Entenda quando ocorre uma declaração de guerra e o que isso significa
Embora a invasão russa à Ucrânia tome proporções cada vez maiores, nenhum dos chefes de Estado envolvidos declarou estado de guerra
As tensões no Leste Europeu chegaram ao ponto mais alto na madrugada de quinta-feira (24), quando o presidente russo, Vladimir Putin, anunciou uma “operação militar especial” na região do Donbas, no leste da Ucrânia. A área inclui as cidades de Donestsk e Luhansk, controladas por separatistas pró-Rússia e reconhecidas como independentes pelo governo russo há poucos dias.
Em seu pronunciamento antes do ataque, Putin justificou a ação ao afirmar que a Rússia não poderia “tolerar ameaças da Ucrânia”. Ele recomendou aos soldados ucranianos que “larguem suas armas e voltem para casa”. O líder russo afirmou ainda que não aceitará nenhum tipo de interferência estrangeira.
O que se viu nas horas seguintes foi a invasão das forças russas à Ucrânia por terra, ar e mar. Bombardeios, explosões foram ouvidos e veículos militares foram avistados em diversas cidades ucranianas. O exército da Rússia chegou, inclusive, a invadir a capital Kiev.
No entanto, mesmo com o aumento da beligerância na região e declarações incisivas de líderes mundiais, a situação não é oficialmente classificada como uma “guerra”. Para isso acontecer, por definição, pelo menos um dos países envolvidos no conflito deve assinar uma declaração formal.
O que é a declaração de guerra?
A declaração de guerra ocorre por meio de um ato formal da autoridade máxima do país que abre a possibilidade para que sejam adotadas uma série de medidas emergenciais. A partir daí, fica oficializado que um conflito bélico generalizado está acontecendo entre duas ou mais nações.
A coordenadora do curso de Relações Internacionais da Faap e pesquisadora sênior do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) Fernanda Magnotta destaca que, embora a maioria da população use o termo de maneira vulgar, uma guerra pressupõe uma série de regras e protocolos.
“Tem a ver com o que pode ou não se dizer, protocolos e movimentações de ataque e defesa. Todas essas variáveis compõem o que seria a cartilha de declaração de guerra”, explica.
A partir do momento em que uma guerra é oficialmente declarada, ela passa a ser administrada por um código de conduta. Sendo assim, existem normas que devem ser cumpridas. Talvez a mais comum delas, por exemplo, seja a proibição de os países atacarem civis e a restrição dos alvos aos militares em campo.
O que está acontecendo na Ucrânia pode ser considerado uma guerra?
Segundo a professora Fernanda Magnotta, algumas atitudes costumam ser associadas a declarações de guerra, como: posicionamento do exército em regiões de fronteira, não reconhecimento da legitimidade de um determinado governo, uso de força física contra o território de outro país e ataque à soberania de uma nação.
Embora as recentes declarações de Putin e a invasão russa à Ucrânia cumpram esses “requisitos”, a guerra não foi oficialmente declarada. Magnotta explica que o presidente russo ainda não realizou essa formalização pois o ato implicaria em diversas consequências jurídicas e políticas.
“O governo russo está tentando amarrar uma narrativa para mostrar que não é uma invasão tradicional no estilo de uma guerra, mas isso não deixa de ser um preciosismo conceitual”, diz a professora.
Em seus pronunciamentos, Putin alega que a incursão militar na Ucrânia é uma ação pontual, ligada apenas a região separatista de Donbas, e que não há interesse em anexar o território da Ucrânia à Rússia. No entanto, a presença de militares e bombardeios em outras áreas do país, inclusive a capital Kiev, contrastam com a versão oficial do Kremlin.
“Se olharmos de maneira rigorosa o que significa uma guerra, é o que está acontecendo: houve violação do território, há uma contestação da existência da soberania da Ucrânia e Putin falou abertamente que não reconhece a legitimidade do país, além de não reconhecer o governo por afirmar que não está disposto a conversar com o presidente”, avalia Magnotta.
Caso Putin declare guerra à Ucrânia, a Rússia estará assumindo que pretende realizar uma ocupação territorial por todos os lados e todas as cidades possíveis no país vizinho, além de afirmar que tem a intenção de tomar o poder do governo ucraniano e dominar as suas instituições.
Magnotta explica que ainda há a “questão da proporcionalidade”. Uma declaração de guerra por parte da Rússia abriria margem para que países do Ocidente fossem além das sanções econômicas e passassem a intensificar sua presença militar no Leste Europeu de forma rápida e intensa. O conflito tomaria proporções ainda maiores.
Enquanto é atacada, a Ucrânia pode declarar guerra?
Assim como Putin, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky também não decretou oficialmente uma guerra, mas ele pode fazer isso. A Ucrânia, no entanto, afirma que está apenas tomando ações defensivas para se proteger do avanço russo.
“Há também uma tentativa de se preservar. Ninguém quer ser visto como o agressor do conflito, porque ser o agressor do conflito, quem declarou a guerra, significa justamente que você vai ser o punido pela deflagração do conflito armado”, analisa a pesquisadora sênior do Cebri.
Geralmente, ao fim de uma guerra, há uma espécie de “acerto de contas” em que países envolvidos no confronto são responsabilizados por órgãos e tribunais internacionais pelas suas atitudes. Nesse caso, ser o país responsável por decretar a guerra faz com que haja um precedente importante para arcar com possíveis penalizações.
No caso da invasão russa à Ucrânia, todos os países alegam que estão se defendendo do inimigo —inclusive a Rússia. Magnotta pontua que “estamos em um conflito em que todo mundo diz que não atacou, mas para se defender alguém precisa atacar, então há um imbróglio”.
Outra possibilidade é que haja uma escalada tão grande do conflito que, em determinado momento, o único meio de caracterizá-lo é por meio da declaração de guerra. Tal ato pode ser colocado em prática por colegiados internacionais, como o próprio Conselho de Segurança da ONU que, ao término de sua reunião, pode redigir um comunicado afirmando que encara o conflito como uma guerra.
A professora conclui: “na prática, é uma guerra? É, mas essa formalização, do ponto de vista diplomático, é muito delicada e importante porque tem a ver com todas as expectativas e os protocolos que serão gerados a partir disso”.