É preciso evitar que conflito influencie convívio entre árabes e israelenses no Brasil, diz ex-embaixador em Israel
Sérgio Eduardo Moreira Lima pontua que, historicamente, o governo brasileiro tem atuado pela solução pacífica dos conflitos
Sérgio Eduardo Moreira Lima, que foi embaixador do Brasil em Israel entre 2003 e 2006, ressaltou, em entrevista à CNN, as boas relações entre árabes e israelenses que vivem em solo brasileiro. Segundo ele, é preciso evitar que o conflito no Oriente Médio influencie o convívio entre as duas realidades.
“A política externa brasileira não poderia deixar de refletir essas realidades. Uma das preocupações governamentais é a de evitar que o conflito no Oriente Médio venha a influir no respeito mútuo e no convívio amistoso que existe entre as duas comunidades no Brasil”, afirmou.
Leia os principais trechos da entrevista do ex-diplomata à CNN:
Pergunta – Historicamente, a diplomacia brasileira é pragmática e defende a existência de dois Estados soberanos e independentes: o de Israel, criado em 1948, e o da Palestina, que ainda busca a soberania plena, sendo reconhecido por grande parte da comunidade internacional. O senhor pode comentar essa postura histórica do Brasil de sempre tentar manter bons laços diplomáticos com ambos os lados, com obediência às resoluções da ONU, diante de todo o conflito?
Sérgio Moreira Lima – Tradicionalmente, a política externa brasileira para o Oriente Médio tem sido orientada pelos seguintes fatores: existência no Brasil de importantes comunidades árabe e judaica; interesse na conclusão bem sucedida do processo de paz entre os povos árabes e judeus, em especial entre israelenses e palestinos; a importância estratégica do Golfo Pérsico, como detentor de grandes reservas de petróleo, e de um mercado consumidor e exportador expressivo com capacidade crescente de investimentos externos; e a relevância geopolítica da região, como um centro nevrálgico internacional.
Historicamente, a posição do Brasil no tocante ao conflito se explica pela adesão a princípios de direito internacional e humanitários, tais como a crença nos direitos humanos fundamentais, no direito da autodeterminação, na igualdade soberana dos Estados, na solução pacífica dos conflitos e no respeito às obrigações que decorrem dos tratados e outras fontes de direito internacional. Esses princípios, como o da proibição de conquista e anexação de território pela força, acham-se consagrados no sistema multilateral, criado pelas Nações Unidas, no período pós Segunda Guerra Mundial.
Convém recordar que o Brasil participou da Guerra e contribuiu para um momento definidor da História, lutando contra um inimigo comum e ajudando numa vitória de importância para a humanidade. Antes mesmo da declaração do Estado de Israel, em 1948, a posição do Brasil refletia a presidência da Assembleia Geral da ONU, exercida pelo ex-chanceler brasileiro Oswaldo Aranha, a qual recomendou, em 1947, a partilha da Palestina num Estado judeu e em outro, árabe. O Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer o Estado de Israel, em 1949, no mesmo ano em que Israel se tornava membro das Nações Unidas. O governo brasileiro inaugurou, em 1952, sua representação diplomática em Tel Aviv. Em 71 anos de relações diplomáticas, Brasil e Israel construíram importante base de confiança mútua, essencial para enfrentar com equilíbrio e moderação, divergências resultantes das situações complexas ao longo desse período.
As relações do Brasil com a Palestina foram estabelecidas em 1975, quando o Brasil considerou a Autoridade Nacional Palestina representante oficial da nação. Em 1993, foi aberta a Delegação Especial Palestina em Brasília, com status de Embaixada a partir de 1998. Em 2004, o Brasil inaugurou o Escritório de Representação em Ramallah. Em 2010, o governo brasileiro reconheceu o Estado palestino com as fronteiras anteriores à Guerra dos Seis Dias.”
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Pergunta – Qual foi a importância do Oswaldo Aranha na história da diplomacia brasileira ao presidir a Assembleia Geral da ONU que aprovou, em 1947, a Partilha da Palestina entre um Estado judeu e outro árabe? E os efeitos disso?
Moreira Lima – Oswaldo Aranha presidiu a Assembleia Geral da ONU que aprovou a Resolução 181, que recomendou a Partilha do Mandato Britânico da Palestina num Estado judeu e outro árabe. Dos 33 votos a favor da decisão, 13 vieram de países latino-americanos, o que reflete a influência brasileira. O martelo usado por Oswaldo Aranha na histórica Assembleia foi doado a Israel pela família Aranha e se encontra num pequeno museu do Kibutz de Bror Hail, próximo a Gaza, chamado o “Kibutz dos Brasileiros”. Aranha foi um dos grandes sucessores de Rio Branco, 26 anos após o final da gestão do Barão. Enquanto este foi o artífice da costura definitiva das nossas fronteiras, Aranha contribuiu para consolidar os princípios e os valores que marcam a identidade internacional do Brasil.
Pergunta – Quais outros atos do Brasil perante o conflito entre Israel e Palestina nos últimos anos que o senhor destacaria?
Moreira Lima – Começaria por recordar a participação do Brasil na Força de Paz após o conflito de Suez. De 1956 a 1967, o Brasil reafirmou seu compromisso com a solução pacífica das disputas e com a estabilidade da região ao contribuir com um contingente militar total de 6 204 soldados, que integraram a força internacional de paz para a supervisão do cessar fogo após a Crise do Canal de Suez (1956). Ademais, em 1967, como membro não permanente do Conselho de Segurança, o Brasil contribuiu para a elaboração e votou em favor da Resolução 242, que estabeleceu a base do princípio “terra pela paz”, importante referência do processo negociador entre Israel e os árabes e esteio dos esforços históricos para um acordo de paz. No período em que fui Embaixador, o Brasil foi convidado, pela primeira vez, a participar de uma conferência no processo de paz entre Israel e Palestina, a Conferência de Annapolis, organizada pelo governo dos EUA, em novembro de 2007.
Desde quando a questão Palestina foi introduzida na agenda da ONU, o Brasil tem advogado, de forma consistente, solução pacífica para o conflito, motivo de interesse também no Congresso Nacional e na opinião pública brasileira, especialmente a formada pelas comunidades árabe e israelita brasileiras. Ambas vivem amigavelmente no que representa fator de inspiração de harmonia e de convivência pacífica. Ademais, tanto em Israel como na Palestina, existe contingente expressivo de brasileiros, muitos de dupla nacionalidade. A política externa brasileira não poderia deixar de refletir essas realidades. Uma das preocupações governamentais é a de evitar que o conflito no Oriente Médio venha a influir no respeito mútuo e no convívio amistoso que existe entre as duas comunidades no Brasil.
Com sua tradição de defesa do direito internacional, o Brasil tem procurado evitar que o conflito no Oriente Médio enfraqueça o sistema multilateral e seus princípios e normas, como o que proíbe a ocupação e incorporação territorial por meio da força.
Em 2004, com base nos Acordos de Oslo, o Brasil abriu Escritório em Ramallah, na Cisjordânia, chefiado por um embaixador. Foi o segundo país latino-americano a fazê-lo.
O Brasil tem enviado parlamentares e membros do poder judiciário como observadores internacionais em eleições realizadas no passado na Cisjordânia.
De uma perspectiva histórica, a relação com Israel e Palestina sempre foi marcada pelo compromisso com a estabilidade regional, a cooperação e a parceria. As relações bilaterais tendem a se fortalecer em períodos de paz.
Historicamente, o Brasil possui credenciais importantes pela forma como negociou pacificamente na América do Sul suas fronteiras com dez países vizinhos, criando um verdadeiro marco do direito internacional, da solução pacífica das controvérsias, estabelecendo condições estruturais duradouras de convivência pacífica. Trata-se de um legado importante para uma cultura de paz e segurança internacional. Por mais de 160 anos, o Brasil mantém relacionamento baseado num sentimento fraternal com todos os seus vizinhos, transformando limites geográficos em fronteiras de interligação e cooperação.
O acordo de livre comércio entre o Mercosul e Israel (que entrou em vigor em 2010) e também com a Palestina (em 2018) bem ilustra esse paradigma de cooperação. Foi dos primeiros negociados pelo Brasil. Eu era o chefe da delegação brasileira na negociação.
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Pergunta – Como o senhor enxerga a possibilidade real dos esforços para a existência de dois Estados, como defende o Brasil?
Moreira Lima – Da perspectiva internacional, tem aumentado o número de países que reconhecem a Palestina como Estado. Creio que são mais de 190. A comunidade internacional não pode abrir mão de um processo que começou em 1947 sob a proteção das Nações Unidas e que com a ajuda das partes deverá ser concluído por meio de negociações de boa fé e não de mudanças unilaterais ao arrepio do direito internacional. Mudanças unilaterais são precárias e criam um cenário de permanente instabilidade, como se tem observado, no conflito israelo-palestino. É preciso o compromisso das lideranças de Israel e o fortalecimento da Autoridade Nacional Palestina, representante legítimo de seu povo, para tomar decisões internas importantes como a retirada pelo primeiro-ministro Ariel Sharon, em 2005, dos 21 assentamentos judeus com mais de 8 mil colonos existentes na Faixa de Gaza. Mas faltou à época o gesto de entrega que teria fortalecido politicamente a Autoridade Palestina, na pessoa de seu presidente Mahmoud Abbas. Na ausência do gesto conciliador, repercutiu a declaração do Hamas no sentido de prosseguir na luta armada. É necessário honrar o compromisso político com os Acordos de Oslo e as resoluções da ONU. Não há alternativa aos acordos de paz negociados de boa-fé entre as partes. Os territórios em questão são relativamente pequenos e vulneráveis à evolução de armamentos e da tecnologia. A História tem demonstrado que a solução permanente não é aquela imposta, mas sim a que resulta de negociações entre as partes.
Pergunta – Com a experiência do senhor como embaixador do Brasil em Israel, como o Brasil era visto pelas autoridades israelenses e palestinas?
Moreira Lima – Eu fui embaixador do Brasil em Israel de 2003 a 2007. Cheguei a Israel pouco antes do início da Guerra do Iraque, em meio aos preparativos para que as forças de defesa de Israel retaliassem eventuais mísseis de Saddam Hussein. A cada esquina do centro de Tel Aviv eu me deparava com sistemas antimísseis. Quando me preparava para partir de Israel, quatro anos depois, havia eclodido a guerra contra o Hezbollah no Líbano. A pedido do jornalista Nahum Sirotsky, juntei algumas de minhas palestras e artigos num livro editado em Israel em inglês, cujo prefácio foi escrito por Shimon Peres.
Pergunta – Como o senhor acredita que o Brasil pode contribuir efetivamente para o conflito hoje?
Moreira Lima – É necessário defender o Direito Internacional, as normas que se aplicam para regular o convívio amistoso entre os membros da comunidade das nações. Não se pode permitir que os radicais determinem a agenda internacional. Não é a força que faz o Direito. O conjunto de resoluções do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral das Nações Unidas representam a base sobre a qual deve ser construído o princípio dos dois Estados convivendo lado a lado em segurança, harmonia e paz. Nunca me esqueço da frase do então Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, que conheci pessoalmente: “a guerra não é a continuação da política por outros meios. Ao contrário, ela representa o fracasso catastrófico de imaginação e habilidade política.