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    Como é viver em uma cidade onde tudo é controlado pelo Talibã

    Em Musa Qala, no Afeganistão, as pessoas aceitam a realidade e ninguém ousa pergunta a razão das decisões tomadas pelo grupo por medo de represálias

    Nick Paton Walsh, da CNN

    As mulheres estão proibidas de sair de casa sem um homem como companheiro e ninguém se atreve a perguntar sobre o ensino das meninas que moram aqui.

    A cobrança de impostos, às vezes justa e frequentemente voltada para os mais ricos, mas obrigatória para todos, pode ser uma desculpa para rixas entre fiscais rivais e levar a espancamentos e prisão por falta de pagamento.

    A justiça é aplicada em tribunais móveis nos quais adúlteros são presos ou mortos e alguns ladrões reincidentes enforcados em público. Pão, roupas e até mesmo telefones celulares precisam ser dados como presentes para os combatentes.

    Estamos em 2021, em um reduto do Talibã: Musa Qala, uma cidade na província de Helmand, no Afeganistão, onde dezenas de soldados norte-americanos, britânicos e afegãos morreram lutando por quase duas décadas.

    Agora, ela é o tipo de sociedade islâmica atrasada que o Talibã deseja implantar. Segundo os moradores locais, é uma forma rudimentar de ordem após mais de 30 anos de caos.

    Em entrevistas com seis homens residentes na cidade, a CNN procurou estabelecer como é viver numa sociedade controlada pelo Talibã de acordo com os cidadãos, dada a crescente influência nacional do grupo militante que governou o país na década de 1990.

    Nesta quarta-feira (14), o presidente dos EUA, Joe Biden, deve anunciar planos para retirar as tropas dos EUA do Afeganistão até o vigésimo aniversário dos ataques terroristas de 11 de setembro.

    As negociações entre os EUA e o Talibã estão em andamento, com o governo afegão muitas vezes deixado de lado e provavelmente ficando com os restos de qualquer acordo de paz.

    Musa Qala, cidade no Afeganistão controlada pelo Talibã
    Musa Qala, cidade na província de Helmand, no Afeganistão, é controlada pelo Talibã
    Foto: CNN

     

    O destino da cidade de Musa Qala é cheio de simbolismo para a presença da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) no Afeganistão. Foi aqui que alguns dos combates mais ferozes ocorreram há dez anos, antes que as tropas lideradas pelos EUA partissem de Helmand e as tropas afegãs deixassem a área em 2016.

    A Grã-Bretanha perdeu pelo menos 23 soldados nessa cidade conhecida pelo vale verde ao longo de um rio, antes que os fuzileiros navais dos EUA invadissem com maior poder de fogo em 2010. Pelo menos quatro soldados norte-americanos morreram no local, junto com muitos membros das forças de segurança afegãs. A falta de direitos para as mulheres e a absorção completa da sociedade pelo Talibã vai gerar questões sobre o propósito final do sacrifício das nações da Otan.

    Embora Cabul e o centro da maioria das principais cidades permaneçam sob controle do governo federal, vastas áreas do Afeganistão rural são governadas por unidades rebeldes e variadas do Talibã. Há mais de cinco anos em Musa Qala, eles impõem suas regras, apesar de ainda estarem em conflito regular com as forças de segurança afegãs mais ao sul, na província de Helmand.

    “No final das contas, é o Talibã que tem o poder”, disse um morador. “Não é possível ir contra a vontade deles”.

    “Eles estão por toda parte”, acrescentou um segundo residente. “Têm o poder e o tribunal. Eles nos dizem qual é o nosso Zakat, ou imposto, que eles usam para despesas e armas. Eles castigam aqueles que não pagam”.

    Os moradores falaram à CNN anonimamente, por medo de represálias do Talibã.

    Os homens descreveram amplamente o regime do Talibã como uma melhoria em relação à década passada, marcada por um tratamento profundamente retrógrado das mulheres e momentos de brutalidade. Ainda assim, disseram que até hoje as mulheres não têm permissão para trabalhar a menos que façam parte de equipes médicas.

    Soldados dos EUA patrulham ruas de Musa Qala, no Afeganistão, em 2010
    Soldados dos EUA patrulham ruas de Musa Qala, no Afeganistão, em 2010; atualmente, cidade é controlada pelo Talibã
    Foto: Paula Bronstein – 20.nov.2010/Getty Images

    “Quando elas saem, precisam se vestir de acordo com a Sharia. Então, para elas é mais importante cuidar da casa do que trabalhar fora”, disse um terceiro morador.

    O segundo homem que entrevistamos disse que mulheres foram processadas pelos tribunais por saírem de casa. “As mulheres não podem sair; não vemos muitas fora de casa. Não há escola para meninas em Musa Qala.”

    O quarto homem disse: “Ninguém pode ousar perguntar a razão. Como não podemos falar sobre isso, as pessoas aceitaram a realidade”.

    Os moradores falaram de um grupo militante confiante capaz de se mover livremente em motocicletas, com um sistema de alerta por walkie-talkies feito para alertar sobre ataques da Coalizão. Segundo eles, os ataques aéreos dos EUA foram retomados recentemente, após um hiato devido às negociações de paz em andamento entre os EUA e o Talibã, aceleradas pelo governo de Donald Trump.

    Os membros do Talibã “agora estão mais cautelosos do que nunca para evitar serem encontrado reunidos em grande número”, disse o quarto homem.

    Eles descreveram um sistema de governança com anciãos escolhidos no comando e um sistema de tribunal regular, onde o Talibã estabelece um “Otaq”, ou Sala, no qual as queixas podem ser ouvidas ou resolvidas e os infratores julgados e punidos. A Sala em Musa Qala é convocada todas as quintas-feiras e frequentemente muda de local, disseram os homens, por causa da ameaça de ataques aéreos.

    “Muitas pessoas em diferentes vilas que foram levadas para o Otaq do Talibã ficaram presas lá por uma ou duas noites ou foram espancadas”.

    Enquanto alguns descrevem o sistema judicial como eficiente, o segundo homem disse há corrupção e favorecimento dos ricos. “Se você é pobre e fraco, sua chance de ganhar [no tribunal] é muito pequena”, contou.

    As punições incluem pena de morte por roubo, disse o primeiro homem, citando o enforcamento de três ladrões há quatro anos.

    “Eles foram presos várias vezes por roubo, mas não pararam”, lembrou, acrescentando que os corpos dos três foram pendurados na estrada entre Musa Qala e Sangin “em postes de eletricidade que ficam numa ponte, para as pessoas verem”.

    Ele acrescentou que uma mulher havia sido presa por adultério há cinco anos e seu paradeiro nunca foi conhecido. O segundo morador disse que uma prisão foi construída em uma casa deserta na periferia da cidade.

    As histórias sobre o sistema de tributação em Musa Qala variaram. Alguns disseram a cobrança de impostos se concentrava nos ricos. Um quinto residente disse que o Talibã forçou os moradores a comprar roupas para os combatentes no mercado durante o Ramadã e cobrou um imposto na colheita sobre a produção de ópio.

    Outros descreveram um sistema mais flexível em que lojistas, produtores rurais e empresários eram procurados para receber contribuições. Os moradores locais também foram incentivados a dar pão e roupas aos militantes do Talibã.

    O terceiro homem disse que grupos concorrentes do Talibã frequentemente tentam cobrar seus próprios impostos. “A melhor maneira seria pagar para uma única autoridade autorizada, mas cada grupo tenta embolsar um pouco”, relatou.

    O recrutamento para o Talibã foi descrito como voluntário, com pouco treinamento, mas relativamente popular devido à falta de trabalho local e doutrinação feita nas escolas. “O Talibã enfatiza muito a importância da Jihad nas madrassas [escolas]’, disse o terceiro homem.

    Um sexto homem acrescentou: “Os meninos estudantes são os mais vulneráveis, doutrinados e recrutados rapidamente. Espero que chegue um dia em que haja apenas um governo e um único estado de direito no país. É quando poderemos ter paz”.

    Os desafios econômicos para o Talibã, se a luta diminuir em todo o país, também são claros.

    Analistas acreditam que o grupo deseja fazer um acordo político com o governo central do Afeganistão para manter um certo grau de legitimidade internacional e garantir que a ajuda ao desenvolvimento ainda possa fluir para o país, mantendo-o ativo.

    O quarto homem disse que em Musa Qala não havia projetos de desenvolvimento em andamento como quando o governo central tinha o controle. “Eles [o Talibã] não são capazes de criar empregos”, resumiu.

    Um momento de modernização se destacou nas seis entrevistas: a volta dos celulares, conhecidos como “grandes telefones” ou “telefones de WhatsApp” pelos locais.

    Proibidos de forma violenta durante anos, devido ao seu uso pela coalizão para rastrear combatentes talibãs para ataques aéreos, eles foram autorizados a retornar.

    Os residentes de Musa Qala disseram que o Talibã, empresários e moradores mais ricos apreciam a melhora nas comunicações. Mesmo assim, alguns termos e condições ainda se aplicam, eles disseram.

    “O Talibã proíbe qualquer um de usar o telefone para gravar vídeos”, disse o primeiro homem. “Eles instruíram as lojas que operam os serviços do WhatsApp a não registrar ninguém que pareça suspeito para eles.”

    (Texto traduzido; leia o original em inglês)