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    Análise: como o Ocidente é usado na guerra de informação da Ucrânia e Rússia

    Em meio à crescente tensão na fronteira entre Rússia e Ucrânia, 24 países já pediram para seus cidadãos deixarem o território ucraniano

    Soldado ucraniano é visto saindo de Svitlodarsk, na Ucrânia, em 11 de fevereiro de 2022
    Soldado ucraniano é visto saindo de Svitlodarsk, na Ucrânia, em 11 de fevereiro de 2022 Anadolu Agency/Getty Images

    Tara Johnda CNN

    Cadáveres espalhados por prédios destruídos após uma suposta explosão mortal. Pessoas angustiadas, chorando pelos entes queridos mortos. E, no meio das ruínas cheias de fumaça, evidências de equipamentos militares ocidentais.

    Em um mundo muito familiarizado com imagens explícitas de um desastre após o outro, é fácil imaginar as imagens sombrias.

    Os Estados Unidos dizem que é exatamente isso que essas imagens são: violência de faz de conta, ou seja, da imaginação. Dizem que a Rússia está planejando encenar um ataque falso e filmar um vídeo de propaganda sangrento, como pretexto para uma invasão da Ucrânia. O vídeo culparia os militares ucranianos (e, por extensão, seus aliados da OTAN) por um ataque a pessoas de língua russa.

    Mas, embora o governo dos EUA tenha tirado a confidencialidade de informações sobre o suposto complô na semana passada, ele não apresentou nenhuma prova ao público. Em uma acalorada coletiva de imprensa na semana passada, os jornalistas exigiram provas para apoiar a alegação, com um repórter acusando o Departamento de Estado de se desviar para o “território de Alex Jones”, famoso teórico da conspiração norte-americano.

    O porta-voz do Departamento de Estado Ned Price respondeu que o governo estava confiante na informação, mas não disse se os EUA viram o tal vídeo falso.

    “Estamos tentando impedir que os russos avancem com esse tipo de atividade. É por isso que estamos tornando isso público”, disse Price. “Se você duvida da credibilidade do governo dos EUA, do governo britânico, de outros governos, e quer buscar a verdade nas informações que os russos estão divulgando, isso é problema seu”.

    A alegação dos EUA veio dias depois que o governo britânico alertou sobre um plano russo para instalar um líder pró-Kremlin na Ucrânia, citando informações que também se recusou a detalhar para o público. Analistas disseram que os desdobramentos mostraram que o Ocidente está cada vez mais determinado a enfrentar a Rússia na guerra da informação, uma esfera na qual o governo russo muitas vezes teve vantagem nos últimos anos.

    Mas isso também traz riscos.

    Uma coisa é tentar deter potenciais campanhas de desinformação, que são projetadas para dar negação plausível a líderes como o presidente russo Vladimir Putin. Outra é quando uma democracia liberal depende de informações inéditas para convencer um público já cético de uma ameaça iminente.

    As notícias do suposto ataque de bandeira falsa (ou seja, falsificado para parecer ter partido do lado inimigo) chegam em um momento de níveis historicamente baixos de confiança do povo nos governos dos EUA e do Reino Unido. Como resultado, há mais pressão para que as autoridades retirem o sigilo dos serviços de inteligência.

    “Durante a Guerra Fria, a maioria das pessoas sabia sobre a ameaça soviética, e não precisávamos fornecer evidências para que entendessem o problema”, afirmou Dan Lomas, professor de estudos de inteligência e segurança da Universidade Brunel, de Londres, explicando que em um “mundo bipolar, a ameaça era bem real para mais pessoas”.

    Durante a Guerra Fria, as agências de inteligência ocidentais “coletavam e analisavam informações e as forneciam aos governos que as usavam para moldar as respostas políticas”, detalhou. O processo é menos direto em nosso mundo multipolar atual. “Agora estamos entrando em um mundo de múltiplas ameaças, a água ficou turva e muitas vezes as evidências precisam ser citadas para justificar as ações políticas tomadas” pelas democracias liberais, disse Lomas.

    Apesar da acalorada troca de informações na quinta-feira (10) passada, quatro analistas de desinformação com quem a CNN conversou foram inflexíveis de que a retirada da confidencialidade da inteligência nesse nível era algo inédito para os EUA.

    Eles disseram que isso também mostrava que as democracias estavam finalmente tomando medidas preventivas contra o manual de desinformação do Kremlin, que preparou os russos para a invasão da Crimeia em 2014 e surpreendeu a OTAN e seus aliados.

    O embaixador russo na União Europeia, Vladimir Chizhov, disse à CNN na semana passada que seu governo não estava planejando nenhuma operação de bandeira falsa como pretexto para invadir a Ucrânia.

    No entanto, a Rússia não é nova no uso dessas táticas. “Em 2014, uma atriz alegou que um menino havia sido crucificado em Donbas, e isso era completamente falso”, lembrou Nina Jankowicz, especialista em desinformação e membro do Wilson Center, um think tank apartidário. “O caso foi desmascarado, mas a história foi veiculada na mídia russa e, que eu saiba, ainda circula por lá”.

    Jankowicz disse à CNN que a Rússia “atribuiu erroneamente imagens das guerras dos Bálcãs que alegavam ser da Ossétia do Sul e da Abecásia” durante sua guerra de cinco dias com a Geórgia em 2008. Ela disse que as “precauções” à desinformação russa foram um impedimento vital em uma guerra de informação na qual o Ocidente tem estado em grande parte com o pé atrás.

    Mas há razões críveis para não revelar os dados de inteligência: a ação pode desmascarar fontes e divulgar as metodologias empregadas para coletá-los.

    Lomas disse que, em 1927, o governo britânico leu sinais diplomáticos de inteligência no Parlamento para justificar um ataque a uma delegação comercial soviética em Londres. “Os russos souberam então que suas comunicações estavam sendo lidas pelo governo britânico”, explicou. Como resultado, a Rússia mudou seu sistema de mensagens, impactando a capacidade da Grã-Bretanha de interceptar comunicações russas por anos.

    No entanto, os jornalistas são compreensivelmente cautelosos ao relatar mensagens que não conseguem verificar de forma independente – especialmente quando a narrativa oficial nem sempre se mostra precisa.

    Em agosto passado, quando um míssil Hellfire disparado por um drone dos EUA atingiu um carro em um complexo de Cabul, no Afeganistão, o Pentágono insistiu que os mortos eram terroristas. Uma investigação mais tarde revelou que todos os mortos eram civis, entre eles sete crianças.

    Falhas de inteligência do passado, como as “armas de destruição em massa” dadas como justificativa para a invasão do Iraque em 2003, continuam a assombrar a opinião pública sobre as intervenções americanas e britânicas.

    Em 2013, o governo britânico perdeu uma votação parlamentar sobre a adesão aos ataques aéreos liderados pelos EUA na Síria, apesar de a inteligência britânica ligar as forças do governo sírio a um ataque com armas químicas em Damasco. As pesquisas na época mostraram que a maioria do povo britânico se opunha aos ataques aéreos. Antes da votação, o então primeiro-ministro David Cameron declarou: “Uma coisa é indiscutível: o poço da opinião pública foi muito envenenado pelo episódio do Iraque, e precisamos entender o ceticismo público”.

    No entanto, existem maneiras de corrigir o problema de credibilidade. O professor Lomas sugere encontrar um mensageiro melhor.

    Quando o governo britânico alegou em janeiro que a Rússia estava tentando empossar um líder pró-Rússia em Kiev, a revelação veio justamente quando o primeiro-ministro Boris Johnson estava envolvido em uma crise política por supostas festas enquanto o Reino Unido estava sob restrições da Covid-19.

    Com isso, a divulgação de informações confidenciais da Grã-Bretanha foi recebida com ceticismo por alguns comentaristas, que se perguntaram se o tom agressivo fazia parte de uma estratégia projetada para ajudar a manter Johnson no poder.

    Lomas disse que a notícia poderia ser mais bem recebida se tivesse sido anunciada pelas agências de inteligência britânicas, já que “as pesquisas nos dizem consistentemente que as agências de inteligência e funcionários públicos são muito mais confiáveis do que os políticos na entrega de mensagens importantes”.

    Guerras de informação

    O debate sobre como lidar com alegações baseadas em inteligência apresentadas sem evidências mostra quão desigual é o tabuleiro ao lidar com autocracias como a Rússia, que há muito usa o espaço da informação como uma frente ativa em seus conflitos.

    Mais recentemente, em 2018, a Rússia acusou a organização voluntária de busca e resgate chamada White Helmets (Capacetes Brancos) de ataques químicos ao regime sírio, um aliado de Moscou.

    Celebrado internacionalmente por seu trabalho de salvar vidas na Síria, o grupo foi um alvo frequente de sites de desinformação pró-Kremlin, que buscavam deslegitimar seu trabalho alegando que eles eram terroristas ou fantoches dos serviços de inteligência ocidental.

    “Tudo o que temos do nosso lado é a verdade”, pontuou Jankowicz. “A Rússia está disposta a criar contas de trolls e outros amplificadores falsos, brincar com os fatos e manipular imagens. Nesse ponto, não é uma questão de combater fogo com fogo”, explicou a especialista. “Sempre estaremos um pouco menos equipados para lidar com essas coisas”.

    Desde 2014, quando rebeldes pró-Rússia começaram a tomar território no leste da Ucrânia, tem havido um fluxo constante de desinformação sobre a Ucrânia.

    Nenhum dos analistas com quem a CNN falou viu evidências da suposta operação de falsa bandeira russa revelada pelos EUA na semana passada (o tal vídeo falso). Mas, ao mesmo tempo, nenhum deles duvida da revelação.

    “O interessante é que, a partir de dezembro, foram os russos que promoveram a ideia de que esta guerra seria iniciada por uma bandeira falsa ucraniana”, apontou Bret Schafer, membro sênior da Aliança para a Segurança da Democracia da organização alemã Marshall Fund.

    Schafer lembra de uma declaração dada em dezembro passado pelo ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, que afirmou que mercenários dos EUA estavam equipando as forças especiais ucranianas “para hostilidades ativas” no leste da Ucrânia.

    De acordo com uma transcrição compartilhada no site do governo russo, Shoigu alegou que o fornecimento de um “componente químico não identificado” havia sido entregue à região “para realizar provocações”. Os EUA negaram a reivindicação.

    Shafer disse que os sites de mídia russos apoiaram a alegação, ecoando uma narrativa que já está sendo divulgada em sites pró-Rússia. “O interessante é que foram os russos que promoveram a ideia de que a guerra seria iniciada por uma bandeira falsa combinada entre Ucrânia e EUA-OTAN”, disse. “Foi uma espécie de vai e vem dos dois lados acusando o outro de uma operação de bandeira falsa”.

    Nos últimos anos, a repressão das empresas de mídia social aos bots russos fez com que vozes de maior destaque, como sites de notícias e personalidades como Shoigu, desempenhassem um papel importante na divulgação das ideias do Kremlin.

    Uma análise feita pela equipe de Schafer descobriu que desde novembro do ano passado propagandistas russos e sites de notícias vêm afirmando que a Ucrânia é um estado falido; os políticos ucranianos são neonazistas; os EUA e a OTAN são os culpados pela crescente probabilidade de guerra e que, apesar de reunir mais de 100 mil soldados russos perto das fronteiras da Ucrânia, a Rússia não é o agressor.

    O Center for Information Resilience, com sede no Reino Unido, onde Jankowicz é consultora sênior, viu um aumento de 200% nas postagens alegando que a Ucrânia é o agressor contra a Rússia em comparação com esse período em 2021. As narrativas online sobre os neonazistas ucranianos e a agressão da OTAN também tiveram um “enorme aumento na semana passada”.

    Além disso, personalidades da mídia americana ajudaram a limpar a barra de alguns desses pontos de discussão. Em dezembro, o apresentador da Fox News Tucker Carlson informou que uma “tomada da Ucrânia pela OTAN comprometeria o acesso da Rússia à sua Base Naval de Sebastopol”.

    Jankowicz disse que os EUA estão em grande desvantagem “porque a questão da desinformação russa tornou-se muito polarizada” na era Trump. “As pessoas ouvem a palavra Rússia e há uma enorme dose de desconfiança que vem junto com isso em partes do espectro político na extrema esquerda e na extrema direita”.

    De acordo com o Departamento de Estado, o governo dos EUA tem um papel ativo em desmascarar as alegações sobre a Ucrânia enquanto tenta impedir o Kremlin de moldar o ecossistema de informações para se adequar aos seus objetivos políticos.

    Tirar a sigilo de informações como arma na luta contra a desinformação funcionou em 2018, quando o governo britânico respondeu ao envenenamento de Sergei e Yulia Skripal em Salisbury, num ataque no qual foi usado o agente nervoso Novichok. A então primeira-ministra Theresa May retirou o segredo de evidências “de forma extremamente rápida enquanto a situação ainda estava se desenrolando, a fim de contrariar a narrativa russa”, disse Jankowicz.

    Os detalhes que ela divulgou ajudaram os investigadores que usam informações open source (de código aberto, ou seja, disponíveis para qualquer pessoa) como a organização Bellingcat a fazer revelações certeiras sobre os suspeitos de envenenamento. Eles também cortaram a arrogância do governo russo, disse Lomas. Os homens acusados de realizar o ataque foram ridicularizados no exterior por alegarem em uma entrevista com o apoio do Kremlin à rede RT que fizeram a longa viagem de Moscou a Salisbury para um passeio turístico de um dia.

    No caso da suposta trama de vídeo da Rússia revelada agora, “há muitas razões para o público dos EUA ser cético em relação aos serviços de inteligência dos EUA”, disse Schafer.

    Segundo o especialista, autoridades americanas podem tentar mitigar isso usando como exemplo o caso de Salisbury e divulgando evidências mais tarde. Outra alternativa é serem francos de que não fornecer provas “pode não ser bom para muitas pessoas” e explicar que não conseguem revelar mais nada.

    Mas, com a névoa da guerra indiscutivelmente mais espessa do que nunca na era digital, atravessá-la pode ser algo difícil.

    Este conteúdo foi criado originalmente em inglês.

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