Ilha francesa no Pacífico é assolada pela violência após votação na França
Confrontos em Nova Caledônia opõem comunidades indígenas Kanak pró-independência e habitantes franceses não querem romper os laços com sua pátria; violência irrompeu após votação a 17 mil quilômetros de distância dando mais direitos de voto aos residentes franceses
A violência mortal na ilha francesa da Nova Caledônia irrompeu pelo terceiro dia na quarta-feira (15), com confrontos armados entre manifestantes, milícias e polícia, com edifícios e carros incendiados na capital do arquipélago do Pacífico Sul.
Pelo menos três pessoas foram mortas a tiro durante os confrontos, considerados os piores desde a década de 1980, e que levaram as autoridades a impor um toque de recolher obrigatório na capital Noumea. Também está proibido reuniões públicas, porte de armas e venda de álcool, e o aeroporto principal – geralmente um centro turístico movimentado – foi fechado ao tráfego comercial.
A violência é a mais recente explosão de tensões políticas que duram anos e opõem as comunidades indígenas Kanak da ilha, em grande parte pró-independência – que há muito se irritam com o governo de Paris – contra os habitantes franceses que se opõem a romper os laços com a sua pátria.
Os militares franceses foram mobilizados e enviaram “quatro esquadrões adicionais para restaurar a ordem”, segundo o ministro do Interior francês, Gerald Darmanin.
Situada no Pacífico Sul, tendo como vizinhos a Austrália, Fiji e Vanuatu, a Nova Caledônia é um território francês semiautônomo – um entre uma dúzia espalhados pelo Pacífico, Caribe e Oceano Índico.
Os protestos começaram na segunda-feira (13), envolvendo sobretudo jovens, em resposta à realização de uma votação a 17 mil quilômetros de distância, no parlamento francês, propondo alterações à constituição da Nova Caledônia que dariam mais direitos de voto aos residentes franceses que vivem nas ilhas. Na terça-feira (12), os legisladores votaram esmagadoramente a favor da mudança.
A medida acrescentaria milhares de eleitores adicionais aos cadernos eleitorais da Nova Caledônia, que não são atualizados desde o final da década de 1990. Grupos pró-independência dizem que as mudanças são uma tentativa da França de consolidar o seu domínio sobre o arquipélago.
“Nos últimos dois dias vimos uma violência em uma escala que não víamos há 30 anos na Nova Caledônia”, disse Denise Fisher, ex-cônsul-geral australiana na Nova Caledônia, à CNN. “Isso marca o fim de 30 anos de paz na Nova Caledônia”.
“O povo Kanak opõe-se [à votação na França] não só porque foi decidida em Paris sem eles, mas também porque sentem que eles querem que isso faça parte de uma negociação… que incluiria outra votação de autodeterminação e uma série de outras coisas”.
O presidente francês, Emmanuel Macron, apelou à calma, emitindo uma carta na quarta-feira aos líderes políticos da Nova Caledônia, instando-os a “condenar inequivocamente toda essa violência” e convidando os líderes pró e anti-independência a encontrá-lo “cara a cara” em Paris.
Macron presidirá um conselho de defesa e segurança nacional nesta quarta-feira (15), com foco na violência, informou o palácio presidencial.
A administração de Macron pressionou por um pivô para o Indo-Pacífico, sublinhando que a França é uma potência do Pacífico, à medida que a China e os Estados Unidos reforçam a sua presença no meio de uma batalha pela influência nessa região estrategicamente importante. A Nova Caledônia está no centro desse plano.
“As apostas são altas para a França”, acrescentou Fisher. “A França identificou para si toda uma visão Indo-Pacífico. A legitimidade da participação da França dessa forma, tendo uma influência dessa forma, está em questão quando se têm cenas como esta”.
Violência
Três pessoas – dois homens e uma mulher, todos indígenas Kanaks – foram mortas a tiros nos violentos protestos e saques, segundo Charles Wea, porta-voz de Louis Mapou, presidente do governo da Nova Caledônia.
Os manifestantes também incendiaram edifícios e carros em Noumea, desafiando o toque de recolher obrigatório que foi prorrogado até quinta-feira (16).
Densas nuvens de fumaça preta cobriram a capital na manhã de quarta-feira, mostrou um vídeo nas redes sociais. As imagens mostram carros queimados, incêndios nas ruas e lojas vandalizadas e saqueadas.
“Alguns estão equipados com rifles de caça com chumbo grosso como munição. Outros estavam equipados com rifles maiores, disparando balas”, disse o alto comissário francês na Nova Caledônia, Louis Le Franc. Mais de 140 pessoas foram presas, enquanto pelo menos 60 agentes de segurança ficaram feridos nos confrontos entre grupos nacionalistas locais e as autoridades francesas, segundo Le Franc.
Um residente de Noumea disse à Rádio Nova Zelândia, afiliada da CNN, sobre compras de pânico que lembram a Covid-19. “Muito fogo, violência, mas é melhor ficar seguro em casa. Há muita polícia e exército. Quero que o governo tome medidas pela paz”, disse a pessoa à RNZ, pedindo para permanecer anônimo.
Votação
A França colonial assumiu o controle da Nova Caledônia em 1853. Seguiu-se o assentamento dos brancos e o povo indígena Kanak foi vítima de duras políticas de segregação por muito tempo. Muitos habitantes indígenas continuam vivendo com altas taxas de pobreza e elevado desemprego até hoje.
A violência mortal explodiu na década de 1980, abrindo eventualmente o caminho para o Acordo de Noumea em 1998, uma promessa da França de dar mais autonomia política à comunidade Kanak.
Vários referendos foram realizados nos últimos anos – em 2018, 2020 e 2021 – como parte do acordo que oferece aos eleitores da Nova Caledônia a opção de se separarem de França. Cada referendo foi rejeitado, mas o processo foi prejudicado por boicotes de grupos pró-independência e pela Covid-19.
O papel dos eleitores foi congelado desde o Acordo de Noumea, a questão que o parlamento francês procurava abordar na votação que desencadeou a violência desta semana.
Os legisladores franceses em Paris votaram 351-153 a favor da mudança da constituição para “descongelar” os cadernos eleitorais do território, concedendo direitos aos residentes franceses que estão na Nova Caledônia há 10 anos.
As listas foram congeladas pelo governo francês para apaziguar os nacionalistas Kanak pró-independência, que acreditam que os recém-chegados à ex-colônia, incluindo vindos de França, diluem o apoio popular à independência.
Ambas as câmaras do parlamento francês precisam aprovar a mudança constitucional aprovada pela Assembleia Nacional.
Na terça-feira, o primeiro-ministro francês, Gabriel Attal, disse que o governo não convocaria uma reunião do parlamento para votar a moção antes das conversações com os líderes Kanak, incluindo a principal aliança de independência, o Kanak, e a Frente Socialista de Libertação Nacional (FLNKS).
“Convido os líderes políticos da Nova Caledônia a aproveitarem essa oportunidade e virem a Paris para conversações nas próximas semanas. O importante é a conciliação. O diálogo é importante. Trata-se de encontrar uma solução comum, política e global”, disse Attal no plenário da Assembleia Nacional.
A FLNKS emitiu a sua própria declaração na quarta-feira, condenando a votação na Assembleia Nacional e apelando ao fim da violência.
“A FLNKS apela aos jovens envolvidos nessas manifestações para o apaziguamento e para garantir a segurança da população e da propriedade”, dizia a nota.