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    Coreia do Sul corta “questões assassinas” de teste acusado de criar crise de fertilidade no país

    Governo sul-coreano deu um passo controverso esta semana: deixar o exame de admissão na faculdade mais fácil

    Mãe reza em templo de Seul por seu filho antes dos exames de admissão na faculdade, 12 de novembro de 2015.
    Mãe reza em templo de Seul por seu filho antes dos exames de admissão na faculdade, 12 de novembro de 2015. Kim Hong-Ji/Reuters

    Jessie YeungYoonjung Seoda CNN

    Seul

    Criar um filho na Coreia do Sul não é tarefa fácil. Mal os bebês começam a andar, muitos pais já começam a procurar pré-escolas particulares de elite.

    O objetivo é que, quando essas crianças completarem 18 anos, terão se tornado estudantes capazes de enfrentar o famoso e dificílimo exame nacional de oito horas, conhecido como Suneung, e ganhar seu lugar em uma universidade de prestígio.

    Mas chegar a esse ponto envolve uma jornada árdua e cara que tem custo para pais e filhos. É um sistema responsabilizado por pesquisadores, formuladores de políticas, professores e pais por uma série de problemas, como desigualdade na educação, doença mental nos jovens e até mesmo a queda da taxa de fertilidade do país.

    Na esperança de resolver algumas dessas questões, o governo sul-coreano deu um passo controverso esta semana: deixar o exame de admissão na faculdade mais fácil.

    As autoridades removerão as chamadas “questões assassinas” do Suneung, também conhecido como Teste de Capacidade Escolar (CSAT), segundo disse o ministro da Educação Lee Ju-ho em um comunicado à imprensa.

    As perguntas famosas pela dificuldade podem incluir temas não cobertos nos currículos das escolas públicas, disse Lee, dando uma vantagem injusta aos alunos com acesso a aulas particulares. Ele acrescentou que, embora a busca de uma tutoria fosse “uma escolha pessoal” para pais e filhos, muitos se sentem forçados a isso devido à intensa competição do exame.

    O ministério “procura quebrar o ciclo vicioso da educação privada que aumenta o fardo para os pais e, posteriormente, mina a justiça na educação”, prometeu Lee.

    Exame que muda a vida

    Quando os adolescentes sul-coreanos entram no ensino médio, grande parte de suas vidas gira em torno dos resultados acadêmicos e o preparo para o  dia do CSAT – uma data que é vista como definidora de futuros.

    Os estudantes têm boas razões para estar ansiosos. As “questões assassinas” vão de cálculo avançado a trechos literários obscuros.

    O ministério publicou várias perguntas nesta semana, extraídas de testes CSAT anteriores e exames simulados, para ilustrar os tipos de problemas que seriam removidos em testes futuros.

    Uma questão, combinando conceitos matemáticos como a diferenciação de funções compostas, foi considerada “mais complicada do que as cobertas pelas escolas públicas, o que pode causar carga psicológica para os candidatos a testes”, escreveu o ministério. Outra pergunta da amostragem pedia aos participantes analisassem uma longa passagem sobre a filosofia da consciência.

    Em face de tais dificuldades, a maioria dos estudantes coreanos se matricula em aulas de tutoria extra ou em escolas particulares de reforço conhecidas como “hagwons”. É comum que os alunos passem de suas aulas regulares diretamente para sessões de hagwon à noite, e depois continuem estudando sozinhos madrugada adentro.

    Como resultado, a indústria hagwon na Coreia do Sul é enorme e rentável. Em 2022, os sul-coreanos gastaram um total de 26 trilhões de won (cerca de R$ 95 bilhões) na educação privada, de acordo com o Ministério da Educação.

    O valor é semelhante ao PIB de nações como o Haiti (R$ 100 bilhões) e a Islândia (R$ 119 bilhões).

    No ano passado, o aluno médio em escolas do ensino fundamental e médio gastou 410 mil de won (cerca de R$ 1.500) por mês em educação privada, segundo Lee. Foi o valor mais alto desde que o governo começou a rastrear os números em 2007.

    Ciclo de desigualdade

    Os hagwons tornaram-se tão prevalentes na Coreia do Sul que no ano passado 78,3% de todos os alunos do ensino fundamental ao médio tinham atividades na educação privada, de acordo com o ministério. A consequência é uma enorme pressão sobre as poucas famílias e estudantes que não podem pagar as aulas extras.

    Além disso, a competição para a admissão nas universidades é cada vez mais acentuada num país onde quase 70% dos estudantes ingressam no ensino superior – uma proporção maior do que em outras nações ricas, com os Estados Unidos (51%) e o Reino Unido (57%), de acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

    É por isso que muitos pais sul-coreanos, em várias faixas de renda, despejam todos os recursos na educação de seus filhos, por medo de que eles fiquem para trás.

    No entanto, os especialistas argumentam que o sistema aprofunda e perpetua a desigualdade educacional. O fardo é significativamente maior para as famílias mais pobres, que tendem a gastar uma proporção muito maior do seu rendimento na educação dos seus filhos em comparação com as famílias mais ricas. Mesmo assim, o cenário permanece desigual, com estudos mostrando uma clara lacuna na realização dos estudantes entre famílias de baixa e alta renda.

    No início da semana passada, o ministro da Educação criticou os hagwons, acusando-os de serem “cartéis de educação privada” que lucram com a ansiedade de pais e alunos.

    “Pais, professores e profissionais da educação querem que o governo assuma um papel ativo para que a educação privada possa ser absorvida pela educação escolar (pública)”, disse Lee, prometendo tornar o sistema justo e “erradicar” a cultura hagwon.

    Para isso, o governo criou um call center temporário para que os cidadãos denunciem irregularidades por hagwons e institutos privadas.

    O governo também irá fornecer mais programas pós-escolares e de tutoria dentro do setor público e melhores serviços pedagógicos para evitar que os alunos sejam “encurralados” para frequentarem hagwons.

    O custo da excelência

    A corrida educacional também tem um grande impacto sobre estudantes e pais.

    Há tempos os críticos argumentam que a carga sobre os estudantes é um fator que impulsiona uma crise de saúde mental no país, que tem a maior taxa de suicídio entre as nações da OCDE.

    No ano passado, o Ministério da Saúde alertou que a taxa de suicídio estava aumentando entre adolescentes e jovens adultos na casa dos 20 anos, em parte devido aos efeitos persistentes da pandemia.

    Uma pesquisa do governo feita em 2022 mostrou dados ainda mais sombrios. Dos quase 60 mil estudantes do ensino fundamental e médio pesquisados em todo o país, quase um quarto dos meninos e uma em cada três meninas relataram sofrer de depressão.

    Numa pesquisa anterior, quase metade dos jovens coreanos de 13 a 18 anos citaram a educação como sua maior preocupação.

    A educação também pesa muito para os pais. Especialistas acreditam que as altas despesas são uma das causas da crescente relutância dos sul-coreanos em ter filhos – juntamente com outros encargos, como as longas horas de trabalho, salários estagnados e custos de habitação elevados.

    A Coreia do Sul é em geral classificada como o lugar mais caro do mundo para criar uma criança do nascimento aos 18 anos, em grande parte devido ao custo da educação. Muitos casais sentem que devem concentrar seus recursos em apenas um filho, e outros nem cogitam ser pais.

    No ano passado, a taxa de fertilidade do país, já a mais baixa do mundo, caiu para uma baixa recorde de 0,78 – nem mesmo metade dos 2,1 necessários para uma população estável e muito abaixo mesmo da do Japão (1,3), atualmente a nação mais idosa do mundo.

    “Os custos da educação infantil são altos e representam uma grande parte do orçamento das famílias de baixa renda. Sem renda adicional, um filho implica em nível de vida mais baixo, e as famílias de baixa renda enfrentam risco de pobreza”, detalhou um artigo da OCDE de 2018, acrescentando que “desistir ou adiar a gravidez é uma maneira de evitar a pobreza”.

    O próprio governo há muito tempo se agravou com esta questão, dizendo em 2008 que as famílias ficaram “pesadamente sobrecarregadas com gastos excessivos” em cuidados infantis e educação. Sem novas políticas para reduzir esse fardo, o país corre o risco de “exacerbar ainda mais o problema das baixas taxas de natalidade em nossa sociedade”.

    Um passo na direção certa?

    Os esforços para resolver o problema até agora têm-se revelado em grande parte ineficazes. O governo gastou mais de US$ 200 bilhões (cerca de R$ 950 bilhões) nos últimos 16 anos para incentivar mais pessoas a terem filhos e teve poucos resultados concretos.

    Ativistas dizem que a Coreia do Sul precisa de uma mudança mais profunda, como o desmantelamento de normas de gênero enraizadas e a introdução de mais apoio aos pais que trabalham.

    As mudanças no CSAT podem ser um passo nessa direção. Alguns grupos, como a ONG coreana O Mundo sem Preocupação com a Educação Privada, apoiaram a decisão, dizendo que era necessário impedir que as crianças fossem “imersas em concorrência excessiva”.

    Mas outros não estão convencidos. Alguns críticos disseram nas redes sociais que essa é uma solução superficial para uma questão mais complexa. Outros chamaram a medida de eleitoreira, já que há eleições no ano que vem.

    Muitos estudantes no final do ensino médio, preparando-se para fazer o exame em novembro, queixaram-se de que se sentem perdidos pela mudança abrupta depois de passar anos estudando material que achavam que cairia na prova. Alguns concordaram que o setor da educação privada precisava de reforma, mas duvidavam da eficácia da nova medida.

    “Do ponto de vista de um estudante do ensino médio atual, não acho que a tutoria privada diminuirá apenas porque as questões assassinas serão eliminadas”, um usuário postou no Instagram.

    Outro escreveu no Twitter: “Acho que a maneira de se livrar da mania da educação privada não é remover questões assassinas ou diminuir a dificuldade do CSAT, mas melhorar o ambiente do mercado de trabalho onde, independentemente de sua formação educacional, você pode trabalhar em um lugar seguro, receber um salário suficiente, e não se preocupar com a educação, tendo direitos humanos garantidos”.

    Gawon Bae, da CNN, contribuiu para a reportagem.

     

     

    Este conteúdo foi criado originalmente em inglês.

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