”, Henkka abria a conversa com “Oi! Você já ouviu as notícias sobre a Ucrânia?” Henkka disse que ficou surpreso com a quantidade de pessoas com quem conversou que sabiam da invasão, mas permaneceram indiferentes sobre o assunto ou simplesmente ficaram confusos com relatos conflitantes na mídia russa e ocidental.
“Eles realmente não sabiam em quem confiar”, disse Henkka. “Algumas mudanças vão acontecer”.
A chamada anônima nem sempre tem o efeito desejado.
Serge Kharytonau, um bielorrusso que agora vive nos Estados Unidos, onde trabalha como especialista em mídia na International Strategic Action Network for Security, diz que fez cerca de 120 ligações para a Rússia desde o início de março como parte da iniciativa CallRussia. Mas, até agora, não teve o impacto que esperava.
Menos de cinco ligações foram bem-sucedidas, diz Kharytonau. Na maioria dos casos, a pessoa do outro lado da linha fica agressiva ou desliga abruptamente.
Kharytonau considera que o mais surpreendente é que os russos com quem ele conversou não apenas rejeitam informações alternativas como negam que elas sequer existam.
Para ele, embora o povo russo seja vítima da propaganda que lhes é imposta, seria “um grande erro” pensar que eles não têm responsabilidade.
“Por um lado, eles são as vítimas da propaganda política. Mas, por outro, é a decisão deles confiar na propaganda e negar até mesmo não apenas a informação alternativa, mas até mesmo o fato de que a informação alternativa existe”.
A realidade, porém, é que falar na Rússia pode potencialmente ter consequências pesadas. Uma jornalista russa, por exemplo, foi considerada culpada de organizar um evento público não autorizado e multada em 30 mil rublos (cerca de R$ 1.630) depois de protestar contra a invasão da Ucrânia durante uma transmissão ao vivo na televisão.
Mais de 14.763 manifestantes foram detidos em 151 cidades russas desde o início da invasão da Rússia, de acordo com OVD-Info, um grupo independente de monitoramento de protestos de direitos humanos.
Stonyte, a mulher que liga da Lituânia, é mais solidária com as dificuldades dos russos. Sua esperança é que os russos espalhem a verdade sobre o que está acontecendo em particular e, eventualmente, possam protestar contra o regime de Putin.
“No momento, o problema é que apenas uma porcentagem relativamente pequena de pessoas é contra a guerra. O governo pode facilmente silenciá-los e prendê-los. Eles não poderiam prender toda a nação (se os russos estivessem unidos)”.
Por enquanto, ela está apenas focada em ligar. E a ligação com a russa no mês passado é uma das mais bem-sucedidas que ela fez.
Durante a ligação, quando Stonyte começa a contar o que aconteceu na Ucrânia, a mulher parece concordar com o que está ouvindo, de acordo com uma gravação de sua ligação compartilhada com a CNN. Ela diz a Stonyte que sabe de tudo, mas tem medo de agir porque tem um bebê. Ela e seu parceiro estão pensando em deixar a Rússia.
Enquanto conversam, seus filhos podem ser ouvidos conversando ao fundo – e as duas mulheres começam a chorar.
“Eu realmente espero que você encontre um caminho e esteja segura nesta situação”, diz Stonyte à mulher.
“Somos mães e entendemos o quão importante é a segurança de nossos filhos. Quando convivemos com esse tipo de governo, é impossível estar completamente seguro, sentir-se seguro em sua própria casa. Espero mesmo que algumas mudanças aconteçam”.