Filhos de autoridades ligadas ao Kremlin cresceram em países que pais dizem rejeitar
Jovens ostentam viagens, estudos em universidades prestigiadas e mansões em países ocidentais, enquanto quase 20 milhões de russos vivem na pobreza
O mundo deles é repleto de jatos particulares, elegantes apartamentos parisienses, férias de esqui na Áustria e estudos em universidades de elite em Londres e Nova York.
Seus pais possuem imóveis sofisticados nas avenidas mais exclusivas das capitais da Europa. Seus perfis nas redes sociais estão cheios de posts com vestidos de grife e das participações em eventos de tapete vermelho.
Uma jovem postou fotos de seu aniversário de 22 anos, à beira da piscina, em uma mansão de um dos oligarcas de Putin, no Mar Adriático.
Os filhos do Kremlin
Enquanto seus pais protestam publicamente contra o Ocidente, seus filhos crescem nos mesmos países cujas sociedades eles afirmam rejeitar.
“Obviamente, é uma hipocrisia extrema”, disse Daniel Treisman, professor especializado em política russa na Universidade da Califórnia, em Los Angeles.
“Eles podem até nem ver a contradição”, disse Treisman. “Eles acreditam que há essa competição entre os EUA e a Rússia, mas por que isso afetaria os planos educacionais das filhas? Ou onde eles têm suas mansões?”.
O próprio Putin criticou os russos que podem “mentalmente” se alinhar com o Ocidente em um discurso no mês passado, os acusando de pensar que são parte de uma “raça superior” e de trabalhar com o “Ocidente coletivo” em direção a um objetivo: “a destruição da Rússia”.
“O povo russo sempre será capaz de distinguir os patriotas verdadeiros daqueles que são escória e traidores, e simplesmente cuspi-los para fora como um mosquito que acidentalmente entrou em suas bocas”, disse Putin.
Uma das primeiras famílias da suposta corrupção e hipocrisia russa é a de Dmitry Peskov, vice-chefe de gabinete e porta-voz de Vladimir Putin – um papel que o torna o megafone mais barulhento de Putin, aquele que quase diariamente dispersa a ácida linha-dura do presidente russo contra o Ocidente.
Os Estados Unidos recentemente sancionaram Peskov, sua esposa e dois filhos adultos (de dois casamentos anteriores), afirmando que a família vive “estilos de vida luxuosos que são incongruentes com o salário de funcionário público de Peskov e, provavelmente, são construídos sobre a riqueza ilícita das conexões de Peskov com Putin”.
Pelo menos dois de seus filhos foram criados na Europa Ocidental antes de retornar a Moscou já adultos.
Embora o Tesouro dos EUA não tenha explicado os excessos questionáveis, Peskov – que tem exercido seu cargo por quase uma década e supostamente ganhou US$ 173 mil em 2020 – foi visto usando um relógio de grife de US$ 600 mil e fez uma viagem de lua de mel que incluiu um iate de aproximadamente US$ 430 mil por semana pela costa da Sardenha, de acordo com uma investigação da Fundação Anticorrupção fundada pelo líder da oposição russa, Alexei Navalny.
Com base em registros de propriedade, postagens de redes sociais e bancos de dados de infrações de trânsito, a Fundação Anticorrupção também revelou que a esposa, ex-esposa e filhos de Peskov possuem veículos de luxo e casas multimilionárias em todo o mundo – incluindo na Rússia e França – uma exibição de riquezas que contrasta com os quase 20 milhões de russos que vivem na pobreza.
A riqueza impressionante, mas aparentemente inexplicável, dessas famílias no mundo de Putin, dizem os especialistas, se resume a um único conceito: cleptocracia.
“Uma cleptocracia é meramente um Estado governado por ladrões”, disse Jodi Vittori, professora especialista em corrupção e política global na Universidade de Georgetown, nos EUA, “onde as políticas e decisões tomadas são para benefício desses ladrões”.
Uma teia complicada de empresas de fachada, bancos offshore e transações ocultas muitas vezes obscurece a riqueza deles, com contas escondidas umas dentro das outras, dificultando o rastreamento de onde os fundos estão vindo.
A riqueza acumulada pelos cleptocratas russos é gasta, com frequência, nas economias ocidentais.
“Eles querem morar no Ocidente porque os países mais ricos do mundo estão no Ocidente. Os incríveis centros culturais estão no Ocidente”, disse Treisman. “Mas, além disso, os países ocidentais têm um estado de direito muito mais seguro do que a Rússia. Então, se eles conseguirem colocar muito dinheiro no Ocidente, eles podem se sentir mais seguros”.
A hipocrisia das autoridades russas e suas famílias desfrutando da liberalidade do Ocidente tem sido um segredo aberto na Rússia há anos.
Em 2016, um projeto de lei foi apresentado à Duma proibindo a maioria das autoridades da Rússia que tem filhos menores de educá-los em universidades estrangeiras, alegando que a educação doméstica seria a chave para se tornarem verdadeiros patriotas. O projeto não foi aceito.
A filha de 24 anos do segundo casamento de Peskov, Elizaveta Peskova – cujas postagens atrevidas nas redes sociais muitas vezes se tornaram notícias de tabloides russos e europeus – não se esquivou dos holofotes ou da controvérsia, como quando ela disse a uma emissora de TV russa que ela se sente “melhor no ambiente europeu” e chamou o sistema educacional da Rússia de “verdadeiro inferno”.
Mais recentemente, ela contradisse as declarações públicas de seu pai postando “não à guerra” em seus stories no Instagram, o slogan usado pelos russos que se opõem à guerra na Ucrânia. A imagem da postagem foi capturada e compartilhada pela emissora de TV russa Rain, mas foi retirada rapidamente.
Quando criança, Peskova teria frequentado a Ecole des Roches, nos arredores de Paris – onde a mensalidade anual é cerca de um quarto do salário de seu pai e as atividades extracurriculares incluem aulas de aviação.
Peskova continuou sua educação parisiense com um estágio na Louis Vuitton e um diploma de marketing de uma escola de economia francesa. Ela até estagiou para o Parlamento Europeu.
De acordo com a Fundação Anticorrupção, Peskova e sua mãe compraram um apartamento de quase US$ 2 milhões e 180 metros quadrados, em 2016, em um dos bairros mais caros de Paris, na Avenida Victor Hugo, entre a Torre Eiffel, o Arco do Triunfo e o exuberante parque Bois de Boulogne. A CNN não conseguiu confirmar a compra.
A extravagância de Peskova na França é paralela à de seu meio-irmão na Rússia. Uma investigação de 2017 do grupo anticorrupção de Navalny descobriu que Nikolay Choles – o filho mais velho de Peskov que cresceu na Inglaterra – viajou o mundo em jatos particulares, possuía imóveis de luxuosos em Moscou e dirigiu sua frota de veículos de luxo pela cidade acumulando 116 infrações de trânsito, enquanto supostamente estava desempregado.
“Certamente representa um alto nível de cinismo, pelo menos, se não hipocrisia total”, disse Vittori, professora da Georgetown.
Peskova chamou as sanções e a noção de que ela está de alguma forma permitindo a guerra de “totalmente injusta e infundada” e disse ao Business Insider que está “chateada” porque as restrições a impedem de viajar.
Em uma declaração no Telegram, Peskova escreveu que é “orgulhosa” de ser russa e que sancionar filhos adultos e “especialmente mulher” é “loucura”. “Dificilmente haverá um julgamento justo”, acrescentou ela, “durante uma caça às bruxas e um ódio frenético por tudo que é russo”.
Peskova – que, quando contatada pela CNN, não comentou os detalhes deste artigo até o momento da publicação – não é a única filha conectada ao Kremlin que desfruta da alta sociedade continental.
O ministro das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, que pediu uma ordem mundial “pós-ocidente” em 2017, enviou sua filha para universidades de prestígio em Londres e Nova York.
Até a filha da suposta namorada de Lavrov aparentemente se beneficia da posição influente dele: ela postou fotos de si mesma em um iate, na estância de esqui austríaca e na mansão à beira-mar de um rico oligarca, de acordo com a Fundação Anti-Corrupção.
Polina Kovaleva – que o governo do Reino Unido se refere como “enteada” de Lavrov, embora ele não seja oficialmente casado com a mãe dela – possui um apartamento de US$ 5,8 milhões em um dos bairros mais caros de Londres, de acordo com sanções recentes impostas contra ela.
A Fundação Anticorrupção revelou que Kovaleva comprou o apartamento de Kensington quando tinha 21 anos. O apartamento fica a uma curta distância do Imperial College, que ela também frequentou.
A filha muito menos visível de Lavrov, Ekaterina Vinokurova, agora com 39 anos, frequentou a Universidade de Columbia, em Nova York, onde morou por 17 anos, antes de obter seu diploma de pós-graduação na London School of Economics. Ambos Kovaleva e Vinokurova foram recentemente sancionadas pelo Reino Unido.
“Isso envia um forte sinal de que aqueles que se beneficiam da associação dos responsáveis pelo ataque russo estão no escopo de nossas sanções”, escreveu a secretária de Relações Exteriores do Reino Unido, Liz Truss, em um comunicado à imprensa, anunciando as sanções contra Kovaleva.
O próprio Putin não é exceção à hipocrisia da dura retórica antiocidental diante de familiares ou pessoas próximas a ele, aproveitando o que o Ocidente tem a oferecer.
Uma de suas supostas parceiras, que seria mãe de uma de suas filhas, tornou-se proprietária de um apartamento de US$ 4,1 milhões em Mônaco, apenas algumas semanas após o nascimento da criança, de acordo com uma investigação da mídia independente russa Proekt, baseada nos chamados Pandora Papers.
Sua filha mais velha, Maria, teria se casado com um empresário holandês; o casal teria morado em um apartamento de US$ 3,3 milhões na Holanda.
Uma mansão de oito quartos em Biarritz, na França, ligada à sua filha mais nova, Katerina – a mansão multimilionária foi comprada por seu ex-marido, Kirill Shamalov, do amigo de longa data e bilionário de Putin, Gennady Timchenko – foi recentemente invadida por ativistas e oferecida como um abrigo para refugiados ucranianos.
As duas filhas de Putin foram sancionadas pelo Reino Unido e pelos Estados Unidos na semana passada.
Peskov chamou as novas medidas de “tendência frenética” de Washington de impor sanções a Moscou. “A Rússia responderá sem falhas e o fará como achar melhor”, acrescentou.
Há rumores de que Putin tem mais filhos fora do casamento, todos os quais parecem ter vivido em países ocidentais. Essas informações sempre foram negadas pelo Kremlin.
Apesar das conexões de seus próprios familiares com o Ocidente, Putin recentemente apontou para outros russos com “mansões em Miami ou na Riviera Francesa, que não podem viver sem foie gras, ostras ou liberdade de gênero, como eles chamam”.
O problema com essas pessoas, disse Putin em 16 de março, é que elas estão “lá em suas mentes e não aqui com nosso povo e com a Rússia”.
*Com informações de Drew Griffin e Jeffrey Winter