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    Cemitério russo abriga mortos do exército de mercenários do Grupo Wagner

    Um terreno à beira de uma pequena comunidade agrícola no sul da Rússia serve como cemitério para os condenados que foram recrutados pelo Grupo Wagner para lutar na guerra contra a Ucrânia

    Reuters

    Felix LightFilipp LebedevReade Levinsonda Reuters

    Em meados de agosto passado, no final do verão no Hemisfério Norte, um terreno à beira de uma pequena comunidade agrícola no sul da Rússia começou a ser preenchido com dezenas de covas recém-escavadas. Nelas, foram enterrados combatentes mortos na Ucrânia.

    Os túmulos foram adornados com simples cruzes de madeira e coroas de flores coloridas que ostentavam a insígnia do Grupo Wagner, um exército privado temido e secreto da Rússia.

    Cerca de 200 sepulturas foram vistas no local, nos arredores da aldeia de Bakinskaya, na região de Krasnodar, quando a Reuters o visitou no final de janeiro. A agência de notícias verificou que os nomes de pelo menos 39 mortos aqui e em três outros cemitérios próximos batem com registros de tribunais russos, bancos de dados disponíveis publicamente e contas de mídia social. A Reuters também falou com familiares, amigos e advogados de alguns dos mortos.

    Muitos dos homens enterrados em Bakinskaya eram presos condenados que foram recrutados pelo Wagner no ano passado depois que o fundador do grupo, Yevgeny Prigozhin, prometeu o perdão aos que sobrevivessem seis meses no front.

    O grupo incluía matadores de aluguel, assassinos, criminosos com longa ficha e pessoas com problemas de alcoolismo.

    Durante meses, o Grupo Wagner ficou sufocado numa sangrenta batalha para tomar as cidades de Bakhmut e Soledar, na região leste de Donetsk. Autoridades ocidentais e ucranianas disseram que ele está usando condenados como bucha de canhão para sobrecarregar as defesas da Ucrânia.

    Há poucas semanas, o porta-voz de segurança nacional da Casa Branca John Kirby denominou o grupo de “uma organização criminosa que está cometendo atrocidades generalizadas e abusos dos direitos humanos”. Em uma breve resposta aberta ao governo dos EUA, Prigozhin pediu a Kirby: “por favor, esclareça qual crime foi cometido” pelo Wagner.

    Vídeos e fotografias dos túmulos apareceram pela primeira vez em canais de mídia social na região de Krasnodar em dezembro. A Reuters geolocalizou essas imagens no cemitério de Bakinskaya e revisou imagens de satélite do site da Mazar Technologies e do Capella Space.

    Imagens de satélite mostram que o cemitério do Wagner estava vazio no verão, tinha três fileiras de sepulturas até o final de novembro e estava com três quartos das covas preenchidas no início de janeiro. Praticamente todos os túmulos foram usados até 24 de janeiro.

    O ativista local Vitaly Votanovsky, que tirou as primeiras fotos e documentou soldados mortos na Ucrânia e enterrados em cemitérios da região de Krasnodar, disse à Reuters que observou um caminhão entregando corpos no cemitério.

    Ele disse que os coveiros lhe disseram que os corpos tinham vindo da cidade russa de Rostov-on-Don, perto da fronteira da Rússia com a região de Donetsk. Quando a Reuters visitou o cemitério em janeiro, cercas e câmeras de segurança estavam sendo instaladas no entorno – e outro enterro estava em andamento.

    A agência de notícias estatal russa RIA Novosti publicou imagens no início de janeiro de Prigozhin visitando o cemitério, fazendo o sinal da cruz e colocando flores em uma sepultura. Ele disse à mídia local que os homens ali enterrados haviam expressado o desejo de serem sepultados dentro de uma capela do Grupo Wagner perto da cidade vizinha de Goryachiy Klyuch, em vez de ter seus corpos devolvidos aos parentes.

    As covas de Bakinskaya foram fornecidas pelas autoridades locais, disse ele, depois que a capela ficou sem espaço. Em 2019, a Reuters revelou a existência de um campo de treinamento do Wagner na aldeia de Molkino, a cerca de 9 km de Bakinskaya.

    Dos 39 condenados identificados pela Reuters, 10 foram presos por homicídio, 24 por roubo e dois por lesões corporais graves. Outros crimes incluem a fabricação ou o tráfico de drogas e chantagem. Entre os condenados estavam cidadãos da Ucrânia, Moldávia e da Abecásia, região da Geórgia apoiada pela Rússia.

    Placas de madeira em suas sepulturas em Bakinskaya e três cemitérios próximos mostram que os homens pereceram entre julho e dezembro de 2022, no auge da batalha por Bakhmut.

    Um dos mortos mais jovens, enterrado no cemitério vizinho de Martanskaya, é Vadim Pushnya. Ele tinha 25 anos ao morrer em 19 de novembro. Pushnya foi preso em 2020 por roubar garagens, uma loja de cerveja e uma fábrica de cimento em sua cidade natal, Goryachiy Klyuch, perto da capela do Grupo Wagner. A data de nascimento no túmulo de Pushnya corresponde à data dada em suas contas de mídia social e em registros judiciais.

    O mais velho dos falecidos, Fail Nabiev, estava preso há um ano e meio por roubo na Colônia Penal nº 2 da região de Ivanovo, a 360 km a nordeste de Moscou, em sua segunda passagem pela prisão. Ele foi condenado em maio de 2022 por um tribunal na bela cidade turística de Suzdal por roubar um aparador de grama e uma lixadeira avaliadas num total de 5,5 mil rublos (cerca de R$ 400) de uma garagem.

    De acordo com sua placa simples de madeira, enfeitada com uma lua crescente islâmica, Nabiev morreu em outubro, menos de cinco meses depois de ser condenado. Ele tinha 60 anos.

    A esposa de Nabiev, Olga Viktorova, confirmou à Reuters que Nabiev morrera enquanto servia com o Wagner na campanha militar na Ucrânia. Ela disse que seu marido estava perto de terminar seu período na prisão, e que ele tinha dívidas substanciais de cartão de crédito que ela agora teria de pagar.

    A viúva contou que não sabia que seu marido havia se juntado ao Wagner até depois de sua morte. O site de notícias independente russo iStories informou que Prigozhin visitou a Colônia Penal nº 2 para recrutar combatentes em agosto. A Reuters não conseguiu verificar o relato de forma independente.

    “Ele sempre teve ideias malucas. Era um otimista incorrigível”, disse Viktorova. Nabiev provavelmente “pensou que ia fazer uma viagem rápida para a Ucrânia e ganhar algum dinheiro”.

    O Kremlin, o Ministério da Defesa da Rússia e as autoridades prisionais russas não responderam às perguntas para esta reportagem. O governo russo elogiou no passado as “ações corajosas e altruístas” dos combatentes do Wagner. O fundador do grupo, Prigozhin, que também não quis fazer comentários, disse anteriormente que está dando aos condenados “uma segunda chance na vida”.

    Embora a Reuters não tenha conseguido confirmar o número exato de homens mortos, a mãe de um deles confirmou que seu filho pereceu na região de Donetsk. Os relatos das redes sociais de vários outros também indicam que eles estavam na Ucrânia antes de morrer.

    Desde o início da guerra da Rússia na Ucrânia, o antes secreto Grupo Wagner e seu fundador Prigozhin assumiram um perfil cada vez mais público. No passado, os combatentes do Wagner estiveram na Síria, Líbia e República Centro-Africana em apoio aos aliados da Rússia.

    Yevgeny Prigozhin, mercenário russo líder do grupo Wagner.
    Yevgeny Prigozhin, mercenário russo líder do grupo Wagner. / Reuters

    Prigozhin, conhecido na Rússia como “chef de Putin” por causa de seus contratos de serviços de alimentação no Kremlin, negou consistentemente qualquer ligação com o Wagner. Depois, em setembro passado, ele confirmou que fundou o exército privado, que descreveu como um “grupo de patriotas”.

    Desde então, Prigozhin vem visitando repetidamente o front no leste da Ucrânia, ao mesmo tempo em que critica a liderança militar da Rússia e algumas autoridades. Ele também liderou pessoalmente uma campanha para recrutar combatentes do sistema penal da Rússia.

    De acordo com um relatório periódico publicado pelo Serviço Penitenciário Federal da Rússia, a população carcerária Rússia diminuiu cerca de 8%, de 353.210 em agosto para 324.906 no início de novembro, a maior queda em mais de uma década. O relatório não deu motivos para o declínio repentino e acentuado, que coincidiu com o início dos esforços de recrutamento do Wagner na prisão. O Serviço Penitenciário Federal não respondeu a perguntas detalhadas para este artigo.

    No mês passado, a Reuters informou que a comunidade de inteligência dos Estados Unidos acredita que o Wagner tinha aproximadamente 40 mil recrutas vindos do sistema prisional agindo na Ucrânia desde dezembro, representando a grande maioria do pessoal de Wagner no país.

    O Grupo Wagner não comentou sobre os números, nem forneceu qualquer informação sobre os números de combatentes.

    Em uma mensagem em vídeo de 14 de janeiro, Prigozhin descreveu o Wagner como uma força totalmente independente com seus próprios aviões, tanques, foguetes e artilharia. É “provavelmente o exército mais experiente que existe no mundo hoje”, disse.

    Alguns dos condenados identificados pela Reuters eram criminosos violentos que passaram grande parte de sua vida adulta na prisão ou estavam servindo longas penas. Artigos dos tribunais vistos pela Reuters também apresentam homens que tiveram problemas de álcool. Os nomes de alguns outros estão em listas de devedores aos bancos, sugerindo problemas financeiros pessoais.

    As vidas desses homens mostram o lado ainda mais sombrio do baixo escalão do crime na Rússia. O fundador do Wagner, Prigozhin, disse em dezembro ao site de notícias russo RBC que ele está dando aos condenados uma oportunidade de “se redimir”. Em janeiro, ele apareceu ao lado do primeiro grupo de combatentes a receber o perdão judicial depois de sobreviver às batalhas na Ucrânia.

    Algumas semanas depois, Prigozhin escreveu uma carta aberta ao presidente do parlamento russo, Vyacheslav Volodin, pedindo-lhe para criminalizar quaisquer ações ou publicações que desacreditassem os combatentes do Wagner e proibir a divulgação pública de seus passados criminosos.

    Ele escreveu que aqueles “que estão arriscando suas vidas todos os dias e morrendo pela pátria estão sendo retratados como pessoas de segunda classe, despojando-os do direito de expiar sua culpa”. Volodin não respondeu a um pedido de entrevista da Reuters.

    Entre os prisioneiros identificados pela Reuters estava Anatoly Bodenkov, de 43 anos. O homem cumpria uma sentença de 16 anos depois de ser condenado por um assassinato sob encomenda, como mostram os documentos do tribunal.

    De acordo com uma reportagem local sobre o caso, em 2016 Bodenkov assassinou um agente imobiliário da cidade de Kirovo-Chepetsk, no norte, usando uma espingarda serrada, e recebendo 400 mil rublos (cerca de R$ 29 mil) pelo crime. A placa no túmulo diz que Bodenkov morreu em 27 de novembro de 2022. Não diz o local da morte.

    Um segundo prisioneiro, Viktor Deshko, de 40 anos, foi condenado a 10 anos por um assassinato em 2021, de acordo com documentos judiciais e relatos da mídia local. Ele cortou a garganta de uma mulher durante uma briga entre bêbados nas florestas perto da cidade mineira de Shakhty, não muito longe da fronteira com Donbas, controlada pela Rússia.

    Documentos judiciais descrevem Deshko como “uma pessoa agressiva, dada ao abuso de álcool”. O homem estava em liberdade condicional no momento do crime, tendo servido anteriormente três anos e meio por ataque com uma arma letal.

    No caso de Bodenkov e Deshko, os nomes completos e datas de nascimento nas placas dos túmulos corresponderam às suas redes sociais e registros judiciais. A Reuters não conseguiu entrar em contato com amigos ou familiares dos dois homens, e seus advogados não responderam a pedidos de comentários.

    Um terceiro homem, Vyacheslav Kochas, foi condenado a 18 anos de prisão em São Petersburgo em 2020, quando tinha 23 anos. Ele foi acusado de homicídio e assalto à mão armada. De acordo com documentos do tribunal russo, Kochas e outro homem, ambos bêbados, invadiram o apartamento de um conhecido em uma tentativa de roubo.

    Ele bateu no homem e em uma mulher até deixá-los inconscientes, usando um varal portátil de ferro. Kochas então ateou fogo em uma peça de roupa e jogou-a no homem inconsciente. Grande parte do apartamento foi destruído pelo fogo. O homem morreu por causa das queimaduras dois dias depois.

    Fotografias de Kochas nas redes sociais mostram um rapaz com cara de bebê. Em algumas, ele está abraçando uma jovem não identificada. O perfil de Kochas no VKontakte, o equivalente russo no Facebook, agora diz: “Morto em Donbas”. No túmulo de Kochas em Bakinskaya consta sua data de morte, 21 de julho, pouco depois de seu 25º aniversário e nos primeiros dias do ataque da Rússia na direção de Bakhmut.

    O advogado de Kochas, Stepan Akimov, descreveu seu ex-cliente como “um cara realmente comum”, que ele disse ter sido injustamente condenado. A última notícia que ele teve do jovem preso foi uma mensagem de texto enviada depois que um pedido de recurso foi negado, agradecendo Akimov pela ajuda. Akimov soube pela Reuters que seu ex-cliente havia se juntado ao Wagner.

    “Posso imaginar, dada a duração de sua sentença e a idade muito jovem dele, que a entrada no Grupo parecia uma oportunidade de ele conseguir a liberdade”, opinou Akimov. “Eles estão oferecendo liberdade em seis meses para prisioneiros com sentenças de mais de uma década. Aparentemente, Vyacheslav achou que essa oferta era uma saída”.

    A Reuters não conseguiu falar com parentes de Kochas.

    A Rússia tem uma das maiores populações prisionais per capita do mundo. Mark Galeotti, autor do livro “O Vory: A Supermáfia Russa” (sem edição no Brasil), que trata das culturas criminosas e prisionais da Rússia, conta que o potencial apelo do Wagner aos presos é mais amplo do que apenas uma tentativa de clemência.

    Servir no grupo, segundo o escritor, dá orgulho e um senso de propósito a prisioneiros com poucas perspectivas após a liberdade, pessoas que passaram um tempo em uma cultura prisional sufocadas por “um tom nacionalista russo muito forte”.

    “Sim, isso dará a um homem a chance de sair da prisão, mas, mais do que isso, lhe dá a chance de realmente ser alguém”, explicou Galeotti. “É uma maneira pela qual o Wagner apela para pessoas que definitivamente são, ou acreditam ser, marginalizadas, forasteiras, perdedores de alguma forma do sistema, que então veem a chance de pensar em si mesmos e se tornarem vencedores”.

    Pelo menos um dos homens enterrados em Bakinskaya escondeu sua ficha criminal e tempo de prisão de entes queridos.

    Por mais de meia década depois de se casar e deixar sua cidade natal, Luhansk, no leste da Ucrânia, Svitlana Holyk acreditou que seu irmão Yury Danilyuk trabalhava em algum lugar no extremo norte da Rússia.

    Os dois irmãos nascidos na Ucrânia tinham poucos parentes vivos e raramente se falaram depois que a Rússia tomou sua cidade natal em 2014. Svitlana sabia apenas que seu irmão viajava regularmente para o trabalho na cidade fronteiriça russa de Bryansk, a 800 km de distância.

    Mas, enquanto Svitlana construía uma nova vida na cidade ucraniana de Dnipro, Yury usava as redes sociais para se inscrever em grupos pró-russos que apoiam a insurgência separatista de Donbas. Em 2016, depois de deixar de fazer contato por um ano e meio, Yury disse à sua irmã que havia se mudado para o norte do Ártico da Rússia. Ela disse que suas mensagens eram curtas, e ele disse pouco sobre sua vida.

    “Eu suspeitei que algo tinha acontecido, que ele poderia ter alguns problemas sobre os quais não queria ou não poderia falar por algum motivo”, contou em ucraniano a mulher, direto de Dnipro, falando por telefone. A cidade é agora um importante centro logístico para o exército ucraniano que luta em Donbas, e um alvo constante de mísseis russos.

    Um amigo próximo de Yury Danilyuk falou à Reuters sob condição de anonimato. O amigo disse que Yury mentiu para a irmã, a quem ele amava profundamente, para evitar perturbá-la com as notícias de sua prisão. Na realidade, ele foi condenado em 2016 a nove anos e oito meses de prisão por um crime relacionado a drogas. O amigo ficou preso com Yury na Colônia Penal nº 6 da região de Krasnodar.

    O ex-presidiário falou pela última vez com Yury em setembro de 2022 e ouviu mais tarde, naquele mês, de outros presos que Yury havia se juntado ao Wagner. Olga Romanova, uma ativista dos direitos dos prisioneiros da Rússia, disse à Reuters que Yevgeny Prigozhin visitou a Colônia Penal nº 6 para recrutar presos em duas ocasiões separadas. A Reuters não conseguiu verificar esse fato de forma independente.

    O amigo disse que, durante seu tempo na cadeia, Yury entrou para uma facção que se recusa a cooperar com as autoridades prisionais por princípio – um fenômeno comum no sistema carcerário russo. Com isso, Yury perdeu a chance de liberdade antecipada por bom comportamento.

    O ex-colega disse que a decisão de Yury de se juntar ao Wagner foi motivada pelo conhecimento de que ele provavelmente cumpriria sua longa sentença na íntegra.

    De acordo com seu túmulo, Yury Danilyuk morreu em 30 de novembro de 2022. Ele tinha 28 anos.

    A irmã de Yury, Svitlana, disse que não sabia nada da sentença de prisão de seu irmão, do serviço com o Wagner e nem sequer de sua morte na guerra da Rússia contra o país de seu nascimento até ser contatada por jornalistas da Reuters.

    A mulher disse: “Descobri por você que Yury tinha morrido. Eu reli sua mensagem várias vezes quando você me escreveu. Eu não conseguia acreditar”.

    O ex-colega de cela lembra de Yury como um feroz patriota de sua Donbas nativa e de sua paixão por carros. “Eu o culpo por não querer cooperar com as autoridades da prisão”, disse o amigo. “Se ele tivesse concordado, estaria vivo. Mas ele se recusou, então foi um tonto”.