Sacola com comida na maçaneta: brasileiro relata quarentena em hotel na China
Governo chinês tenta barrar novas infecções no país ao isolar todos os que entram em seu território
Drehmer mora na China há três anos, mas estava trabalhando remotamente da Tailândia, na capital Bangkok, quando o surto do novo coronavírus aconteceu em Wuhan, na província chinesa de Hubei. “Foi justamente quando turistas chineses de Wuhan e várias partes da China começaram a chegar na Tailândia, na época do ano novo chinês, feriado nacional deles.”
Ele percebeu que permanecer em Bangkok não era a opção mais segura naquele momento e decidiu esperar o surto passar na Europa, de onde poderia continuar trabalhando remotamente. No entanto, quando os casos de COVID-19 chegaram aos países europeus, Drehmer voltou para a Ásia e, de Lisboa, desembarcou em Hong Kong. Ali, se deparou com uma situação que não tinha visto antes. Acostumado a cruzar a fronteira do país, desta vez, foi diferente. “A imigração foi chata, eu tive que preencher um monte de formulários dizendo onde eu tinha passado.”
Além da burocracia para entrar no país, o brasileiro percebeu mudanças no cotidiano e na paisagem. “Medem sua temperatura em hotel, metrô, restaurante. Tem totem de álcool gel na cidade inteira. Em um shopping, tinha até máquina de luz ultravioleta para desinfetar corrimão de escada rolante. Tudo muito sério.”
Ele permaneceu em Hong Kong por uma semana para obter o visto de entrada na China novamente. Drehmer pediu um visto para cinco anos, mas conseguiu a autorização para ficar no país por um mês. Hong Kong e Shenzhen são conurbadas e, normalmente, cruzar a fronteira não é tarefa complicada. “Dá para ir por terra. Tem vários checkpoints onde dá para entrar em Shenzhen. Dá para ir por metrô, tem baldeação. É só passar um carimbo e entrar. Sempre foi uma fronteira muito fácil.”
Dessa vez, no entanto, a entrada no território chinês estava restrita a apenas um ponto de passagem, Shenzhen One, e a facilidade de entrar no país não existia mais. “Eu fui de táxi. Em 20 minutos de carro chegou. E aí comecei a ver aquelas pessoas com aquelas roupas de ebola, super trajes, medidores de temperatura.”
Ainda na fronteira, Drehmer teve sua temperatura medida novamente por funcionários do governo chinês, que também lhe entregaram um formulário com um pedido de declaração de que não havia viajado para áreas de risco. “Quando viram que eu era ocidental, e não um cidadão de Hong Kong, pediram para ir a uma zona especial. Tiraram minha temperatura novamente, fizeram uma triagem das minhas viagens, pegaram meu endereço e telefones.”
Até esse ponto, Drehmer não tinha, de fato, entrado na China. “Sentei com um examinador, pediram meus tickets de voo de Portugal até Hong Kong. Queriam saber em que assento eu ficado. Checaram minha temperatura novamente e me deixaram passar.”
Depois de entrar no território chinês, mais burocracia: um cadastro digital e o carimbo da imigração. “Juntaram três oficiais de imigração. Eu nunca tinha visto isso. Veio um tradutor para conversar comigo, disse que eu teria que passar pela quarentena e faria exame de coronavírus. E me disse para esperar, porque chegaria um carro do governo para me levar.”
Drehmer tinha reserva em um hotel de Shenzhen, mas entrou numa fila e aguardou. Assim como todos os que entravam na China naquele momento, ele seria levado pelo governo para algum lugar e teria que permanecer ali por algum tempo. Não sabia onde ficaria e ou por quantos dias. “Não falaram para onde a gente ia. E todo esse pessoal que veio falar com a gente também estavam com aquela roupa, super protegidos.”
Uma minivan levou o brasileiro e o grupo que estava ali. Depois de passar por dois hotéis, ambos lotados, ele foi deixado no terceiro. “O governo fechou para fazer zona de quarentena. Todo o lugar tem protocolo hospitalar, é cheio de médicos. Fizemos o check-in, subimos um de cada vez e nos colocaram em quartos. Veio uma equipe, mediu minha temperatura de novo.”
Quando a comida chegou, Drehmer teve a certeza de que era ali onde faria a quarentena. E, desde então, ele tem sido monitorado. “No outro dia vieram fazer o exame. Deu negativo. Mas toda hora aparece uma equipe médica aqui para medir minha temperatura. Me ligam, perguntam meus sintomas, se estou tossindo, se estou bem.”
A porta do quarto fica destrancada. Três vezes ao dia, alguém deixa uma sacola com comida na maçaneta, do lado de fora, e bate. Drehmer pode abrir a porta, olhar pelo corredor e pegar a comida. Não é permitido sair. “Estou trancado, digamos assim. Provavelmente, se eu sair correndo ali no corredor e desobedecer a quarentena, alguma coisa pode acontecer comigo, mas eu não vou fazer isso.”
Caso tivesse residência no país, ele poderia continuar a quarentena em casa. Como não tem, Drehmer deve permanecer no hotel por outros três dias. Pela janela, ele vê a vida do país, aos poucos, voltar ao normal.
“Aqui, a vida segue normalmente. As pessoas estão trabalhando, as fábricas estão funcionando, as instituições também. Eu olho pela janela e vejo pessoas na rua, de terno, indo trabalhar. Ainda estão seguindo orientações de distanciamento. As pessoas estão usando máscara, estão bem cuidadosas com higiene, mas está cada vez mais normal”, relata. Os planos dele são de voltar ao trabalho assim que sair do hotel. “Eu vou visitar fábricas. Vou pro meu escritório aqui em Shenzhen. Vou pegar um apartamento para mim, finalizar papelada, produzir.”
Por um lado, Drehmer se diz tranquilo. As transmissões de COVID-19 já foram controladas na China e ele se sente seguro em território chinês. “Aqui, no momento, é o lugar seguro. É o lugar estável, é o lugar onde as coisas vão funcionar normalmente. É o melhor lugar para se estar, com certeza.”
Mas a família, incluindo os pais, está no Brasil. “Isso me preocupa. Eu vejo toda essa triagem que eu passei, todo o cuidado que eles tem. O controle funciona. E dá uma perspectiva para o resto do mundo. Ver o que eles estão fazendo aqui para conter e ver que a gente não está fazendo o mesmo é assustador”, revela.