Everest sofre com excesso de alpinistas 70 anos após primeira escalada
Congestionamentos em trilhas aumentam os riscos e resultaram em elevação no número de mortes nos últimos anos; impacto ambiental é considerável com o aumento de lixo descartado na montanha
Uma das mais emblemáticas conquistas humanas sobre territórios inexplorados completa 70 anos nesta segunda-feira. No dia 29 de maio de 1953 o então inalcançável topo do monte Everest, a montanha mais alta do mundo, foi finalmente atingido. A façanha do neozelandês Edmund Hillary e de seu guia, o nepalês Tenzing Norgay encerrou décadas de tentativas frustradas.
Com o passar dos anos mais de 6 mil pessoas conseguiram repetir o feito e chegar aos 8.849 metros, mas o tempo fez com que o Everest se tornasse uma montanha muito diferente da que foi vencida pela primeira vez nos anos 1950. Hoje o local vive um dilema causado pelo excesso de alpinistas, que todos os anos afluem aos acampamentos em busca de aventura, sentido para a vida ou mesmo da fama advinda dessa conquista.
A chamada temporada de escalada ocorre entre o fim de abril e de maio, quando as condições climáticas são menos rigorosas e oferecem melhores condições para a escalada. Isso não significa que a tarefa seja fácil: nevascas continuam atingindo a região e exigem um preparo físico e psicológico excepcional para superar a meta.
Nos últimos 10 anos o número de alpinistas, não só no Everest mas em outros grandes picos, registrou um crescimento impressionante. A pandemia da Covid arrefeceu esse ímpeto por um tempo, mas a atual temporada já está marcada pela retomada das atividades em ritmo frenético e assustador. Cerca de mil pessoas tentaram, nesta temporada de escalada já em fase final, escalar um dos 25 picos mais elevados da Cordilheira do Himalaia. Desse total, 600 estão focados no Everest. Trata-se de um recorde, superando a temporada de 2019, a última antes do Covid-19, quando 550 pessoas foram à montanha tentando atingir o pico.
Para piorar, o acesso norte, a partir do Tibete, está fechado desde a pandemia. O que faz com que apenas o acesso sul, a partir do Nepal, seja procurado pelos alpinistas, que acabam se concentrando em um espaço ainda mais exíguo.
Esse grande número de pessoas acabou criando um cenário de risco considerável: como as trilhas para escaladas são estreitas, na alta temporada é preciso enfrentar uma fila enorme de alpinistas até que chegue a sua vez de escalar. Isso faz com que o tempo de permanência nas elevadas altitudes seja maior, assim como os riscos à saúde.
Riscos ao organismo
“Altitudes elevadas podem gerar o que chamamos de Edema Pulmonar de Grande Altitude (EPGA), que tem a ver com o acúmulo de líquido nos pulmões. Ele surge entre 24 e 96 horas depois de a pessoa ter realizado uma subida rápida até mais de 2.500 metros”, explica a pneumologista Michelle Andreata Souza Moura. Segundo ela, alpinistas mais experimentados começam a sentir mais os efeitos a partir dos 6 mil metros. “Mesmo pessoas que vivem nas montanhas ou que já estão mais acostumadas a aguentar os baixos índices de oxigênio sentem a pressão, com sintomas como muita fraqueza e taquicardia”.
Helano Neiva de Castro, também pneumologista, explica que a partir dos 3.600 metros o organismo recebe 40% a menos de oxigênio. “O ser humano consegue chegar até os 5 mil metros sem uso de oxigênio extra”.
As dificuldades crescentes atingem um ponto extremamente crítico quando se atinge o que os especialistas chamam de “zona da morte”, acima dos 8 mil metros. “Nessa altura respirar se torna missão praticamente impossível mesmo com oxigênio extra”, explica o especialista. E é justamente nesse trecho em que o excesso de alpinistas pode se tornar mortal.
O ortopedista Marcos Cortelazo, especializado em ortopedia e traumatologia esportiva, explica que é preciso ter muita atenção no tempo em que o alpinista se manterá nessa área de risco extremo. “Geralmente, recomenda-se que os alpinistas evitem permanecer em altitudes superiores a 8.000 metros (26.000 pés) por mais de 48 a 72 horas consecutivas”.
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Cortelazo explica que os cuidados com o aparelho locomotor precisam estar no radar dos alpinistas. “As baixas temperaturas também representam um desafio significativo. O frio intenso pode levar a congelamento e lesões graves na pele, extremidades e tecidos do corpo”, explica
Ele explica que, a permanência prolongada pode causar, além da hipotermia, outros problemas. “Não é raro ocorrer uma necrose tecidual tão intensa que pode levar a necessidade de amputação de extremidades como nariz, orelhas, dedos, mãos, e pés”.
Os riscos neurológicos também não são desprezíveis. “Algumas pessoas podem apresentar uma forma mais grave do chamado Mal das Montanhas, que pode levar ao edema cerebral de altitude. Se não for tratado rapidamente, pode levar a complicações graves e até ao óbito”, explica o neurologista Felipe Mendes. “Isso pode acontecer nas 24 a 96 horas após exposição a altas altitudes”.
Ele faz algumas recomendações especiais aos alpinistas: “É preciso fazer a subida de forma lenta e gradual, fazendo paradas para ambientação”, explica. “Uma sugestão de trajeto é um tempo de 2 dias para atingir 2400 metros e, mais ou menos, outros dois dias ou mais, se necessário, a cada vez que atingir entre 300 e 600 metros a mais. O objetivo é preparar o corpo”.
Heleno tem outra ressalva: “É mais importante a altitude na qual uma pessoa dorme do que o máximo de altitude de escalada alcançado durante o dia”.
Beleza em meio ao caos
Esta temporada foi a mais mortal desde que o Everest começou a ser explorado. Em toda a história, foram registradas 311 mortes. Somente neste ano, ao menos 10 alpinistas perderam a vida na montanha, devido não somente a quedas ou contusões, mas também pela exposição prolongada ao frio e à altitude, causada pela dificuldade de locomoção em trilhas estreitas e apinhadas de gente.
Mas o que faz com que tanta gente, em meio a tantos perigos, siga tentando vencer o Everest? Como já foi dito, as razões são muitas e conhecidas, mas a sensação de estar lá é algo que todos os que conseguiram classificam como indescritível. “Me considero privilegiado de realizar o sonho de viver na montanha e ter uma vida voltada para a montanha”, afirma montanhista brasileiro Carlos Santalena, que já atingiu o topo do Everest três vezes, em 2011, 2016 e 2018.
Atuando como guia de montanha, ele classifica sua profissão como “uma missão de vida”. “Todos voltam diferentes, pensando a vida de uma forma diferente, valorizando os pequenos aspectos, a família, enfim, a vida”, completa.
“Se eu tiver oportunidade, volto com certeza, é lindo, transformador”, afirma Aretha Duarte Freitas, primeira negra da América Latina e uma das primeiras do mundo a chegar ao topo do Everest. “Quando cheguei, me senti incrível, empoderada e imparável. Quero muito voltar”.
Santalena se preparou este ano para chegar ao topo pela quarta fez, se consagrando como o único brasileiro a conquistar tal façanha. No entanto, as más condições climáticas, somadas ao excesso de pessoas, o impediu de alcançar o recorde. “A concentração das pessoas ficou toda do lado sul, desse lado nepalês, onde a gente veio. Antes, a gente tinha 280, 300 pessoas por esse lado nepalês e depois os outros 150, 200 pelo lado chinês”.
Para evitar que o afluxo de pessoas seja incontrolável, os governos locais limitam o número de visitas. Toda temporada, são concedidas 450 permissões a estrangeiros. “Mas a gente tem que contar que são pelo menos 900 pessoas, porque cada estrangeiro ainda conta com um sherpa (guia local) em dia de cume”. Ainda segundo Santalena, no último dia 23 havia 120 pessoas atacando o cume no mesmo tempo”.
Problema ambiental
Além do aumento dos riscos de morte, o excesso de pessoas também tem provocado um preocupante problema ambiental, com o excesso de lixo deixado pelos alpinistas.
O problema maior está justamente no trecho mais elevado, acima dos 8 mil metros: como esse trecho exige o uso de oxigênio extra, os alpinistas precisam levar muitos cilindros para chegarem ao topo. Em uma área com baixa pressão atmosférica e onde qualquer esforço adicional pode gerar acidentes ou danos ao corpo, trazer de volta os “cascos” se torna tarefa hercúlea.
Por isso, grande quantidade de cilindros é deixada no último acampamento, já acima dos 8 mil metros. “A remoção é mesmo muito difícil, mas é preciso pensar em uma solução, porque a região chega a parecer um lixão a céu aberto”, explica Aretha Freitas”.
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Nascida na periferia de Campinas, no interior de São Paulo, a alpinista conta que não contava com os recursos financeiros necessários para ir ao Everest – os custos totais chegam a R$ 400 mil. Para atingir sua meta, lançou mão de vários expedientes, como projetos de financiamento coletivo, venda de camisas e alguns patrocínios pontuais. Cerca de um terço do total veio da venda de reciclagem. Não deixa de ser irônico que, ao chegar no maior pico do mundo, a questão do descarte de resíduos tenha sido tão flagrante para ela. “A montanha reflete o que vivemos no cotidiano urbano”.
Felizmente, explica Freitas, um grande número de pessoas trabalha incansavelmente, para os governos locais ou entidades, com o objetivo de retirar o lixo. Mas ela explica que é preciso fazer mais. “Nem todos os alpinistas colaboram, trazendo o lixo que gerou”.
Freitas aponta uma solução que ajudaria a reduzir o impacto, e também geraria mais empregos: “Além do turista pagar pela escalada e logística, poderia pagar uma taxa para que uma ou mais pessoas se responsabilizem somente pelo transporte do resíduo. Muitos sherpas poderiam realizar esse trabalho”.
As dificuldades, como se vê, não são poucas. Os governos do Nepal e da China têm se esforçado para reduzir o número de visitantes, aumentar a fiscalização e minimizar o impacto ambiental. Mas é perfeitamente possível compreender, mais uma vez, o que leva essas pessoas a se lançar ao pico. A simples observação da montanha por fotos e vídeos basta para que o maravilhamento seja imediato. Sentir o vento bater no rosto enquanto se chega ao lugar mais alto da Terra deve fazer as borboletas no estômago balançarem as asas de uma forma inesquecível.