CNN investiga morte de palestinos que aguardavam comida em Gaza
Análise lança uma nova luz sobre o que aconteceu na madrugada de 29 de fevereiro, quando mais de 100 pessoas morreram e 700 ficaram feridas enquanto tentavam obter comida de caminhões de ajuda humanitária
Jihad Abu Watfa estava entre os escombros ao longo de um trecho escuro da estrada costeira a sudoeste da Cidade de Gaza quando viu tanques militares israelenses se aproximando. Ele começou a gravar em seu telefone no momento em que uma forte rajada de tiros passou diante de seus olhos.
“Agora estamos sitiados, um tanque está ao nosso lado e está atirando”, Abu Watfa pode ser ouvido dizendo no vídeo, que ele compartilhou com a CNN.
O jovem de 27 anos estava rodeado por centenas de outros palestinos que se juntaram para uma entrega de ajuda humanitária no dia 29 de fevereiro, quando soldados israelenses que acompanhavam o comboio humanitário abriram fogo. Mais de 100 pessoas morreram e 700 ficaram feridas, segundo o Ministério da Saúde de Gaza.
A tragédia, que se tornou conhecida entre os palestinos como o “Massacre da Farinha”, é um dos acontecimentos mais mortais com vítimas em massa ocorridos em Gaza desde que Israel lançou o seu ataque à faixa após o terror do Hamas em 7 de outubro.
Isso aconteceu depois de mais de um mês em que Israel negou ajuda à Cidade de Gaza e ao norte de Gaza e se seguiu ao que as Nações Unidas chamaram de “um padrão de ataques israelenses” contra civis que procuravam desesperadamente alimentos, em um contexto de níveis de fome sem precedentes.
A CNN coletou depoimentos e vídeos de 22 testemunhas, muitas das quais viajaram de outras cidades de Gaza na esperança de encontrar algo para as suas famílias comerem.
Quando o comboio passou por um posto de controle israelense na rua Al Rashid, a principal rota norte-sul designada pelos militares israelenses para ajuda humanitária, os sobreviventes se lembraram de tropas israelenses abrindo fogo contra multidões enquanto tentavam desesperadamente chegar à ajuda alimentar.
Muitos disseram que não se intimidaram com as balas, acreditando que se não fossem mortos ao tentar obter um pacote de farinha, morreriam de fome.
Autoridades de Gaza e israelenses forneceram relatos conflitantes sobre o que aconteceu naquela noite. As autoridades de saúde de Gaza disseram que dezenas de pessoas foram mortas no tiroteio e os feridos foram tratados em hospitais por ferimentos de bala, enquanto os militares israelenses disseram que a maioria das pessoas foi pisoteada até a morte em uma “debandada” por ajuda alimentar ou atingida pelos caminhões de ajuda que tentavam se afastar da confusão.
Mark Regev, conselheiro especial do primeiro-ministro israelense, disse inicialmente à CNN que as forças israelenses não estavam envolvidas. O contra-almirante Daniel Hagari, porta-voz das Forças de Defesa de Israel (FDI), disse logo depois que os soldados não dispararam diretamente contra os palestinos que buscavam ajuda, mas dispararam sim “tiros de advertência” para o ar.
Em 8 de março, após uma investigação interna, as FDI divulgaram um cronograma sugerindo que o comboio de ajuda começou a cruzar o norte de Gaza acompanhado por seus tanques às 4h29.
Um minuto depois, às 4h30, as FDI disseram que suas tropas dispararam “tiros de advertência” em direção ao leste para dispersar as multidões antes de disparar contra “suspeitos” que alegavam representar uma ameaça. Às 4h45, os militares disseram ter disparado mais tiros de advertência.
Mas a análise da CNN de dezenas de vídeos daquela noite e de depoimentos de testemunhas oculares lança dúvidas sobre a versão israelense dos acontecimentos. As evidências, analisadas por especialistas forenses e balísticos, indicaram que os tiros automáticos começaram antes de as FDI afirmarem que o comboio havia iniciado a passagem pelo posto de controle e que os tiros foram disparados perto da multidão que se reunia em busca de comida.
As FDI ainda não responderam às perguntas da CNN sobre essas conclusões.
Atingido enquanto tentava conseguir comida
Khader Al Za’anoun, jornalista em Gaza da agência de notícias oficial palestina Wafa, disse à CNN na época que a maioria das vítimas foram resultado de pessoas sendo atropeladas por caminhões de ajuda enquanto tentavam escapar dos tiros israelenses.
Al Za’anoun, que esteve no local e testemunhou o incidente, disse que o caos e a confusão que levaram as pessoas a serem atropeladas pelos caminhões só iniciaram quando os soldados israelenses começaram a disparar.
“A maioria das pessoas mortas foram atropeladas pelos caminhões de ajuda durante o caos e enquanto tentavam escapar dos tiros israelenses”, disse Al Za’anoun.
Os militares israelenses divulgaram imagens de drone do incidente, alegando que mostravam uma debandada em que os palestinos foram pisoteados e que os tanques estavam lá para “proteger o comboio”, mas a qualidade e a edição do vídeo tornam difícil confirmar as afirmações.
A filmagem mostra centenas de pessoas reunidas em torno de caminhões de ajuda humanitária na rua Al Rashid. Muitas pessoas parecem estar correndo e algumas rastejando, na tentativa de se proteger. Mas falta o momento crucial que capturou o que causou a dispersão da multidão.
O vídeo então corta para mostrar corpos no chão – embora não esteja claro se estão vivos ou mortos – em um local geolocalizado pela CNN próximo ao posto de controle.
Gravadas com visão noturna, as imagens do drone são o único vídeo disponível que dá uma visão clara das multidões. No mínimo, mostra quão difícil teria sido disparar com algum grau de precisão contra o que as FDI descreveram como “suspeitos” entre as pessoas na multidão que cercavam o comboio.
As FDI negaram os pedidos da CNN para a filmagem completa e não editada do drone de 29 de fevereiro.
Todos os vídeos de testemunhas oculares obtidos pela CNN foram gravados no escuro, portanto oferecem uma visão limitada do que aconteceu naquela noite. Mas, com base nos seus metadados, que incluem a hora em que foram filmados, os vídeos revelam uma inconsistência com o relato das FDI sobre quando as suas tropas começaram a disparar.
Vídeos filmados horas antes do incidente mortal, entre 2h e 3h e geolocalizados pela CNN, mostram pessoas reunidas na praia e na beira da estrada a cerca de 900 metros de distância do posto de controle. Grupos podem ser vistos sentados ao redor de fogueiras, enquanto outros caminham pela praia. Tudo parece calmo.
Testemunhas disseram à CNN que eles começaram a se reunir em antecipação à chegada de alimentos – os comboios de ajuda muitas vezes viajam à noite para evitar serem inundados por multidões no caminho – mas que os caminhões nem sequer tinham cruzado o posto de controle quando os tanques israelenses começaram a atirar.
Em um vídeo gravado pela testemunha Belal Mortaja, que foi compartilhado diretamente com a CNN, podem ser ouvidos tiros e visto pessoas fugindo, incitando outras a fugir, alertando para a existência de um tanque. O vídeo foi gravado às 4h22, sete minutos antes de as FDI afirmarem que o comboio havia atravessado para o norte de Gaza.
Abu Watfa, de 27 anos, disse à CNN que começou a filmar logo depois de ouvir tiros. Os metadados do vídeo mostraram que ele foi gravado às 4h28, dois minutos antes de as FDI anunciarem ter disparado tiros de advertência.
Robert Maher, especialista em acústica de tiros da Universidade Estadual de Montana, nos Estados Unidos, que analisou as imagens para a CNN, disse que as rajadas indicavam fortes disparos automáticos de 600 tiros por minuto. Essa avaliação também foi corroborada por Richard Weir, pesquisador sênior da divisão de Crises e Conflitos da Human Rights Watch (HRW).
Abu Watfa continuou a filmar e, às 4h30, o vídeo mostra um caminhão dirigindo ao longo da estrada e munições viajando do sudoeste, onde os tanques israelenses estavam localizados. Uma bala é vista ricocheteando no ar.
Em referência às munições, Weir disse à CNN que era difícil saber de onde o projétil se originou devido às condições de pouca luz. No entanto, a trajetória da bala foi plana e parecia estar viajando em direção ao solo a menos de 180 graus antes de ricochetear no ar, disse ele.
“Se o cano da arma estiver inclinado para baixo e não na horizontal ou para cima, então a trajetória do projétil viajará muito mais rapidamente em direção ao solo do que seria com [uma] queda normal de bala”, acrescentou.
Outro vídeo de um local separado ao longo da rua Al Rashid, divulgado pela Al Jazeera, também mostra tiros com munições horizontais, provavelmente originados do sudoeste, viajando da esquerda para a direita enquanto uma enorme multidão se reúne em torno dos caminhões. O tiroteio também pode ser ouvido.
Apesar dos tiros, Abu Watfa disse que estava determinado a conseguir ajuda para os seus filhos e não queria ir embora de mãos vazias.
“Eu estava correndo entre mil pessoas; as pessoas caíram repentinamente e ficaram feridas. As (FDI) estavam ocupadas atirando. Corri em direção ao primeiro caminhão, mas não consegui tirar nada dele”, disse ele, acrescentando que conseguiu abrir caminho até o terceiro caminhão e sair com um saco de farinha.
“Peguei o saco de farinha e deixei na lateral do caminhão, os tiroteios aconteciam ao meu redor e se intensificaram”.
Resultado: “sangue misturado com ajuda”
Ao amanhecer, as consequências do tiroteio se tornaram visíveis. Os vídeos mostraram cadáveres, alguns com ferimentos na cabeça e no peito, espalhados ao longo da costa. É possível ver pessoas cuidando dos mortos, colocando-os em cima da caçamba de um caminhão, cobertos com lençóis manchados de sangue.
A CNN entrevistou sete sobreviventes que foram tratados de ferimentos no maior hospital de Gaza, o Al-Shifa. Entre eles estava Jihad Abd Rabu, que tinha uma bandagem enrolada no peito onde foi baleado – uma bala atingiu seu ombro esquerdo. Ele disse que foi atingido por tiros na madrugada, mas teve que esperar até o nascer do sol até que alguém viesse ajudar.
Outro sobrevivente, Hamouda Zamil, disse à CNN que foi baleado depois de receber um saco de farinha do comboio. “Assim que carreguei o saco de farinha e comecei a andar, eles (as FDI) atiraram em mim”, disse ele. “Comecei a pedir ajuda para as pessoas, elas me abandonaram”.
Amjad Aliwa, médico do Al-Shifa, disse à CNN que foi à rua Al Rashid buscar comida para a sua família e testemunhou pessoas em pânico quando os militares israelenses começaram a disparar.
Ele disse que as pessoas começaram a se empurrar para chegar aos caminhões, algumas foram empurradas para frente dos caminhões e, no meio do caos, ele levou um tiro na coxa esquerda. Ele disse que rapidamente enfaixou a perna antes de retornar ao hospital para tratar os muitos feridos que foram levados para lá.
Georgios Petropoulos, que chefia o subescritório de coordenação humanitária da ONU em Gaza, estimou ter visto pelo menos 200 feridos sendo tratados, inclusive por ferimentos a bala, mas não especificou quantos.
A CNN rastreou parte da ajuda no comboio até a Ummah Welfare Trust, uma instituição de caridade muçulmana de ajuda humanitária e desenvolvimento com sede em Bolton, norte da Inglaterra. Entre vídeos e fotos do rescaldo, caixas de papelão estampadas com o logotipo da organização sem fins lucrativos podiam ser vistas espalhadas pelo chão, salpicadas de sangue.
“Foi um choque”, disse Mohammed Ahmed, um administrador, à CNN em uma entrevista na sede da organização, algumas semanas após o incidente mortal. “Essa é a primeira vez em 20 anos de trabalho nessa área, onde realmente vejo sangue misturado com ajuda”.
Ahmed disse que a instituição de caridade já havia conseguido entregar ajuda ao sul de Gaza antes, mas esta foi a primeira vez que tentaram ir para o norte. “Ficamos muito, muito entusiasmados e felizes por finalmente termos passado”, disse ele.
Essa alegria durou pouco. Mesmo assim, Ahmed disse que a tragédia não impediria a equipe de tentar novamente porque “não tem outra escolha”. “As pessoas vão morrer de fome, de fraqueza, de uma situação desesperadora, ou serão mortas por tiroteios indiscriminados ou assassinatos seletivos”, disse ele.
Enquanto a agência das Nações Unidas para os refugiados palestinos, a UNRWA, afirma que Israel está impedindo-a de fazer entregas de ajuda ao norte de Gaza e que as instituições de caridade preenchem cada vez mais essa lacuna, o ataque de 29 de fevereiro levanta sérias questões sobre se os militares israelenses podem facilitar a distribuição segura da assistência desesperadamente necessária.
De 25 de janeiro a 21 de março, o escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) documentou relatos de pelo menos 26 ataques a civis que esperavam por suprimentos tão necessários na rotatória Al Nabulsi na rua Al Rashid e na rotatória Al Kuwaiti na rua Salaheddin na Cidade de Gaza.
Em 26 de fevereiro – três dias antes do incidente mortal na Rua Al Rashid – vídeos compartilhados com a CNN por testemunhas mostraram fortes disparos de tanques contra civis palestinos reunidos para uma entrega de ajuda no mesmo local, perto do posto de controle.
Em um outro vídeo publicado online em 28 de fevereiro na mesma área, um homem pode ser visto carregando um saco de farinha sobre o ombro depois de uma rajada de tiros ser ouvida seguida de pessoas feridas sendo retiradas do local em cobertores. Ele se vira para quem está filmando e diz: “Tenho que morrer (pela farinha), devemos morrer em Gaza e nos sentir humilhados por um saco de farinha”.
*Khader Al Za’anoun, jornalista da Wafa, a agência de notícias oficial palestina, foi testemunha ocular dos acontecimentos de 29 de fevereiro. Posteriormente, ele fez entrevistas como colaborador para esta matéria. Com informações adicionais de Abeer Salman, Julie Zink e Oscar Featherstone, da CNN.