Análise: Trump já mostra o quão selvagem e extremo seria um segundo mandato
Em comício na Dakota do Sul, o ex-presidente dos EUA Donald Trump apresentou perspectiva de uma segunda presidência que poderia ser ainda mais extrema e desafiadora para o estado de direito do que a primeira
Donald Trump está evocando a visão mais agourenta do que seria um possível segundo mandato, dizendo aos apoiadores, em linguagem ressonante daquela de antes da invasão ao Capitólio dos Estados Unidos, em 6 de janeiro, que eles precisam “lutar para valer” ou perderão seu país.
A escalada retórica do ex-presidente, indiciado quatro vezes, ocorreu em um comício na Dakota do Sul na noite da sexta-feira (8), onde ele acusou seu possível oponente nas próximas eleições, em 2024, o presidente Joe Biden, de ordenar seu indiciamento por 91 acusações em quatro casos criminais como uma forma de interferência eleitoral.
“Acho que nunca houve uma escuridão em torno da nossa nação como há agora”, disse Trump, num discurso distópico em que acusou os democratas de permitirem uma “invasão” de imigrantes pela fronteira sul do país e de tentarem reiniciar a “histeria” da Covid-19.
O discurso contundente do líder republicano levantou a perspectiva de que um segunda presidência seria ainda mais extrema e desafiadora para o estado de direito do que a primeira.
A sua opinião de que a Sala Oval confere poderes irrestritos sugere que Trump se entregaria a uma conduta semelhante àquela pela qual aguarda julgamento, incluindo intimidar autoridades locais numa alegada tentativa de anular a sua derrota de 2020.
Trump também voltou suas críticas ao comportamento de seus inimigos políticos, argumentando implicitamente que o verdadeiro perigo para a liberdade política dos EUA não surgiu da sua tentativa de invalidar uma eleição livre e justa, mas dos esforços para fazê-lo enfrentar a responsabilidade legal por isso.
“É realmente uma ameaça à democracia quando eles atropelam nossos direitos e liberdades todos os dias do ano”, disse. “Este é um grande momento em nosso país porque, ou iremos para um lado ou para o outro. E se formos para o outro, não teremos mais país”, disse a apoiadores na Dakota do Sul.
“Lutaremos juntos, venceremos juntos e então buscaremos justiça juntos”, acrescentou.
As falas aconteceram depois de, em um comício de março, Trump classificou sua campanha de 2024 e o potencial segundo mandato como um instrumento de “retribuição” para os apoiadores que acreditam terem sido injustiçados.
Trump é um demagogo altamente qualificado, cuja facilidade em injetar falsidades e conspirações na corrente sanguínea política do país cria um turbilhão de caos e aspereza no qual só ele parece prosperar. E suas palavras moldam a opinião pública.
Uma pesquisa recente da CNN, por exemplo, mostrou que apenas 28% dos republicanos consideravam que Biden obteve legitimamente votos suficientes para vencer as eleições de 2020.
Isto ocorre depois de anos em que Trump nega incessantemente que perdeu, apesar dos tribunais rejeitarem as suas múltiplas contestações ao resultado.
Autoritarismo de Trump pode tornar as eleições de 2024 uma escolha profunda
O elenco autocrático da campanha de Trump está criando uma atmosfera sinistra em torno das eleições de 2024 e cirando dilemas profundos para seus oponentes e eleitores.
Isto, por exemplo, confere uma importância extra ao debate crescente sobre se Biden, aos 80 anos, tem a resistência e a resiliência política necessárias para derrotar Trump pela segunda vez.
Enquanto o seu antecessor passou o fim de semana lançando dúvidas sobre o sistema eleitoral dos EUA, Biden estava do outro lado do globo, na Índia e no Vietnã, construindo apoio internacional para a sua estratégia de política externa de combate à ameaça à democracia ocidental por parte de líderes autoritários na China e na Rússia.
No seu país, o extremismo do ex-presidente também expõe a timidez da maioria de seus rivais republicanos nas primárias, que recentemente se uniram contra o candidato novato Vivek Ramaswamy, mas só estão dispostos a criticar Trump nos termos mais oblíquos para evitar irritar seus milhões de apoiadores republicanos.
O mais próximo que uma candidata, a ex-governadora da Carolina do Sul, Nikki Haley, chegou a criticar a conduta de Trump na CNN no domingo (10), ao alertar que “precisamos deixar a negatividade do passado para trás” enquanto ela se promovia como o exemplo de uma nova geração de liderança.
A crescente demagogia do ex-presidente também destaca as principais incógnitas das eleições de 2024:
- O Partido Republicano corre o risco de nomear um candidato cujo comportamento indomável irá alienar os eleitores em muitos distritos suburbanos indecisos que se voltaram contra ele nas eleições de 2020, especialmente tendo em conta a possibilidade de ele ser um criminoso condenado no momento em que os eleitores fizerem a sua escolha?
- Se Trump ganhar a nomeação, será que as suas responsabilidades e a perspectiva de mais quatro anos de caos e recriminações atenuarão as preocupações sobre a competência física e mental de Biden e as preocupações sobre a economia, conforme revelou uma pesquisa da CNN na semana passada que capturou uma visão amplamente negativa de sua presidência?
Ao mesmo tempo, a forte liderança de Trump nas primárias mostra que há mercado para o seu tipo de teatro de homem forte. Milhões de eleitores confiam nele e o admiram, foram persuadidos por suas falsas alegações de que ganhou as eleições de 2020 e que as acusações criminais que enfrenta são uma tentativa de perseguição.
A franqueza de Trump e a imagem cuidadosamente mantida como um estranho, apesar de ter vivido na Casa Branca, o permitem explorar interminavelmente uma linha de ressentimento contra Washington e as “elites” políticas, econômicas e midiáticas que é profundamente sentida por muitos que apoiam o movimento Make America Great Again.
Isto talvez explique porque suas acusações parecem torná-lo mais popular nas primárias do Partido Republicano.
Educados por Trump, os republicanos reclamam amplamente de que o filho do atual presidente, Hunter Biden – que é investigado por um advogado especial por alegadas violações da legislação fiscal e de armas após o fracasso de um acordo judicial – está recebendo tratamento preferencial por parte do Departamento de Justiça.
E denunciam a corrupção no que consideram tentativas de Hunter Biden de tirar partido da antiga posição do seu pai como vice-presidente para fechar negócios em lugares como a China e a Ucrânia.
Trump semeou e propagou muitas destas narrativas durante meses, colocando pressão política sobre os líderes do Partido Republicano no Capitólio para considerarem a possibilidade de um inquérito de impeachment de Joe Biden.
Os defensores da medida ainda não demonstraram quais crimes graves ou contravenções, ou casos de traição ou suborno – o padrão constitucional para impeachment – se aplicam a Biden.
O presidente negou estar envolvido em qualquer negócio de seu filho, e os republicanos não apresentaram qualquer evidência de irregularidade de sua parte em relação a esses negócios.
Ainda assim, em uma pesquisa recente da CNN, a maioria dos americanos, 61%, diz pensar que Joe Biden teve pelo menos algum envolvimento nas negociações comerciais de Hunter Biden, com 42% afirmando que pensam que ele agiu ilegalmente, e 18% dizendo que suas ações foram antiéticas, mas não ilegais.
Uma maioria de 55% também afirma que o presidente agiu de forma inadequada em relação à investigação do seu filho sobre potenciais crimes, enquanto 44% afirmam que ele agiu de forma adequada.
Estas divisões nacionais que Trump alarga habilmente falam de um profundo sentimento de alienação na política americana que só será exacerbado por uma eleição amarga.
Tal divisão ficou evidente em um jogo de futebol americano no sábado (9), no primeiro estado do Partido Republicano no país, onde Trump, um dos vários candidatos do Partido Republicano que assistiam ao jogo, foi saudado por uma mistura de vivas e vaias.
Vários fãs do esporte o saudaram mostrando o dedo, em gestos capturados nas redes sociais. O anfitrião, Iowa State Cyclones, perdeu para o University of Iowa Hawkeyes no jogo em Ames, uma cidade universitária no condado de Story, um bastião liberal em um estado cada vez mais conservador que Trump venceu duas vezes nas eleições gerais.
Por que a linguagem de Trump é o motor do seu poder político?
Alguns comentaristas já questionaram o que consideram ser uma cobertura midiática alarmista de Trump, sugerindo que a sua beligerância performativa é muitas vezes interpretada de forma literal demais.
Mas as centenas de páginas de provas em acusações criminais que alegam o uso do poder presidencial por Trump para tentar roubar uma eleição e a forma como ele está usando as aparências e as redes sociais para tentar intimidar juízes e potenciais júris antes dos seus julgamentos deixaram tais críticas desatualizadas.
A retórica inflamada de Trump é fundamental para seu apelo político e método de construir poder.
Desde suas críticas mordazes e apelidos que menosprezam os rivais, até o discurso em Washington antes de dizer à multidão para “lutar para valer” ou eles não teriam um país em 6 de janeiro de 2021, Trump usa a linguagem para impulsionar seu movimento político.
Nas suas observações na Dakota do Sul – onde aceitou o apoio da governadora Kristi Noem, uma potencial escolha para vice-presidente se ele for o candidato republicano – Trump disse ter sido vítima de vitimização “corrupta e flagrante” e de “interferência eleitoral”.
Ele disse que os processos movidos contra ele “permitiriam” que, se eleito presidente, convocasse seu procurador-geral e exigisse uma investigação de seus adversários políticos. “Acuse meu oponente, ele está indo bem”, disse Trump, dando a entender que foi exatamente isso que Biden fez.
O ex-presidente usou tom sarcástico na atmosfera estridente de um comício de campanha, por isso o contexto é importante. Mas dado o seu exemplo de cumprimento das ameaças, os seus comentários podem acabar por ser preditivos se ele vencer em 2024.
Enquanto presidente, argumentou frequentemente que tinha poder constitucional praticamente irrestrito, uma atitude que está claramente em evidência em três das suas acusações – sobre tentativas de derrubar as eleições e sobre a retenção de documentos confidenciais depois de deixar a Casa Branca.
Portanto, quando Trump faz ameaças durante a campanha, vale a pena ouvir.
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