“Alistar-se ou morrer”: medo e fome alimentam milícias no Sudão
Forças paramilitares ocupam estado responsável pela produção agrícola do país africano e forçam recrutamento
Em meados de dezembro, o poderoso grupo paramilitar Forças de Apoio Rápido (RSF) invadiu o estado de Jazira, no centro do Sudão, conhecido por ser o principal produtor de alimentos do país, com um ultimato: “Alistem-se ou morram”.
Desde então, a milícia tem usado a comida como arma, impedindo o envio de suprimentos aos famintos, numa tentativa de coagir homens e rapazes a se juntarem às suas fileiras, de acordo com mais de trinta testemunhas.
As RSF lutam contra as Forças Armadas Sudanesas (FAA) pelo controle do país desde que eclodiu uma guerra civil entre as duas facções rivais em abril do ano passado. As duas forças foram acusadas de matar civis.
No ano passado, a CNN expôs uma campanha liderada pelas RSF para escravizar homens e mulheres e outras atrocidades do grupo paramilitar e das suas milícias aliadas na região ocidental do Darfur, no Sudão. A área já era conhecida pelo que foi amplamente descrito como o primeiro genocídio do século 21.
Agora, uma nova investigação da CNN descobriu que quase 700 homens e 65 crianças foram recrutados à força pelas RSF nos últimos três meses apenas no estado de Jazira.
Muitas das vítimas foram identificadas por testemunhas, sobreviventes e familiares. A CNN verificou os seus nomes com moradores de suas comunidades para obter detalhes sobre o que aconteceu em cada caso. Em meio à luta, a comunicação é limitada e há pouco acesso para veículos de mídia, tornando uma reportagem como esta incrivelmente desafiadora.
A CNN conseguiu corroborar de forma independente a identidade de todas as 750 pessoas levadas pelos grupos das RSF em Jazira. Dessas, pelo menos 600, incluindo 50 rapazes menores de 18 anos, juntaram-se às RSF no leste de Jazira, em muitos casos motivados pela fome, de acordo com testemunhas. Outros 150 homens, incluindo 15 garotos, foram recrutados à força no oeste de Jazira. Muitos dos homens eram trabalhadores rurais ou comerciantes.
A campanha das RSF aconteceu no coração agrícola do Sudão durante o seu pico de cultivo e período de colheita, agravando a insegurança alimentar num país que já está à beira da fome.
Testemunhas oculares detalharam uma série de métodos coercitivos empregados pelas RSF para obrigar os indivíduos a aderir às suas fileiras, incluindo intimidação, tortura, execução sumária e retenção de alimentos e ajuda médica.
A CNN obteve e verificou dois vídeos de moradores de uma vila em Jazira que descreveram um ataque das RSF no início de janeiro. Num dos vídeos, um soldado das RSF, identificado pelo capacete e pela insígnia do seu uniforme militar, declara ter capturado a vila.
Em outro, os soldados das RSF, novamente identificados pelos uniformes e capacetes, chamam os homens do vilarejo de “cachorros” e, depois, o barulho de tiros toma o ambiente. Os soldados das RSF são vistos humilhando os homens, forçando-os a se deitar no chão, de bruços. Em seguida, eles executaram seis deles, de acordo com o relato de três sobreviventes à CNN. Segundo eles, foram assassinados aqueles que se recusaram a se alistar. Duas outras testemunhas da vila confirmaram o relato.
Soldados das RSF que procuram angariar mais homens para a milícia visaram uma aldeia diferente no dia 27 de fevereiro, de acordo com as testemunhas.
A milícia tentou recrutar 20 jovens da aldeia, segundo testemunhas oculares, sobreviventes e famílias de vítimas. Quando os moradores se recusaram, eles montaram uma base na aldeia, desencadeando o que as testemunhas descreveram como uma campanha de terror. As casas foram saqueadas e os supermercados e armazéns de alimentos foram incendiados antes de os soldados partirem com mais de 30 veículos roubados.
As mais de 30 testemunhas oculares ouvidas pela CNN são de várias partes do estado de Jazira. Elas incluem sobreviventes e parentes de vítimas. Segundo elas, recusar o ultimato das RSF ameaça o alimento, o lar e a segurança. A CNN não dará o nome das vilas e aldeias e da maioria das pessoas que falaram devido ao medo das represálias das RSF.
Por sua vez, as RSF ainda não responderam ao pedido da CNN para comentar esta reportagem.
O celeiro do Sudão
O estado da Jazira, no centro do Sudão, alimenta grande parte da população do país, de cerca de 48 milhões, de acordo com dados das Organização das Nações Unidas (ONU). Localizado ao sul de Cartum, a capital do país, o estado também abriga um dos maiores sistemas de irrigação do mundo, chamado de Esquema Jazira. Antes da guerra, Jazira produzia quase metade do trigo total do Sudão e armazenava a maior parte das reservas de grãos do país.
Os grãos, assim como a capacidade de plantar e colher mais, estão agora nas mãos das RSF, já que as milícias estão entrincheiradas e ocupam vastas extensões das terras agrícolas de Jazira.
“Quem controla Jazira, controla a produção de alimentos no país”, explicou Alex de Waal, especialista nos países do Chifre da África e diretor executivo da World Peace Foundation (Fundação para a Paz Mundial), sobre o que ele chamou de “crise catastrófica da fome” que o conflito gerou.
Mohamed Badawi, advogado do African Centre for Justice and Peace Studies (Centro Africano de Estudos da Justiça e Paz), disse à CNN que as táticas intimidatórias e violentas das RSF eram semelhantes a um “sistema de trabalho forçado”.
“As pessoas precisam sobreviver e não têm outra escolha, ninguém para quem reclamar. Quem não matar por eles vai acabar preso”, disse o advogado sobre os métodos das RSF.
Sem sinais de que o conflito esfriou, o medo da fome iminente só aumenta.
O Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas (PAM) avisou no início deste mês que mais de 25 milhões de pessoas em todo o Sudão e nos vizinhos Sudão do Sul e Chade estavam “presas numa espiral de deterioração da segurança alimentar”. Os que mais precisam de ajuda estão “encurralados” em áreas que não podem ser atingidas por causa da “violência implacável e interferência das partes em conflito”, acrescentou o comunicado.
Cerca de 220 mil crianças gravemente desnutridas e mais de 7 mil novas mães podem morrer no Sudão se a assistência urgente não chegar nos próximos meses, de acordo com o Gabinete da ONU para a Coordenação dos Assuntos Humanitários (OCHA) num relatório apresentado na semana passada. Cerca de 3,7 milhões de crianças sofrem de desnutrição em todo o país, segundo o relatório, acrescentando que já existem relatos de mortes de crianças por causa da desnutrição, inclusive em Darfur.
A ONG Save the Children, parte de um grupo de organizações humanitárias que trabalham no Sudão, disse que desde que o conflito eclodiu, em abril passado, o fornecimento de alimentos diminuiu severamente, tanto na produção como na distribuição, enquanto os preços subiram “45% em menos de um ano”.
A ONU fez um pedido de US$ 2,7 bilhões (cerca de R$ 13,5 bilhões) este ano para satisfazer as necessidades humanitárias do Sudão. Até agora, apenas 5% desse número foi angariado.
“Pessoas sem misericórdia”
O controle das RSF sobre o fornecimento de alimentos é apenas parte de um sistema de intimidação em Jazira, segundo relatos de testemunhas.
Em 3 de janeiro, um vendedor de frutas de 21 anos do oeste de Jazira estava voltando para o estado, vindo de uma área controlada pelas RSF no norte, quando a milícia o segurou. “Eles me acusaram de cooperar com a inteligência do exército sudanês e só me libertaram após a intervenção de um dos meus amigos que se juntou à RSF”, disse o comerciante, que não quis se identificar por razões de segurança.
Mas o amigo dele não podia garantir a sua segurança daquele ponto para frente. “Ele me aconselhou a entrar para as RSF com ele para que eu pudesse dar comida para os meus filhos”, contou o homem à CNN. “Mas eu rejeitei completamente a ideia”. Desde então, ele fugiu do estado e está vivendo num local não revelado em outra parte do país.
Outro homem que possui um sítio onde cultiva frutas na mesma área, Sidiq Farouk, disse que foi torturado em sua propriedade em 28 de dezembro, dias após as RSF consolidarem o poder na capital do estado, Wad Medani. Farouk, que falou com a CNN de um local seguro fora do país, disse: “Amarraram minhas mãos e pernas com cordas e me jogaram no chão. Depois, começaram a me bater”.
Farouk alegou que os soldados, que o acusaram de se associar às forças opositores da SAF, pisaram no seu rosto usando suas botas militares. “É muito difícil ouvir o movimento das botas sobre os ouvidos. Comecei a ouvir um assovio. Depois de um tempo, fiquei entorpecido com os espancamentos. São pessoas sem misericórdia”, relatou à CNN.
O homem contou que quatro membros da sua família foram assassinados desde então por tentarem resistir às RSF.
Ele também contou a experiência de um homem de Cartum que tinha procurado refúgio numa aldeia perto da sua, em Jazira, quando a guerra começou, em abril de 2023, e desde então tinha sido coagido a se juntar às RSF. “Quando as RSF entraram no estado em dezembro, roubaram o carro dele”, disse Farouk.
As RSF disseram que só devolveriam o carro se ele trabalhasse para eles, lembrou Farouk. “Até agora, ele só trabalhou como motorista para eles. E nem conseguiu o carro de volta”.
Mais de uma dúzia de testemunhas também acusaram as RSF de explorar um apagão de comunicações de um mês no estado para extorquir dinheiro dos moradores. Como resultado do apagão, o grupo paramilitar controla o acesso à internet em Jazira, cobrando dinheiro dos residentes para usar o sistema de internet por satélite Starlink, da SpaceX, para serviços online, incluindo transferências bancárias.
“As RSF cobram US$ 3 (cerca de R$ 15) por hora para permitir que as pessoas usem a internet. Em relação às transferências bancárias, eles cobram 20% do valor da operação quando alguém envia dinheiro ao exterior”, detalhou uma testemunha. “Eles pagam o que precisam em dinheiro porque são os únicos que agora o têm no estado de Jazira; é o dinheiro que saquearam de bancos, lojas e muitos vilarejos”.
A troca de favores exigido pelas RSF tornou-se mais clara ao longo das semanas, segundo os moradores. “Fui com um grupo de moradores de uma aldeia apresentar uma queixa ao comandante do distrito sobre o roubo de carros e dinheiro”, contou uma testemunha. “A resposta do comandante foi: ‘Faça com que os jovens da aldeia se alistem para que eles possam proteger vocês’”.
Novos recrutas das RSF estão sendo “recompensados com comida e ajuda saqueadas dos outros”, disseram mais testemunhas.
Hala Al Karib, diretora regional da ONG Strategic Initiative for Women in the Horn of Africa (Iniciativa Estratégica para as Mulheres no Chifre da África), falou à CNN: “O que as RSF estão fazendo em Jazira – transformando comunidades autossuficientes em deslocados que dependem da ajuda ou desclassificá-los em pessoas escravizadas nas suas próprias terras – é exatamente o que fizeram na zona rural de Darfur, há 20 anos, uma ação da qual se safaram”.
Para Al Karib, crianças e adolescentes são especialmente vulneráveis à exploração das RSF, e o recrutamento delas tornará mais difícil qualquer processo de desmobilização futura.
A CNN levou suas conclusões relator especial das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão, Tomoya Obokata, que disse: “O recrutamento de jovens e crianças em troca de comida e segurança equivale a trabalho forçado, a pior forma nos casos de crianças, e equivale à escravidão contemporânea de acordo com o direito internacional”.
Depois de quase um ano de guerra, a UNICEF, o Fundo das Nações Unidas para Infância, estima que cerca de 19 milhões de crianças sudanesas estão fora da escola.
Vários vídeos de todo o Sudão que mostram crianças soldados das RSF foram postados nas redes sociais desde o início da guerra. A CNN conseguiu confirmar o recrutamento de 65 deles em Jazira desde meados de dezembro, com cada relatório corroborado independentemente por moradores das aldeias em questão. Relatos semelhantes surgiram de outras partes do país; a CNN conseguiu confirmar uma série de casos em Omdurman e Cartum.
Sequestro dos alimentos
A entrada das RSF em Jazira em meados de dezembro marcou o primeiro passo no que parece ser uma destruição sistemática da infraestrutura agrária do país. O fato também agravou a enorme crise de deslocamento interno do país, uma vez que o estado tinha dado abrigo a centenas de milhares de pessoas que fugiam dos combates noutros lugares.
Em 20 de dezembro, o PAM – que havia criado um centro de ajuda e armazém na capital do estado, Wad Medani, depois de eclodiram os combates em Cartum em abril do ano passado – foi forçado a parar temporariamente a distribuição de alimentos em Jazira, disse Leni Kinzli, chefe de comunicações do PAM no Sudão.
“Em menos de uma semana”, lembrou Kinzli, “nosso armazém contendo mais de 2,5 mil toneladas métricas de alimentos que salvam vidas, incluindo leguminosas, sorgo, óleo vegetal e suplementos nutricionais, um estoque suficiente para alimentar quase 1,5 milhão de pessoas sofrendo grave insegurança alimentar durante um mês no estado de Jazira, foi saqueado por elementos associados às RSF”.
A CNN falou com vários moradores que disseram que a maioria dos armazéns que contêm ajuda alimentar em Jazira foi saqueada nas primeiras quatro semanas da ocupação das RSF. “Desde que entraram em Jazira, os líderes das RSF têm negado os saques, roubos e incidentes de homicídio e estupro, atribuindo-os a criminosos”, contou uma testemunha à CNN. “Mas, como testemunha ocular do que aconteceu na nossa aldeia, eu posso dizer que aqueles que cometem todas estas atrocidades estão usando uniformes da RSF”.
Em um relatório ao governo, Omar Marzoug, diretor do projeto de irrigação do Esquema Jazira, detalhou o que as RSF teriam roubado ao invadir a sede da organização em 18 de janeiro. A lista inclui tudo o que está associado à infraestrutura agrícola: tratores, sementes, fertilizantes e até armazéns cheios de comida.
Um líder proeminente na Jazira e na Al-Manaqil Farmers’ Alliance, a aliança de produtores rurais, que preferiu não revelar o nome, contou à CNN: “Agora, o destino da agricultura de Jazira é desconhecido”.
Testemunhas oculares relataram à CNN que o mercado central de Wad Medani também foi saqueado e incendiado poucos dias depois das milícias tomarem conta da cidade. Em vídeo publicado nas redes sociais – geograficamente localizado na área do mercado – um homem com uniforme das RSF se vangloria dos danos causados por suas forças: “Eles disseram que Wad Medani não pode ser tomada. Olhem agora”. Imagens de satélite de dezembro de 2022 mostram danos causados pelo fogo no mercado.
De Waal, especialista no Chifre de África, disse à CNN que, dada a terrível situação alimentar, “o que está acontecendo constituiria um crime de fome imprudente”.
“Sete milhões” de famintos
Os danos à infraestrutura agrícola da Jazira só agravarão a situação no resto do Sudão.
Em janeiro, a ONG Médicos Sem Fronteiras, informou que no campo de Zamzam para deslocados na região duramente atingida do norte de Darfur, no oeste do país, pelo menos uma criança “morre a cada duas horas” de fome.
O Sudão está enfrentando o pior nível de fome já registrado durante a época de colheita, de outubro a fevereiro, de acordo com uma pesquisa publicada no mês passado pelo Instituto Clingendael, um grupo de reflexão (think tank) independente. A organização prevê que a “gravidade e a escala da fome na próxima estação magra (meados de 2024) serão catastróficas” e pede ajuda urgente e em grande volume.
De acordo com o cenário mais provável baseado na sua pesquisa, cerca de sete milhões de pessoas podem enfrentar fome catastrófica até junho de 2024, “com a fome em massa sendo a perspectiva”.
A presença das RSF impediu efetivamente os agricultores de fazer as colheitas, disse Anette Hoffmann, autora do relatório, à CNN.
“A colheita era extremamente necessária para compensar as enormes perdas de produção que já ocorreram devido aos combates noutros estados. Os violentos avanços das RSF no estado de Jazira, a destruição proposital dos armazéns, do banco genético do Sudão e dos sistemas de irrigação irão inevitavelmente exacerbar ainda mais a enorme escassez de alimentos do país”, elencou.
“Aqueles que dificultam a ajuda para salvar vidas devem ser responsabilizados pela fome que causam”.
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) também instou uma ação imediata e coletiva para evitar uma catástrofe humanitária iminente. “Restaurar a produção agrícola e pecuária – um meio de subsistência para dois terços da população – é uma prioridade humanitária máxima”, escreveu em seu plano de resposta humanitária de 2024.
De Waal destacou a consequência muito imediata das RSF que recruta agricultores e comerciantes como combatentes em meio à crise da fome. “Quem vai plantar, então? Estão todos arrasados”, lamentou.
Como um agricultor, que pediu para não ser identificado por medo da retaliação das RSF, resumiu: “É um ato intencional para levar as pessoas à fome”.
Benjamin Browne, da CNN, contribuiu para esta reportagem.
Nota dos editores: Esta reportagem não teria sido possível sem as contribuições dos jornalistas sudaneses, que não nomeamos por sua segurança.