Candidatos de extrema direita surpreendem em campanhas da Argentina e do Chile
Javier Milei pode se eleger deputado por Buenos Aires neste domingo e o chileno José Antonio Kast lidera pesquisas para presidente; especialistas analisam cenários
“Olá a todos, eu sou o leão, rugiu a besta no meio da avenida. Todos correram sem entender, panic show a plena luz do dia”, gritou no microfone, com a voz rouca, para centenas de jovens encantados, o economista argentino Javier Milei.
Com os braços abertos, diante de um telão que mostrava a ilustração o leão da sua logomarca, ele continuou entoando os versos de uma banda de rock argentino, mas parodiando um dos versos: “Sou o rei e te destruirei, toda a casta é do meu apetite”.
O público, principalmente de homens, respondeu com exaltados vivas ao “Viva la Libertad!” que o economista de 51 anos, que já foi cantor de rock e goleiro de futebol, gritou diversas vezes antes de começar o discurso do ato que fechou sua campanha, no último sábado (6), em um parque de Buenos Aires.
A Argentina vai às urnas neste domingo (14), em eleições legislativas, escolher metade da Câmara e um terço do Senado. A tendência é que Milei seja eleito deputado federal pela cidade de Buenos Aires e que arraste com ele, pelo voto proporcional, mais dois legisladores da sua lista, dos 13 deputados que serão eleitos pela cidade de Buenos Aires para estar no Congresso.
Nas primárias, um pleito obrigatório realizado em setembro para definir quais dos pré-candidatos inscritos poderão concorrer nas eleições, a coalizão Juntos por el Cambio, que governa a cidade, obteve 48,2%, a kirchnerista conseguiu 24,7% dos votos, e a aliança de Milei ficou em terceiro, com 13,7%, bem distante da Frente de Esquerda, que teve 6,2%.
Do outro lado da cordilheira dos Andes, no Chile, a jaqueta de couro e o cabelo bagunçado de Milei, que ele afirma não pentear desde os 13 anos de idade e deixar à mercê da “mão invisível”, dá lugar à formalidade da camisa e da gravata de José Antonio Kast, de 55 anos.
“Não se preocupe, tudo vai ficar bem”, diz o chileno, em uma montagem num vídeo na rede social Tik Tok, impedindo a passagem de uma bola de beisebol que avança na direção de quem assiste.
A estratégia de conquistar o eleitorado jovem contrasta com a alegação que já fez e é trazida à tona nesta campanha, de que se Augusto Pinochet estivesse vivo, votaria nele.
Um dos irmãos dele, Miguel Kast, morto em 1983 por câncer nos ossos, foi presidente do Banco Central e passou por dois ministérios do gabinete do então ditador. Agora, Kast, que está em sua segunda tentativa de chegar à Presidência chilena, aparece em primeiro nas intenções de voto (25%) da eleição de 21 de novembro.
E vem abrindo vantagem em relação a seu provável rival no segundo turno, Gabriel Boric (19%), deputado e ex-líder estudantil de esquerda, segundo o instituto de pesquisa Cadem. Na disputa em um segundo turno, Kast bateria Boric por 44% contra 40%, de acordo com o levantamento.
Ambos os candidatos criticam as direitas tradicionais de seus países – e se posicionam na extrema-direita, segundo cientistas políticos.
Para analistas ouvidos pela CNN, tanto Milei quanto Kast conseguem aproveitar o momento de questionamento ao globalismo e às instituições tradicionais, defendendo a suposta luta anticomunista, como ocorreu no Brasil, nos Estados Unidos e em países europeus.
Pontos em comum
Além das duras críticas ao kirchnerismo, que chama de “castro-chavismo empobrecedor”, Milei classifica a política do Juntos por el Cambio, coalizão do ex-presidente Mauricio Macri, à direita no espectro político argentino, como um “socialismo de bons modos”.
O economista promete não criar nenhum imposto, alega que o aquecimento global é uma invenção da esquerda, e diz querer “dinamitar” o Banco Central.
Nas frequentes aparições em diferentes canais do país nos últimos anos, não poupa insultos a adversários, que vão de xingamentos a qualificativos como “esquerdistas”, “parasitas” e “casta governante”.
Milei admite afinidades com a ideologia do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) na batalha contra o esquerdismo e o que considera ser a luta pela “liberdade”.
O mesmo acontece com Kast, que chegou a se encontrar com o presidente Bolsonaro quando o brasileiro já tinha sido eleito, na Cúpula Conservadora das Américas, em dezembro de 2018, em Foz do Iguaçu.
Com Bolsonaro, ambos compartilham a defesa do ultraliberalismo econômico, a crítica ao aborto e o discurso crítico a ambientalistas. Kast e Milei também discursam contra o que chamam de “ideologia de gênero” e a favor do porte de armas para defesa pessoal.
Kast ainda bebe da fonte de Donald Trump na verve anti-imigração: o candidato chileno prega que uma vala seja cavada na fronteira com a Bolívia, para impedir a entrada de imigrantes irregulares.
No ato de encerramento de Milei em Buenos Aires, a CNN abordou um jovem que comprou um broche com os dizeres “LGBT: Liberdade, Guns (armas, em inglês), Bolsonaro e Trump”. Questionado sobre se gostava de Bolsonaro, ele respondeu prontamente: “Eu adoro armas. Tenho posse, pratico tiro, e acho importante a política dele de permitir que as pessoas tenham armas para se defender. Também gosto que ele tenha colocado um limite na esquerda”, diz, sobre o presidente brasileiro.
Chile
No caso do Chile, Kast também soube aproveitar os questionamentos antielitista, anti-institucional e de rejeição à corrupção que motivou a insurreição social de 2019. Desde o retorno da democracia, o Chile vivia a alternância de governos da Concertação e da direita representada pelo presidente Sebastián Piñera.
Kast, que foi deputado pela União Democrata Independente (UDI), da coalizão que integrou o primeiro governo do direitista, rompeu com a sigla, e concorre com a que fundou, o Partido Republicano.
Não deixa de surpreender, no entanto, a ascensão do candidato nas intenções de voto após a insurreição social chilena de 2019, com vastos protestos contra desigualdades e injustiças sociais, que derivaram em um plebiscito para substituir a constituição herdada de Pinochet.
“É uma contradição que ninguém via que estava chegando”, define, em entrevista à CNN Eugenio Tironi, sociólogo da Universidade Católica do Chile e colunista do jornal El Mercurio.
Os chilenos voltaram às urnas para eleger uma Convenção Constituinte, com paridade de gênero e representação indígena, que acabou formada majoritariamente pela esquerda, e é presidida por Elisa Loncón, uma professora mapuche, o povo originário mais numeroso do Chile. Os eleitos são os responsáveis pela redação da nova constituição.
“Esperava-se que a direita chilena se renovasse em direção ao centro, mas a renovação está sendo pela ultradireita”, diz Tironi sobre a intenção de voto e apoios a Kast. O candidato define o governo Piñera como desastroso, apesar de não concordar com a abertura do impeachment contra o atual presidente, aprovada pelos deputados na última terça (9/11).
Piñera é acusado de supostas irregularidades na venda de uma empresa de mineração de maioria acionária de sua família, em 2010. O candidato governista, Sebastián Sichel, aparece com 8% das intenções de voto, em quinto lugar na última pesquisa do Cadem, anterior à votação.
“Durante a campanha, boa parte do eleitorado se radicalizou à direita, e Sichel está sendo abandonado também por partidos como a UDI e a Renovação Nacional, que não sabem para onde ir, porque as implicações da explosão social ainda não foram processadas direito no Chile”, explica Raul Elgueta Rosas, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Santiago do Chile.
“Ainda estamos aturdidos”, complementa, questionando a metodologia das pesquisas eleitorais e afirmando que ainda não há instrumento de medição para uma compreensão suficiente do que está acontecendo no país.
Para Robert Funk, cientista político do Instituto de Assuntos Públicos da Universidade do Chile, existe, há cerca de 10 anos, a sensação de que a opinião pública chilena se modernizou quanto a questões de valores, “com maior aceitação de assuntos como divórcio, aborto e matrimonio igualitário”.
Ao mesmo tempo, o discurso mais moderno quanto a gênero, indígenas e regime político – discute-se até um eventual sistema parlamentarista -, somados a dois anos de “protestos com destruição”, começam a gerar um certo temor.
“Supunha-se que o Chile estava se afastando do conservadorismo que sempre o marcou, mas ainda não sabemos até que ponto isso é assim”, afirma Funk.
Ele explica que, apesar de o país ter decidido a favor de uma constituinte almejando melhores serviços públicos, como aposentadoria, educação e saúde, ainda persiste o desejo de “ordem”, uma das bandeiras de Kast.
Para Tironi, setores significativos do Chile rural, da classe média popular e da direita não se sentem representados pelos protestos e nas tentativas de mudanças. De acordo com a última pesquisa do Centro de Estudos Públicos do país, em dezembro de 2019, 55% dos consultados diziam ter apoiado as manifestações.
Em agosto de 2021, 39% disseram que as apoiaram. Os que afirmam que as rejeitaram aumentaram de 11% para 26%. Já os que dizem que no começo apoiaram, e depois não, passaram de 10% para 14%.
Segundo Funk, o Chile sempre teve uma “tolerância baixa à desordem”. Por isso, o conflito territorial entre mapuches e proprietários de terras no sul do país, que escalou nas últimas semanas e passa a impressão de falta de governabilidade e de resposta das instituições, também contribui para robustecer a intenção de voto em Kast.
Argentina
Para María Victoria Murillo, diretora do Instituto de Estudos Latino-americanos da Universidade de Columbia, a Argentina também vivencia um descontentamento com as duas grandes opções políticas do país – a aliança peronista que levou Alberto Fernández ao poder e a Juntos por el Cambio, que coliga a União Cívica Radical ao Proposta Republicana, do ex-presidente Mauricio Macri. Personagem midiático, Milei tem conseguido expressar esse descontentamento.
“Mas não estamos falando de um giro dramático à direita. Definitivamente, se estamos falando de um governo de esquerda, a alternativa surge à direita e vice-versa. Isso acontece sempre”, diz, lembrando que a Argentina já teve sua crise de representação em 2001, e uma renovação do peronismo com o surgimento do kirchnerismo versus a criação da aliança macrista com o partido radical.
Com os sucessivos governos que não conseguem resolver os problemas econômicos do país, a percepção da diferença entre as duas grandes coalizões diminui. Sem acreditar na capacidade dessas opções de resolver a crise, acaba-se buscando uma terceira.
“Milei cresce em um contexto em que já há um partido de direita. Isso mostra o descontentamento de eleitores com a moderação da direita mainstream, [com a sensação de que] não são suficientemente duros com seus adversários ou radicais em suas posições econômicas ou que são ambíguos nas culturais”, diz Gabriel Vommaro, pesquisador das direitas da Argentina e América Latina e professor de sociologia política da Universidade Nacional de San Martín.
Para ele, no entanto, Milei é um fenômeno ainda circunscrito à cidade de Buenos Aires, tradicionalmente governada pela direita. Federico González, consultor de um instituto de pesquisa, concorda que o apoio ao candidato da extrema-direita ainda é local, mas afirma que o liberalismo é uma força emergente na Argentina. O problema, explica, é o limite que Milei encontra pela impressão que deixa de misoginia e de falta de educação.
Mas para muitos que votam nele, Milei, que em sua campanha deu aulas públicas de economia, parece trazer a solução de um antigo drama argentino: as sucessivas crises econômicas. “Para nós, a economia é um problema desde sempre, que mata todos os projetos políticos e os sonhos dos argentinos. Milei se posiciona como um professor, se mostra seguro. É radical, mas diz que vai tomar as rédeas da situação, e a sociedade codifica isso como promessa e ilusão”, explica González.
Na política, a ferramenta de protestar contra o sistema costumava ser via esquerda, mas a da Argentina ficou “tão velha e demodé” que agora os liberais estão conquistando esses votos, explica o analista e consultor de opinião pública Jorge Giacobbe. Ele ressalta que nas primárias Milei obteve 14% de votos, mas chegou a 20 em uma importante comunidade de baixa renda da cidade.
“Não é necessariamente um fenômeno instruído ou partidário ideológico, mas sim baseado no desgosto. Se depois ele conseguirá converter em uma identidade com uma série de ideias, é outra história, porque o kirchnerismo fez exatamente isso, depois de surgir como o sintoma de toda uma sociedade que estava brava”, conclui.