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    Como o Ocidente permitiu que dois generais entrassem em guerra e destruíssem o Sudão

    Comunidade internacional legitimou os dois rivais militares como atores políticos, confiando-lhes a tarefa de fazer uma transição democrática, o que não aconteceu; violência dos últimos dias deixaram mais de 500 mortos

    Eliza MackintoshJennifer Hanslerda CNN*

    A violência que explodiu no Sudão enquanto os dois principais generais do país lutam pelo poder se desenrolou em uma velocidade assustadora e vertiginosa.

    Mas, de acordo com muitos relatos, o confronto demorou a acontecer – o ponto culminante de anos despendidos pela comunidade internacional legitimando os dois rivais militares como atores políticos, confiando a eles a tarefa de fazer uma transição democrática, apesar de muitos sinais de que não tinham intenção de fazê-lo.

    Agora, os dois homens, que começaram suas carreiras nos campos de matança de Darfur, a região ocidental onde uma rebelião tribal eclodiu no início dos anos 2000, colocaram suas forças uma contra a outra e parecem ter a intenção de dividir o Sudão. A União Africana alertou que o confronto “poderia se transformar em um conflito total”, perturbando a estabilidade em toda a região.

    O general Abdel Fattah al-Burhan, governante militar do Sudão e chefe do exército, e o general Mohamed Hamdan Dagalo (conhecido como Hemedti), vice do país e chefe do grupo paramilitar Forças de Apoio Rápido (RSF), compartilharam o poder desde a realização um golpe em 2021, quando juntos expulsaram civis de um governo de transição. Essa aliança, forjada em um desdém mútuo pelas ambições democráticas do povo sudanês, desmoronou no que agora se assemelha a uma luta até a morte.

    Nas semanas anteriores ao início do conflito, os dois generais flertaram com um acordo que visava amenizar as disputas remanescentes – em grande parte a reforma do setor de segurança e a integração da RSF no exército – e levar o país a uma tão esperada democracia liderada pela civilidade.

    Eles se reuniram com mediadores estrangeiros e fizeram promessas de entregar o poder. Enquanto isso, na capital Cartum, veículos de transporte de pessoal e tanques foram vistos pelas ruas, fortificando e reforçando os dois lados.

    “O fato de que essas forças estavam preparadas e prontas para descer tão rapidamente a esse nível de violência não deveria ser surpresa para ninguém”, disse Cameron Hudson, ex-analista da CIA, agora especialista em África no Center for Strategic and International Studies.

    Ele acrescentou que as potências estrangeiras envolvidas nas negociações – os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, bem como as Nações Unidas – cometeram um grave erro de cálculo ao acreditar que os dois generais eram partes dispostas prestes a entrarem em acordo.

    Hudson, que serviu como chefe de gabinete de sucessivos enviados especiais dos EUA para o Sudão durante a divisão do Sudão do Sul e o genocídio de Darfur, disse: “Aqueles de nós que têm assistido a isso de fora e certamente aqueles de nós que têm alguma história em lidar e negociar com as Forças Armadas do Sudão ou a RSF sabem que esses caras têm uma longa história de dizer uma coisa e fazer outra”.

    Os generais alegaram que não tiveram escolha a não ser pegar em armas uns contra os outros, enviando morteiros e projéteis de artilharia sobre Cartum e fazendo tiroteios em bairros ricos do centro da cidade.

    Fumaça de incêndio na região do aeroporto de Cartum, no Sudão. / Abdullah Abdel Moneim/via REUTERS (17.abr.23)

    À medida que o conflito se estende pela segunda semana, espalhando-se por todo o país, governos estrangeiros – incluindo aqueles que estiveram envolvidos no complicado processo de paz – estão retirando seus cidadãos, enquanto muitos sudaneses permanecem presos em suas casas sem eletricidade, comida ou água, procurando desesperadamente uma maneira de escapar. Mais de 400 foram mortos e milhares ficaram feridos nos combates.

    Poucas horas depois de os ataques começarem em 15 de abril, Hemedti deu uma entrevista à TV Al Jazeera criticando seu companheiro que se tornou rival, rotulando Burhan de “criminoso” que havia “destruído o Sudão” e ameaçando-o de prisão. “Sabemos onde você está se escondendo e vamos chegar até você e entregá-lo à justiça, ou você morre como qualquer outro cachorro”, disse ele, antes de afirmar que a RSF estava cumprindo a “soberania do povo”.

    Quando contatado por telefone, Burhan disse à CNN que Hemedti havia “se amotinado” e, se capturado, seria julgado em um tribunal. “Esta é uma tentativa de golpe e rebelião contra o Estado”, disse ele.

    A troca destacou o quão pouco progresso foi feito desde 2019, quando uma revolta popular levou à remoção do ditador sudanês de longa data, o presidente Omar al-Bashir. Quatro anos depois, ele foi substituído por dois líderes militares que subiram na hierarquia sob seu governo corrupto e brutal de 30 anos, agora em uma batalha pela supremacia.

    “É uma briga entre dois parceiros em um crime, [o] golpe de 25 de outubro de 2021, sobre os despojos do crime. Esta é uma guerra entre dois males que não têm o interesse deste país em seus corações”, disse Amgad Fareid, ex-conselheiro do primeiro-ministro deposto Abdalla Hamdok, em um post recente.

    Ele acrescentou que a comunidade internacional ajudou a criar a situação atual que se desenrola no Sudão, continuando a pressionar pela formação de um governo a qualquer custo – emprestando legitimidade a Hemedti e Burhani como atores políticos, mesmo quando eles tentaram impedir o processo e evitar verdadeiras reformas.

    “Assim como a liderança do exército não é sincera em seu apelo ao processo de reforma do setor de segurança, Hemediti também não é […] em suas declarações de apoio à transição civil e à transformação democrática no Sudão. Hemedti usa esse discurso como uma camisa ensanguentada para manter sua influência e forças militares para uso futuro”, disse Fareid.

    Mulher sudanesa que fugiu da violência em seu país tenta coletar água de barril na fronteira entre Sudão e Chade / 26/04/2023 REUTERS/Mahamet Ramdane

    De um subclã da tribo Mahariya Rizeigat, povo nômade que pastoreava camelos em Darfur, Hemedti começou como comandante dos Janjaweed.

    A milícia, conhecida como “demônios a cavalo”, era formada por tribos de maioria árabe-sudanesa, convocada para combater os rebeldes não árabes de Darfur que pegaram em armas contra o governo sudanês. As forças são acusadas de algumas das atrocidades mais terríveis cometidas em Darfur, incluindo tortura, execuções extrajudiciais e estupros em massa, de acordo com a Human Rights Watch. O conflito, que começou em 2003, deixou milhões de deslocados e mais de 300 mil mortos.

    Em uma entrevista frequentemente citada no cerrado do sul de Darfur em 2008, Hemedti, com um turbante em volta do rosto e vestido de uniforme, disse a Nima Elbagir, da CNN, então repórter do britânico Channel 4, que Bashir o havia pedido pessoalmente para liderar a campanha contra a insurgência.

    Mas ele negou qualquer envolvimento em ataques a civis e disse que recusou ordens do governo para fazê-lo. Ao contrário do ex-ditador do Sudão, Hemedti não enfrentou acusações do Tribunal Penal Internacional.

    Sua brutalidade no campo de batalha lhe rendeu a lealdade de Bashir, que supostamente costumava chamá-lo de “Hamayti” – meu protetor. Diante do clamor internacional sobre as ações dos Janjaweed em Darfur, Bashir os formalizou nas Unidades de Inteligência de Fronteira. Em 2013, ele estabeleceu as Forças de Apoio Rápido por decreto e nomeou Hemedti para liderá-las, contando cada vez mais com o grupo paramilitar como guarda pretoriana.

    Quando dezenas de milhares de manifestantes pró-democracia foram às ruas de Cartum no início de 2019, Bashir convocou as forças armadas de Burhan e as tropas paramilitares de Hemedti para reprimir o levante. Mas a dupla aproveitou a oportunidade para atacar Bashir, unindo forças para depô-lo.

    Apenas dois meses depois, quando jovens manifestantes realizaram uma manifestação pacífica em frente ao quartel-general do exército pedindo uma transição rápida para o governo civil, as forças de Hemedti iniciaram uma repressão sangrenta.

    Sudaneses protestam em frente do palácio presidencial contra o governo, no dia 16 de outubro 2021 / Mahmoud Hjaj/Anadolu Agency via Getty Images

    Em uma tragédia que deixou pelo menos 118 mortos, a RSF supostamente queimou barracas, estuprou mulheres que manifestavam e jogou corpos no rio Nilo. Testemunhas oculares disseram que alguns estavam cantando: “Você costumava cantar que todo o país é Darfur. Agora trouxemos Darfur para vocês, para Cartum”.

    Hemedti negou estar envolvido na violência, e as sanções que foram pedidas por alguns membros do Congresso dos EUA visando seus interesses financeiros nunca aconteceram. Mais tarde naquele verão, ele foi nomeado vice-chefe do Conselho Soberano de Transição que governou o Sudão em parceria com a liderança civil. Burhan foi nomeado seu chefe.

    O sentimento compartilhado de impunidade do general foi sublinhado em outubro de 2021, quando eles deram um golpe, prendendo Hamdok e seu gabinete. Jeffrey Feltman, que foi o primeiro enviado especial dos EUA para o Chifre da África na época, disse que a série de eventos foi um choque.

    Apenas cinco horas antes, ele e sua equipe se reuniram com o primeiro-ministro, bem como Hemedti e Burhan, que disseram que concordariam com um plano de renovação de uma parceria civil-militar.

    “A ação deles demonstrou que eles nunca tiveram a intenção de retribuir. Desde então, a história se repetiu várias vezes: a liderança do exército e da RSF assumiu compromissos apenas para posteriormente quebrá-los”, disse Feltman em um artigo recente no The Washington Post.

    Se o acordo para a criação de um governo civil no início de abril teria credibilidade – seja para os movimentos de protesto do Sudão ou para seu povo – é uma questão em aberto. Mas o que está claro é que a comunidade internacional cometeu um erro ao confiar que Burhan e Hemedti estavam interessados na reforma, disse Feltman.

    “Evitamos consequências severas para atos repetidos de impunidade que poderiam ter forçado uma mudança no cálculo. Em vez disso, nós reflexivamente apaziguamos e acomodamos os dois senhores da guerra. Nós nos considerávamos pragmáticos. A retrospectiva sugere que o pensamento positivo é uma descrição mais precisa”.

    Fumaça sobe de avião em chamas no aeroporto de Cartum, no Sudão / 17/04/2023 REUTERS/Stringer

    A violência provocou acusações e introspecções em Washington, com o senador Jim Risch, o principal republicano no Comitê de Relações Exteriores do Senado, culpando o governo Biden por não responsabilizar os militares do Sudão pelos abusos.

    “Os acontecimentos dos últimos dias no Sudão, como em 2019 e 2021, refletem um claro padrão de comportamento em que homens fortes tentam governar o país por meio da violência. Infelizmente, a comunidade internacional e os atores regionais foram vítimas, novamente, da confiança dos generais Burhan e Hemedti quando eles disseram que entregariam o poder aos civis”, disse Risch em nota, pedindo ao governo que sancione os generais.

    Nos anos que se seguiram à revolução do Sudão, a RSF cresceu rapidamente para dezenas de milhares e, com ele, a influência de Hemedti se ampliou no país e no exterior. Ele enviou suas forças para lutar no Iêmen com a coalizão liderada pela Arábia Saudita.

    Ele também acumulou enormes quantidades de riqueza pessoal, capturando importantes minas de ouro em Darfur e fazendo parceria com os russos. Como disse o especialista em Sudão, Alex de Waal, em 2019, Hemedti se tornou o rosto do “mercado político violento” do país, construindo uma força paramilitar mais forte que o exército.

    “Nos últimos anos, vimos Hemedti tentar se reinventar por meio de campanhas de relações públicas, e seu perfil nas redes sociais. Ele tem toda essa história sangrenta. Mas ele não tem nenhuma marca em desse tipo em sua ficha permanente”, disse Hudson, sugerindo que os EUA deveriam ter sancionado a ele e a RSF após a violenta repressão em junho de 2019.

    Ele acrescentou que os EUA deveriam ter sancionado Burhan também, após o golpe. Em vez disso, o general de quatro estrelas e Hemedti conseguiram se apresentar como parceiros dos partidos civis do Sudão e cultivar uma imagem de si mesmos como atores políticos respeitáveis.

    “Foram duas oportunidades de tirar esses caras do cenário político. Nós não fizemos isso. Esses foram nossos dois primeiros erros”, disse Hudson, explicando que o terceiro foi chegar a um acordo político no ano passado que lhes deu igualdade de posição com os civis.

    “Ao não puní-los, nós os legitimamos de fato e os tornamos atores políticos quando não deveriam ser”.

    *Com informações de Nima Elbagir e Tamara Qiblawi, da CNN.

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