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    Armistício entre as Coreias completa 70 anos e vira modelo para guerra na Ucrânia

    Tecnicamente, Seul e Pyongyang continuam em guerra, mas acordo fez combates se encerrarem; antes criticado, modelo pode ser adotado para encerrar conflito no Leste Europeu  

    Soldados da Coreia do Sul montam guarda durante visita da imprensa à Área de Segurança Conjunta na Zona Desmilitarizada entre as duas Coreias
    Soldados da Coreia do Sul montam guarda durante visita da imprensa à Área de Segurança Conjunta na Zona Desmilitarizada entre as duas Coreias 03/03/2023 JEON HEON-KYUN/Pool via REUTERS

    Fábio Mendesda CNN

    Os paradoxos rondam a delicada situação entre as Coreias do Norte e Sul, que vivem uma situação de conflito congelado desde a assinatura de um armistício entre os dois países, há exatos 70 anos. O acordo assinado em 27 de julho de 1953 colocou um fim aos combates que marcaram o primeiro grande conflito entre os blocos capitalista e comunista.

    Hoje, a tensa situação entre os dois países é o último bastião de uma Guerra Fria que não existe há mais de 30 anos, desde a queda da Cortina de Ferro e o colapso da União Soviética.

    A situação paradoxal prossegue se levarmos em conta que, em teoria, os dois países seguem em guerra, mesmo não havendo confrontos, invasões e bombardeios há sete décadas. Durante todo esse tempo, a ausência de uma paz oficial foi alvo de muitas críticas de políticos e analistas.

    Hoje, o modelo que encerrou com a mortífera Guerra da Coreia (1950-1953) vem sendo apontado como uma possível solução para o conflito entre Rússia e Ucrânia.

    Jornalistas, políticos e sociólogos e analistas de relações internacionais apontaram as vantagens de interromper a matança e destruição no território ucraniano se valendo justamente das idiossincrasias da tal solução coreana.

    Entre elas, a criação de uma “zona desmilitarizada”, que manteria russos e ucranianos afastados um dos outros, manteria fronteiras artificiais bem definidas.

    Tudo isso separado por uma zona cinzenta que pode ser chamada de tudo, menos de desmilitarizada. Assim é entre as Coreias, em que os dois países se armam até os dentes, em meio a toneladas de arame farpado e outros equipamentos de defesa. Enfim, os paradoxos se acumulam quando o assunto é a questão coreana.

    Veja também – Imagens mostram a destruição da guerra entre Rússia e Ucrânia

    A primeira guerra do novo mundo

    A Guerra da Coreia é sempre lembrada como o primeiro grande conflito mundial após a derrocada do Nazismo e a construção de uma nova ordem mundial, baseada na ascensão de Estados Unidos e União Soviética.

    Os dois países, emergindo como os grandes vencedores da Segunda Guerra Mundial, passaram a dividir o mundo entre as suas zonas de influência espalhadas pelo mundo. Não demorou para que ambos os países olhassem para a importância estratégica da pequena península coreana, encravada no nordeste da China e colada ao Japão.

    A solução para a cobiça das duas superpotências foi a mesma adotada com a Alemanha: a divisão da Coreia, recém-libertada do domínio imperialista japonês, em duas partes. Em julho de 1945, durante a Conferência de Potsdam, foi assinado o acordo, que definiu a linha imaginária do Paralelo 38 como a fronteira entre as duas nações.

    Ao norte da linha, ficava a região que havia sido libertada pelas tropas soviéticas. Ali, tomou o poder Kim Il-sung, que fundou a Coreia do Norte e seu regime comunista, calcado na concessão hereditária do poder – ele foi sucedido após sua morte pelo filho Kim Jong-Il, que por sua vez deu lugar ao atual presidente norte-coreano, Kim Jong-um. Este escolheu Pyongyang como sua capital.

    Tropas norte-americanas tomam posição em 1951, durante a Guerra da Coreia: ação de superpotências manteve divisão dos dois países / Keystone/Getty Images

    No sul, assumiu o poder Syngman Rhee, igualmente autoritário, mas de caráter fortemente anticomunista, com seu governo sediado em Seul. Estava pronto a antítese que marcaria os dois países nas sete décadas seguintes.

    A guerra teve início em 1950, quando Kim Il-Sung invadiu a Coreia do Sul, com o apoio de Stálin. O dirigente soviético, a princípio, se posicionou contra a ideia, mas foi forçado a mudar de posição por um fator novo: a chegada de Mao Tse-Tung ao poder na China, criando um novo e poderoso campo de influência comunista.

    Foram três anos de combates cruentos, que resultaram na morte de mais de 2,5 milhões de pessoas. A destruição sem sentido, aliada à falta de uma definição sobre vencidos e vencedores, fizeram com que se optasse por uma solução inicialmente vista como paliativa: um rápido e prático cessar-fogo.

    O principal item do cessar-fogo foi o estabelecimento da chamada Zona Desmilitarizada, que definiu as fronteiras atuais dos dois países. Essa região, que corta as Coreias do Norte e Sul, tem 250 quilômetros de comprimento e aproximadamente 4 quilômetros de largura.

    Mesmo os militares dos dois países, responsáveis pelo patrulhamento da área, não costumam atuar muito por lá. A escassa atividade humana em uma região marcada pela morte acabou criando um inesperado santuário de vida animal e vegetal, que prospera de forma autônoma. Eis, portanto, mais um paradoxo.

    Veja também – Ex-detento russo conta os horrores da guerra à CNN

    A difícil busca pela paz total

    A solução paliativa acabou com as mortes nas duas coreias, mas ainda era necessário um acordo de paz definitivo, que apagasse definitivamente o risco de o conflito ser desbloqueado. O recrudescimento da Guerra Fria, no entanto, sempre interrompeu esse projeto.

    O tempo passou e a China passou a ser a principal parceira dos norte-coreanos, especialmente após o colapso da União Soviética. Os chineses, que haviam se aproximado dos Estados Unidos desde os anos 1970, poderiam ser os avalistas de uma unificação entre as Coreias. No entanto, uma questão crucial sempre se impunha: sob qual bandeira?

    Kim Il-sung e depois Kim Jong-um jamais abriram mão de que a unificação se desse sob a bandeira comunista. O mesmo pode ser dito de Syngman Rhee e de seus sucessores, sempre colocando que Seul deveria ser a verdadeira capital.

    As tensões se ampliaram quando o regime norte-coreano passou a desenvolver armas nucleares, como arma de dissuasão contra as ameaças dos Estados Unidos, que sempre pressionaram a Coreia do Norte a ceder à unificação sob Seul.

    Entre idas e vindas, a relação diplomática entre as Coreias do Sul e do Norte nunca chegaram a um bom termo. O momento de maior proximidade ocorreu em 2018, quando o então presidente sul-coreano, Moon Jae-in se encontrou com Kim Jong-un em Pyongyang. Mas pouco depois o diálogo se arrefeceu.

    Pessimismo

    Os analistas que falaram à CNN sobre os 70 anos do armistício enxergam a atual situação como um impasse que ainda deve durar muito tempo. Uma unificação, tão sonhada pelos dois lados, é vista como algo improvável, especialmente pelas diferenças do sistema econômico e político dos dois países.

    “É um sonho remoto, porque existem muitas diferenças do ponto de vista ideológico”, explica a analista Fernanda Guardian. “A Coreia do Norte é um país onde não há liberdade econômica e nem liberdade de imprensa”.

    Líder norte-coreano Kim Jong Un e o então presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in se cumprimentam em vila na zona desmilitarizada entre os dois países em 2018 / 27/04/2018 Korea Summit Press Pool/Pool via Reuters

    Emanuel Pessoa, doutor em Direito Econômico pela USP, segue a mesma linha. “É muito improvável que aconteça, considerando-se as disparidades dos sistemas econômico e políticos de ambos os países”.

    “A cada dia que passa, vai se tornando mais remota a possibilidade, posto que a separação tem criado e aprofundado diferenças culturais e de visão de mundo, de modo que, do ponto de vista prático, é como se houvesse dois povos em vezes de um único povo coreano”.

    O internacionalista Rodrigo Reis aponta as narrativas alimentadas pelos dois países, bem como seus aliados, como um impeditivo. “Eu destacaria a questão do lançamento de dois mísseis balísticos por parte da Coreia do Norte, dias antes de comemorar os 70 anos do armistício. Esse é um ato simbólico, muito forte, que ao tudo indica não existe nenhum tipo de paz ou reunificação, nem existe ou nem a curto prazo”.

    A ascensão econômica e militar da China pode ser apontada como um fator que vai impossibilitar essa reunião das duas coreias, já que sua busca por influência se assemelha à alimentada pela antiga União Soviética ou mesmo pelos Estados Unidos desde a Segunda Guerra.

    Por outro lado, a influência chinesa pode ser vista como uma garantidora da paz. “A China, ao prover ajuda econômica para a Coreia do Sul, contribui para diminuir os ímpetos belicosos de PyongYang e para reduzir os riscos de um conflito com uso de armas atômicas”, pondera Pessoa.

    “Em termos do apoio de potências externas, isso historicamente é muito importante na história da guerra entre as Coreias até os dias atuais”, frisa Rodrigo Reis. “Então, para o armistício, a Coreia do Norte recebeu delegações chinesas e russas. E o que a gente vê em termos geopolíticos é apoio nem sempre constante dessas duas potências, Rússia e China, à Coreia do Norte”.

    “A China é um aliado importante da Coreia do Norte, e essa relação entre os dois países pode sim afetar as negociações de acordo de paz entre as duas Coreias”, comenta Guardian.

    Modelo não é bom para Ucrânia

    Ao contrário das teses construídas na Europa e nos Estados Unidos, os analistas brasileiros não vêm o atual armistício como um modelo a ser seguido na Ucrânia. “Essa solução não é viável, pois na Ucrânia não existe uma separação territorial em sistemas distintos”, avalia Pessoa.

    “O que há é uma concentração de russos étnicos no leste do país, de modo que, na prática, se tal solução fosse adotada, a Rússia acabaria por absorver esse território, anexando-o, o que acabaria sendo exatamente o que a Rússia demonstra desejar com o conflito”, completa.

    Seja como for, a população dos dois países segue aspirando por uma unificação. Afinal de contas, são e sempre foram um mesmo povo, ocupado e dividido por potências estrangeiras ao longo da história.

    Em uma pesquisa recente realizada na Coreia do Sul, mais de 80% dos entrevistados admitiram que, em caso de uma guerra entre a Coreia do Norte e o Japão, torceriam pelos norte-coreanos. O que mostra que a identidade nacional segue suplantando os contornos ideológicos.