Hafus estão em alta no Japão, mas mestiços dizem se sentir estrangeiros no país
Palavra é vem do inglês half (metade, em português) para descrever pessoas multiétnicas no país
“Com licença, você é hafu?”, perguntou o taxista.
Anna, uma mulher de ascendência japonesa e norte-americana, estava em um táxi a caminho de uma festa em Tóquio no ano passado quando a perguta – que ela já esperava – foi feita. A palavra japonesa “hafu” (ou “half”, “meio” em inglês) se refere a pessoas que são etnicamente metade japonesas, e agora é mais usada para pessoas multiétnicas em geral no Japão.
Anna, que pediu anonimato por razões de privacidade, é filha de mãe japonesa e pai norte-americano branco e passou a infância no Japão, antes de se mudar para os Estados Unidos na adolescência.
“Não sei quantas horas passei contando a história da minha vida para estranhos que querem satisfazer a curiosidade”, contou Anna. “Até que cheguei a um ponto em que pensei: por que preciso compartilhar minha formação biológica com alguém que nunca mais vou encontrar de novo?”
Os números oficiais pintam o Japão como uma nação etnicamente homogênea. De acordo com o censo de 2018, 98% da população é considerada japonesa. Pessoas que parecem diferentes, portanto, atraem mais atenção do que seria comum em um país com maior diversidade étnica, como os EUA.
Em alguns casos, isso não é ruim.
Muitos artistas de herança mista e estrelas do esporte são extremamente populares no Japão. Figuras conhecidas como a modelo da Vogue Rina Fukushi e a estrela do tênis Naomi Osaka deram às pessoas de herança mista mais destaque na esfera pública no Japão e em todo o mundo.
Para outros, entretanto, o aparente fascínio por sua herança atrai atenção indesejada e pode ser um convite ao racismo casual. Alguns que se consideram japoneses dizem que isso os faz se sentirem “outros” em seu próprio país.
Herança mista
A identidade de raça mista tem uma história complexa no Japão.
Entre 1639 e 1853, o Japão fechou suas fronteiras à influência estrangeira, com exceção dos comerciantes chineses e holandeses que vieram para as cidades portuárias de Yokohama e Nagasaki.
Nesses centros, o termo depreciativo “ainoko” (ou “híbrido”) era usado para descrever as crianças nascidas de casais com um japonês e um estrangeiro, de acordo Hyoue Okamura, um estudioso japonês que se debruça sobre o tema. Conforme o Japão se abriu e se modernizou durante a Era Meiji (1868 a 1912), passou a cultivar sua marca própria de nacionalismo, promovendo a homogeneidade racial e superioridade do país sobre outras nações asiáticas. Com o conceito de supremacia japonesa, surgiram novos termos para descrever pessoas de raça mista.
Na década de 1930, o termo “konketsuji” (“criança de sangue mestiço”) descreveu os filhos de japoneses que se casaram com habitantes locais nas áreas colonizadas pelo Japão na China, Taiwan e Coreia. Tais filhos enfrentaram discriminação, já que o governo considerava as pessoas das colônias japonesas inferiores aos japoneses.
Após a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial e durante a ocupação norte-americana (1945 a 1952), o termo “konketsuji” foi aplicado aos filhos de militares norte-americanos e mulheres japonesas, e era considerado depreciativo. Os políticos associaram essas crianças à derrota do Japão e as pintaram como um problema para a sociedade.
“Naquela época, havia muito debate sobre se devíamos assimilar ou separar essas crianças quando entrassem na escola primária”, contou Lawrence Yoshitaka Shimoji, sociólogo da Universidade Ritsumeikan no Japão.
Leia também:
Robôs de mais de dois metros de altura arrumam prateleiras em lojas de Tóquio
A última sensação em Tóquio: banheiros públicos transparentes
Um mundo em mudança
Conforme o Japão absorveu as influências ocidentais nos anos pós-Segunda Guerra Mundial, as percepções mudaram.
As línguas europeias eram vistas como chiques e exóticas, e o fascínio do Japão pelas estrelas de cinema ocidentais cresceu.
Vislumbrando uma oportunidade, as agências de talentos japonesas começaram a promover atores, dançarinos e cantores de herança mista, segundo o professor Okamura.
Naquela época, o termo depreciativo “konketsuji” havia dado lugar a “hafu”, uma abreviação da palavra “half-caste”, ou “mestiço”. Em 1973, seu uso foi formalizado na edição de 1973 do dicionário Kojirin, de Kanazawa Shozaburo, onde foi listado como sinônimo de “konketsuji”.
No entanto, “hafu” não tinha as mesmas conotações negativas que “konketsuji”. Foi até usado como um ponto de venda para promover a banda feminina Golden Half (ou Goruden Hafu, como se fala em japonês). O quinteto mestiço apresentou covers de canções pop ocidentais, como a canção pop norte-americana “The Loco-motion”, de 1962, mais famosa pela versão de Kylie Minogue dos anos 80, e “Come, Come Hawaii!!!” em japonês.
As indústrias de maquiagem e moda pegaram carona na tendência, criando o termo “hafu-gao” ou “meia-cara” para representar um look ambicioso que parecia meio estrangeiro. Segundo Okamura, esse visual valorizou os japoneses com pernas mais longas e traços faciais definidos, incluindo olhos maiores e narizes mais altos, que lhes davam a impressão de não serem japoneses.
Mas, para Okamura, no lugar de unir a população, o burburinho em torno dos “hafu” criou uma mentalidade de “nós e eles”. Pessoas de ascendência mista que parecem mais estrangeiras do que japonesas podem ser tratadas como estrangeiras, mesmo que sejam japonesas, acrescentou o professor.
Isso nem sempre é bem-vindo.
Imigração
O fascínio pelo povo japonês de origem mista também pode ser atribuído à falta de imigração do país.
No ano passado, o país registrou um recorde de 2,93 milhões como novos residentes, de acordo com a Agência de Serviços de Imigração do Japão. Isso ainda é apenas 2,3% de uma população de 126 milhões – muito menor do que os 9% de cidadãos estrangeiros residentes no Reino Unido e dos 13,7% dos cidadãos norte-americanos que nasceram em outro lugar. Em 2018, a câmara de deputados japonesa aprovou uma mudança proposta pelo primeiro-ministro Shinzo Abe para criar novas categorias de vistos, permitindo que cerca de 340 mil trabalhadores estrangeiros tenham empregos tanto de alta qualificação como de baixos salários no Japão ao longo de cinco anos.
Foi uma grande mudança na abordagem do Japão em relação à imigração.
No entanto, a mudança não foi longe o suficiente, de acordo com Jeff Kingston, um especialista em Japão da Universidade Temple, da Filadélfia. Segundo Kingston, as vagas serão preenchidas por trabalhadores migrantes que deverão deixar o Japão um dia.
Apesar das barreiras, a demografia do Japão está mudando lentamente. Em 2019, um em cada 30 bebês nascidos no Japão tinha um pai não japonês, em comparação com um em cada 50 bebês há três décadas, de acordo com o Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar.
Embora os nipo-brasileiros, ryukyuanos étnicos, nipo-coreanos e nipo-chineses, entre outros povos de herança mista, façam parte da sociedade, muitas vezes essa diversidade não se reflete nos números da população. Países como Estados Unidos e Grã-Bretanha pedem às pessoas que identifiquem sua etnia em pesquisas, mas, no Japão, raça, etnia, idioma, cultura, classe e cidadania são combinados, muitas vezes deixando apenas opções para se identificar como “japonês” ou ‘estrangeiro”, de acordo com um relatório de 2013 publicado na revista Sociology Compass. Em 2019, o governo japonês mudou a lei para considerar o povo indígena Ainu como uma minoria. Mas não há caixa para marcar nos formulários de censo se a pessoa é de origem mista, diz Shimoji, da Universidade Ritsumeikan. Segundo ele, os formulários do censo japonês não perguntam aos entrevistados suas origens étnicas e raciais, nem as nacionalidades de seus pais.
A constituição do Japão estipula que todos os cidadãos são iguais perante a lei e têm direitos humanos fundamentais garantidos. Nas escolas, os professores educam as crianças sobre esses tópicos, mas as ideias não se enraizaram adequadamente no país, diz o professor Okamura.
Um exemplo, segundo Shimoji, é a discriminação que nipo-chineses ou nipo-coreanos, que são chamados de “hafu invisíveis”, enfrentam quando admitem sua origem étnica não japonesa.
Outras pessoas com pele mais escura podem receber atenção indesejada.
Igualdade de medição
David Yano, meio japonês e meio ganês, mora no Japão há mais de 20 anos. Ele já apareceu em programas de televisão para falar sobre suas experiências de crescimento no país.
Nem sempre foi fácil. Yano diz que sofreu bullying por parecer diferente na escola. Quando começou a ficar popular como comentarista cultural na TV, seus agentes recomendaram que ele jogasse com os estereótipos dos negros como sendo engraçados e tentasse se tornar um comediante.
Yano disse que foi parado pela polícia no bairro de Shinjuku, em Tóquio, e enfrentou discriminação ao tentar alugar uma casa. Ele diz que os agentes imobiliários lhe disseram que os proprietários rejeitaram seus pedidos de aluguel com base na cor de sua pele. “Eles não se preocupam em descobrir meu histórico. Em vez disso, se preocupam com o que os outros inquilinos vão pensar”, contou Yano.
Não há pesquisas examinando o número de cidadãos japoneses de ascendência mista que não conseguiu alugar ou comprar imóveis. Mas há um relacionado aos estrangeiros. Em 2017, uma pesquisa do governo com 2.044 pessoas descobriu que 39% tiveram sua moradia negada por serem estrangeiros.
“Os japoneses (de herança mista) estão vivenciando o racismo, mas, como são japoneses, não são incluídos nas pesquisas que destacariam essa questão”, diz Shimoji, o sociólogo.
Yano agora é o fundador da Enijie, uma organização sem fins lucrativos que promove a educação e os laços entre Gana e Japão. Ele acha que o Japão está mudando lentamente à medida que mais pessoas se tornam abertas a questionar seus preconceitos e suposições sobre o que significa ser japonês.
Yano é uma das várias pessoas que estão tentando expandir a mentalidade do povo japonês.
Outro exemplo vem do sociólogo Shimoji. Em 2018, ele cofundou o site de informações HafuTalk, onde pais, pessoas de origem mista e professores podem discutir questões de diversidade, inclusão e identidade.
Os temas de discussão incluem lidar com estereótipos de hafu, onde se presume que eles sejam tudo, desde bilíngues a “decepcionantes” se não forem atraentes, não bilíngues e de pais não brancos.
No ano passado, Anna fez pequenos “cartões de visita” para dar a estranhos japoneses intrometidos. Nele, estão informações sobre seus pais (japonesa e norte-americano) e até coisas como se seus cílios são reais ou falsos. Ele também afirma que é rude perguntar a alguém que você acabou de conhecer perguntas pessoais sobre sua raça e aparência.
Até agora, Anna distribuiu cerca de 15 cartões. Um homem na casa dos 60 anos presumiu que Anna era estrangeira e comentou sobre sua decisão de comprar em uma loja de conveniência um prato típico japonês coberto com inhame ralado. Com raiva, ele jogou o cartão de volta para ela ao recebê-lo. Outra mulher disse que achava que Anna consideraria seus comentários sobre sua aparência um elogio. Ela perguntou se poderia ficar com o cartão para mostrar ao marido.
Em junho, Anna tuitou uma foto desse cartão enquanto muitos usuários japoneses das redes sociais expressavam seu apoio ao movimento Black Lives Matter. O tuíte rapidamente ganhou mais de 124 mil curtidas e 33.400 retuítes. Um usuário do Twitter disse que não tinha herança mista, mas que o cartão era útil para as pessoas hoje. “Para aqueles que reclamam deste cartão, gostaria de sugerir um curso de antropologia cultural. Hahaha”, acrescentou. Outros estavam menos convencidos, tuitando que quem recebesse o cartão se sentiria desconfortável.
Etiquetas à parte
Às vezes, Anna é chamada não de “hafu”, mas de “daburu”. O termo (que significa “duplo”) foi cunhado na década de 1990, depois que a mãe de uma criança de herança mista escreveu a um jornal japonês para promover as conotações positivas de uma palavra que implica duas raízes.
“No meu grupo de amigos, daburu não é tão popular. Não estamos chateados por sermos hafu; o que nos magoa é as pessoas pensarem que somos diferentes”, explicou Anna. “Prefiro o termo “mikusu”
(“misto”) porque envolve mais pessoas, mas prefiro não ser chamada de nada”.
Rótulos à parte, ela diz que o Japão não está se mantendo atualizado com os debates sobre igualdade racial que acontecem em outros lugares.
Em 2018, por exemplo, a vitória de Naomi Osaka no torneio de tênis US Open desencadeou uma intensa discussão nas redes sociais sobre o que significa ser japonês, com usuários elogiando Osaka por sua vitória no Japão. A origem da tenista inclui Japão, Haiti e Estados Unidos.
Alguns foram rápidos em apontar os padrões duplos.
“Sinto muito, mas as pessoas que dizem que Naomi Osaka é japonesa ou a chamam de orgulho do Japão me dão nojo. Você não pode simplesmente abraçar ‘hafu’ (pessoas birraciais) como japonesas quando quiser. Você costuma nos discriminar”, tuitou @phie_hardison.
Dois anos depois, as gafes em torno de raça e identidade ressurgiram quando a emissora pública japonesa NHK derrubou um polêmico anime que supostamente explicava o movimento Black Lives Matter, acusado de ser antiquado e racista por usuários das redes sociais. O vídeo – que perpetuava estereótipos e não fazia menção a George Floyd – provocou um rápido pedido de desculpas da NHK e uma promessa de retreinar a equipe.
Depois que o cartão da visita de Anna se tornou viral no Twitter, ela recebeu mensagens de crianças japonesas de origem mista que lhe pediram conselhos sobre como lidar com os valentões na escola. A moça sentiu que a conversa não tinha avançado desde os tempos em que ela esteve na terceira série primária e era intimidada por parecer diferente.
Para mudar a mentalidade, Anna quer que pessoas influentes conhecidas do público falem sobre a discriminação negativa que experimentaram antes da fama. Segundo ela, políticos, CEOs famosos e artistas que endossam o multiculturalismo precisam dizer às pessoas que o racismo casual é prejudicial e ofensivo.
Quanto ao cartão de visitas, Anna acha que a atenção que despertou é positiva.
“O fato de que as pessoas falaram sobre este cartão é uma pequena, mas grande mudança. Nesse sentido, sinto que houve mudanças e há espaço para mais nos próximos anos”, afirma Anna. “Mas, a menos que algo dramático aconteça, não será o suficiente”.
(Yoko Wakatsuki da CNN em Tóquio contribuiu para esta reportagem.Texto traduzido, leia o original em inglês)