Etiópia usou sua principal companhia aérea para transportar armas
Pela Ethiopian Airlines, governo do país transportou inúmeros armamentos para guerra em Tigray
O governo da Etiópia usou a principal companhia aérea comercial do país para transportar armas de e para a Eritreia durante a guerra civil na região de Tigray, aponta investigação da CNN.
Documentos de carga obtidos pela CNN, bem como relatos de testemunhas oculares e evidências fotográficas, confirmam que armas foram transportadas entre o aeroporto internacional de Adis Abeba e os aeroportos nas cidades de Asmara e Massawa a bordo de vários aviões da Ethiopian Airlines em novembro de 2020 durante as primeiros semanas do conflito em Tigray.
Especialistas disseram que os voos constituem uma violação da lei internacional da aviação, que proíbe o contrabando de armas para uso militar em aeronaves civis.
A Ethiopian Airlines é uma potência econômica estatal que gera bilhões de dólares por ano transportando passageiros para aeroportos em todo o continente africano e em todo o mundo. A companhia também é membro da Star Alliance, grupo de algumas das principais empresas de aviação do mundo.
A companhia aérea já emitiu dois comunicados negando o transporte de armas.
Em resposta à investigação mais recente da CNN, a Ethiopian Airlines disse que “cumpre estritamente todos os regulamentos nacionais, regionais e internacionais relacionados com a aviação” e que “até onde é do seu conhecimento e dos seus registros, não transportou nenhum armamento de guerra em qualquer das suas rotas por qualquer uma de suas aeronaves”.
Os governos da Etiópia e da Eritreia não responderam aos pedidos de comentários da CNN.
Reabastecimento militar
As tensões de longa data entre o governo da Etiópia e o partido no poder na região de Tigray explodiram em 4 de novembro do ano passado, quando a Etiópia acusou a Frente de Libertação do Povo Tigray [TPLF, em inglês] de atacar uma base do exército federal.
Abiy Ahmed, o primeiro-ministro da Etiópia e vencedor do Prêmio Nobel da Paz, ordenou uma ofensiva militar para tirar a TPLF do poder. Forças governamentais e milícias regionais invadiram Tigray, unidas na linha de frente por tropas da Eritreia.
Estima-se que milhares de pessoas morreram no conflito, que, segundo muitos relatos, carrega as marcas do genocídio e da limpeza étnica. Embora todos os lados tenham sido acusados de cometer graves abusos aos direitos humanos durante a guerra de Tigray, investigações anteriores da CNN estabeleceram que soldados eritreus estão por trás de algumas das piores atrocidades, incluindo violência sexual e assassinatos em massa.
A Eritreia negou qualquer transgressão de seus soldados e só admitiu ter tropas em Tigray no primeiro semestre deste ano.
Documentos obtidos pela CNN indicam que os voos com armas entre a Etiópia e a Eritreia começaram alguns dias após o início do conflito de Tigray.
Em pelo menos seis ocasiões – de 9 a 28 de novembro – a Ethiopian Airlines cobrou dezenas de milhares de dólares do Ministério da Defesa da Etiópia por transportar itens militares, incluindo armas e munições a serem enviados para a Eritreia, mostram os registros obtidos pela CNN.
Os documentos, chamados de Conhecimento de Embarque Aéreo [AWB, em inglês], detalham o conteúdo de cada remessa. Em um documento, a “natureza e quantidade dos produtos” é listada como “reabastecimento militar” e “alimentos secos”. Outros registros incluíam a descrição “consolidado”. Os registros também continham abreviaturas como “AM” para munição, segundo funcionários da companhia aérea.
Benno Baksteen, presidente do Degas, o Grupo de Especialistas em Segurança da Aviação da Holanda, disse à CNN que essas AWBs são necessárias para todos os voos comerciais, já que a tripulação a bordo precisa saber o conteúdo da carga para garantir que sejam transportados com segurança.
Em 9 de novembro, cinco dias depois de Abiy ordenar uma ofensiva militar em Tigray, os registros mostram que um voo da Ethiopian Airlines transportou armas e munições de Addis Ababa para Asmara, capital da Eritreia.
Uma AWB daquela data mostram que a Ethiopian Airlines cobrou US $166.398 [cerca de R$ 918 mil] do Ministério da Defesa por cerca de 2.643 peças de “DFS & Riffles With AM” naquele voo. DFS é uma referência a “comida seca”, de acordo com fontes de companhias aéreas.
Outro documento de dias depois, 13 de novembro, tem o mesmo remetente e destinatário. O conteúdo dessa remessa era “recarga militar e alimentos secos”. Os carregamentos chegaram em um momento de aumento da atividade militar; Fontes de segurança na região disseram à CNN que os eritreus precisavam de reabastecimento para a luta em Tigray.
Enquanto os aviões iam e vinham entre os dois países, massacres na cidade de Axum e na vila de Dengelat pelas tropas da Eritreia ocorreram em 19 e 30 de novembro, respectivamente.Documentos de carga mostram que a série de voos entre a Etiópia e a Eritreia continuou até pelo menos 28 de novembro de 2020.
Alguns atuais e ex-funcionários da Ethiopian Airlines, que falaram sob condição de anonimato por medo de repercussões, disseram que os voos continuaram após esta data, mas que a maioria das viagens armadas para a Eritreia foram em novembro.
Aviões de carga e de passageiros foram usados na operação, embora a CNN não tenha evidências de que passageiros comerciais estivessem em qualquer um dos voos carregando armas. Muitos desses voos não aparecem em plataformas populares de rastreamento de voos online, como Flightradar24.
O destino na Eritreia muitas vezes não é visível e a rota do voo desaparece assim que o avião cruza a fronteira com a Etiópia.
Os funcionários disseram à CNN que a equipe poderia desligar manualmente o sinal ADS-B a bordo para evitar que os voos fossem rastreados publicamente.
Os voos costumavam receber os mesmos números de voo, principalmente ET3312, ET3313 e ET3314, com ‘ET’ sendo o código da Ethiopian Airlines. Todos os aviões mencionados nos arquivos de carga vistos pela CNN são aeronaves Boeing de fabricação americana. A companhia aérea tem um longo relacionamento com a gigante da aviação dos Estados Unidos.
Um representante da Boeing não quis comentar a matéria.
Trabalhadores da Ethiopian Airlines testemunharam outros funcionários da companhia aérea carregando e descarregando armas e veículos militares em voos com destino a Asmara. Alguns até afirmaram que ajudaram a carregar as armas nos próprios aviões.
A CNN viu os cartões de identificação da Ethiopian Airlines desses funcionários e confirmou suas identidades.
“Os veículos eram picapes que tinham um posto para atiradores”, disse um funcionário. “Recebi um telefonema do gerente, tarde da noite, informando-me para lidar com a carga. Os soldados chegaram às 5 da manhã para começar a carregar dois grandes caminhões carregados de armas e picapes”.
“Tive que parar um voo para Bruxelas, um cargueiro 777, que estava carregado de flores, para descarregamos metade dos perecíveis para dar espaço aos armamentos”.
O ex-funcionário alertou os soldados que os veículos transportavam muito mais gás do que o permitido pelas regras de transporte aéreo internacional, mas disse que isso foi autorizado por uma ligação direta de um comandante do Exército.
“Ele [o comandante] disse que vamos para a guerra e precisamos que o combustível seja carregado”, disse o funcionário. “Então, referi o problema ao meu gerente e ele assumiu a responsabilidade e permitiu”.
O voo, carregado com armas e flores, viajou para a Eritreia, depois voltou para Addis antes de voar para Bruxelas no dia seguinte, disse o funcionário. A CNN não conseguiu verificar de maneira independente o relato.
Este parece não ser o único voo com escalas não planejadas. Um voo para Xangai em 9 de novembro de 2020 fez um longo desvio via Eritreia de acordo com o sinal ADS-B que rastreia a rota no Flightradar24.
Vários funcionários do aeroporto de Adis Abeba disseram que viram vários voos com armas partindo para a Eritreia todos os dias no início do conflito.
Um relato disse ter visto tanques e artilharia pesada carregados em aviões vindo para Addis Abeba, enquanto outras armas – morteiros, lançadores – eram despachadas para Asmara. Funcionários disseram à CNN que acreditavam que o armamento menor estava sendo enviado a Asmara para armar as tropas da Eritreia.
Todos os funcionários disseram que foram instruídos pela companhia aérea a deletar fotos de armas de seus telefones. Nem todos eles fizeram.
Em junho, fotos circularam em plataformas de mídia social mostrando caixas contendo morteiros a bordo de um voo da Ethiopian Airlines e as mesmas caixas sendo carregadas no avião em Massawa, Eritreia.
A empresa divulgou um comunicado negando veementemente a alegação de que seus aviões estavam transportando armas e alegou que as fotos foram alteradas.
No entanto, a CNN corroborou as fotos usando técnicas de análise visual, entrevistas e evidências documentais, datando-as de um voo de carga do 777 que voou da Etiópia para a Eritreia e de volta entre 8 e 9 de novembro.
As imagens mostram uma variedade de morteiros empilhados nas caixas. Dan Kaszeta, especialista em defesa, identificou os objetos como cartuchos de morteiro 832-DU de 82 mm, originalmente feitos na Rússia, mas com muitas versões subsequentemente fabricadas, incluindo na Bulgária.
A CNN contatou o governo búlgaro e contatou os produtores de armas búlgaros, mas não obteve resposta. De acordo com o banco de dados público da UE, a Bulgária vendeu armas para a Etiópia ainda em 2020.
Outra imagem mostra um funcionário vestindo um uniforme da Ethiopian Airlines. O interior do avião também seria de um avião de carga 777F da Ethiopian Airlines. O prazo de validade das alças da Emirates SkyCargo em volta das caixas – novembro de 2023 – pode ser conferido nas fotos. Uma vez que esses tipos específicos de cintas de carga – TSO C172 – têm uma vida útil de três anos, eles teriam sido usados em novembro de 2020, no mínimo.
A CNN confirmou que essas alças foram usadas em outros voos da Ethiopian Airlines. A Emirates SkyCargo disse à CNN que suas “alçaspodem ser inadvertidamente misturadas com as de outras companhias aéreas por operadores de solo, que são contratados terceirizados, e podem ser usadas para proteger cargas transportadas em outras aeronaves”.
A CNN descobriu que o avião de carga em questão decolou em 8 de novembro de Addis Abeba vazio antes de pousar em Massawa, onde os trabalhadores locais foram encarregados de carregá-lo manualmente com uma variedade de armas, incluindo morteiros.
Uma AWB daquele dia, visto pela CNN, confirma que o voo estava vazio quando chegou a Massawa.
Uma captura de tela do banco de dados interno da Ethiopian Airlines feita por um funcionário e enviada à CNN revela um voo em 8 de novembro para Massawa que está oculto dos sites de rastreamento de voos.
Repercussão jurídica
Vários especialistas em aviação com os quais a CNN conversou sobre o assunto disseram que a Ethiopian Airlines estaria violando a Convenção sobre Aviação Civil Internacional, comumente conhecida como Convenção de Chicago, que proíbe as transportadoras comerciais de transportar “munições de guerra ou suprimentos de guerra”.
Pablo Mendes de Leon, professor de direito aéreo e espacial de Haia, disse à CNN que há vários indícios de que esses voos eram comerciais, e não aeronaves militares ou estatais.
“Cheguei à conclusão de que [esses voos] foram operados por aeronaves civis que se enquadram nos termos da Convenção de Chicago”, disse Mendes de Leon, acrescentando que as descobertas da CNN “têm muitas repercussões jurídicas”.
O status da Etiópia como potência econômica regional depende em parte do domínio da Ethiopian Airlines no setor de carga. O país e a companhia aérea se beneficiaram de um programa comercial americano que oferece acesso favorável ao mercado dos Estados Unidos para países que atendem a determinados critérios.
Essa relação é importante para os dois países: em 2017, as exportações dos EUA para a Etiópia consistiram principalmente de aeronaves e componentes de aeronaves da Boeing, avaliadas em mais de US $ 857 milhões [cerca de R$ 4,7 bilhões].
Mas uma cláusula da Lei de Crescimento e Oportunidades para a África dos Estados Unidos (Agoa) estipula que as nações elegíveis não devem se envolver em “violações graves dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos”.
Investigações da CNN descobriram que atrocidades cometidas pelo governo etíope e seus aliados tinham marcas de genocídio e limpeza étnica.
No final de agosto, a Representante de Comércio dos Estados Unidos, Katherine Tai, advertiu o principal negociador comercial da Etiópia que “as contínuas violações dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos” em Tigray “podem afetar a futura elegibilidade da Etiópia se não forem resolvidas”.
Na terça-feira (5), um porta-voz disse à CNN que o escritório de Tai conduziria sua próxima revisão de elegibilidade para Agoa em 2022, “com base no cumprimento de padrões que incluem a adesão aos direitos dos trabalhadores internacionalmente reconhecidos, estado de direito e direitos humanos.”
Após a revisão, Tai poderia “possivelmente recomendar que o presidente adicione ou remova certos países”.
(Texto traduzido. Clique aqui para ler o original em inglês)