Coronel do regime Assad é condenado à prisão perpétua por crimes contra humanidade
Anwar Raslan chefiou unidade de investigação em de detenção de Damasco e foi acusado de casos de tortura, assassinato e estupro
Um tribunal alemão condenou um coronel do Exército sírio à prisão perpétua no primeiro julgamento de tortura contra o regime do presidente Bashar al-Assad, disse o Centro Europeu de Direitos Humanos e Constitucionais em Koblenz nesta quinta-feira (13).
Anwar Raslan, um funcionário do alto escalão do regime, chefiou a unidade de investigação em um notório centro de detenção de Damasco conhecido como Filial 251. Ele foi acusado de cumplicidade em pelo menos 4 mil casos de tortura, dezenas de assassinatos e três casos de agressão sexual e estupro.
Outro réu, Eyad al-Gharib, um oficial subalterno que também serviu na instalação, foi condenado em fevereiro de 2021 por ajudar e favorecer a tortura e a privação de liberdade como crimes contra a humanidade. Ele está cumprindo uma pena de quatro anos e meio.
Raslan é o funcionário em cargo mais alto do regime a ser punido por tortura, execuções extrajudiciais e agressão sexual que se acredita terem sido sistematicamente cometidas por membros do regime de Assad.
Raslan, que desertou do regime sírio em 2012 e fugiu do país, negou todas as acusações contra ele.
“Uma vitória para as vítimas”
Joumana Seif, uma advogada síria que faz parte da equipe judicial dos solicitantes, foi uma das pessoas que esperou do lado de fora do tribunal desde às 6 horas da manhã para ouvir o veredito. “É um reconhecimento verdadeiro do sofrimento [dos sobreviventes]”, ela disse às CNN, quando a notícia da condenação foi anunciada, com a voz embargada por lágrimas de felicidade. “Espero que isso renove a fé na justiça.”
“[A prisão perpétua] é o mínimo que podemos fazer por eles”, disse Yasmen Almashan, mostrando fotos de seus cinco irmãos que desapareceram no sistema prisional de Assad. “Esse é apenas o primeiro passo em um longo caminho até a justiça”.
“Estou feliz pois isso é uma vitória para a justiça”, disse Anwar al-Bounni, um advogado sírio de direitos humanos e ex-preso político. “Estou feliz pois é uma vitória para as vítimas sentadas lá dentro [do tribunal]. Estou feliz pois é uma vitória para as vítimas na Síria que não puderam chegar aqui”.
A decisão histórica ocorre quando o regime de Assad – acusado de matar centenas de milhares de civis com armas convencionais e químicas – vem refazendo laços diplomáticos com ex-inimigos regionais, como os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita.
Os Estados Unidos e a União Europeia criticaram seus aliados árabes por este processo, mas disseram que pouco podem fazer para impedir a reaproximação.
‘Dor máxima’
O tribunal da cidade alemã de Koblenz contou com quase 100 depoimentos, de acordo com advogados que representam os demandantes. Vários sobreviventes de tortura na Filial 251 depuseram e ficaram cara a cara com seu suposto perseguidor.
Eles ofereceram relatos detalhados de abuso físico e psicológico, bem como celas severamente superlotadas, onde foram privados de comida, água e tratamento médico.
Uma testemunha não identificada descreveu ter sido examinada nua, além de ter sido espancada no centro de detenção. Ela detalhou seu encontro com Raslan depois de ter sido levada até ele com as roupas rasgadas pelo ataque, dizendo que ele ordenou que sua venda fosse removida e ofereceu café. No dia seguinte, de acordo com um resumo de suas interações com Raslan pelo Centro Europeu de Direitos Constitucionais e Humanos, ela foi transferida para outro distrito e liberada.
O coautor Wassim Mukdad, um músico sírio que vive em Berlim, disse que foi agredido nas solas dos pés e calcanhares e nos joelhos durante os interrogatórios. “Eles sabiam exatamente como infligir a dor máxima”, disse ele ao tribunal.
Em suas declarações finais, os demandantes fizeram discursos emocionados, elogiando o tribunal e repreendendo Raslan por negar as acusações contra ele. Acredita-se que mais de 100 mil pessoas foram sequestradas, detidas ou desaparecidas na Síria, disse a ONU, e um coautor criticou o processo judicial por excluir os desaparecimentos forçados das acusações
O coautor da ação, Hussein Ghrer, lembrou que seus captores no centro de detenção disseram que ele “desapareceria atrás do sol”. Ele disse ao tribunal que para seus entes queridos ele era como o gato de Schrödinger, parecendo vivo e morto ao mesmo tempo. Ele disse que foi “banido da vida sem realmente morrer”.
“Independentemente de quanto tempo [Raslan] ficará preso, ele terá um relógio perto dele, ele verá o sol e saberá quando nasce e quando se põe”, disse Ghrer ao tribunal. “Ele terá atendimento médico quando necessário e receberá visitas de parentes que saberão como ele está, assim como ele saberá como eles estão”.
O julgamento de Raslan foi visto como o culminar de quase uma década de evidências coletadas por ativistas e advogados que buscavam responsabilizar o regime de Assad por supostos crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
Nos primeiros anos do levante que virou guerra na Síria, que começou em 2011, voluntários conhecidos como “caçadores de documentos” contrabandearam centenas de milhares de documentos de instalações abandonadas do regime. Muitos disseram que enfrentaram uma tempestade de balas e foguetes para contrabandear documentos que serviram de prova em investigações contra o regime.
Em 2013, um desertor de codinome César contrabandeou dezenas de milhares de fotografias mostrando prisioneiros supostamente torturados até a morte nas prisões de Assad. As imagens também fizeram parte das provas no julgamento histórico.
Advogados e ativistas prometem continuar a perseguir os antigos e atuais funcionários do regime envolvidos em crimes. Na Alemanha, Raslan e Gharib foram presos sob o princípio da jurisdição universal, que confere jurisdição estatal sobre crimes contra o direito internacional, mesmo que não tenham ocorrido dentro desse estado.
O regime sírio não pode ser julgado no Tribunal Penal Internacional (TPI) porque não é parte nele. A Síria poderia ser investigada pelo TPI se o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) o encaminhar, mas a Rússia e a China bloquearam uma tentativa anterior de fazê-lo pelo CSNU.
Em julho de 2021, um promotor alemão indiciou um médico do regime sírio, Alaa Mousa, acusado de queimar os genitais de pelo menos um prisioneiro. Seu julgamento começa em Frankfurt este mês.
“Todos concordamos que este pode ser só um primeiro passo”, disse Patrick Kroker, advogado do Centro Europeu de Direitos Humanos e Constitucionais que representa os queixosos conjuntos, em entrevista coletiva na segunda-feira. “Há mandados de prisão internacionais ainda pendentes contra pessoas do alto escalão e esperamos e exigimos que eles sejam cumpridos”.
“Não haverá refúgio seguro no mundo para essas pessoas”.