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    100 dias de Milei: sem apoio legislativo e com pobreza em alta, líder mantém apoio popular

    Segundo institutos de pesquisa argentinos, apesar de uma leve redução de imagem positiva, Milei conta com a aprovação de mais de 50% da população

    Presidente argentino, Javier Milei
    Presidente argentino, Javier Milei 10/12/2023REUTERS/Matias Baglietto

    Luciana Taddeoda CNN

    Há 100 dias, o libertário Javier Milei dava seu primeiro discurso como presidente, da escadaria do Congresso argentino, de frente para seus apoiadores e de costas para legisladores. O gesto simbólico que quebrou o protocolo da cerimônia de posse anunciava um novo modo de fazer política na Argentina.

    Desde de 10 de dezembro, Milei abriu frentes de batalha não somente com os parlamentares, mas também com governadores, jornalistas, artistas e pesquisadores argentinos, além de presidentes com os quais não se alinha ideologicamente – entre eles o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, ao retuitar postagens de suposta perseguição à oposição no Brasil.

    O presidente argentino dialoga diretamente com seu eleitorado nas redes – que usa de modo frenético, tanto com postagens próprias, como com retuítes, compartilhamento de memes e “curtidas” – e em diversas entrevistas que concede à imprensa local, mas somente para jornalistas que considera aliados.

    Com o discurso de que está passando a “motosserra” nos gastos públicos e eliminando privilégios da “casta” política e empresarial, ele apoiou seu plano econômico em três bases principais: a desvalorização do peso em cerca de 50%, de uma vez, em dezembro, a assinatura de um megadecreto para desregular a economia – que está em vigor – e uma “lei ônibus” que reforma diferentes aspectos da administração pública, que acabou sendo retirada do Congresso sem ser aprovada.

    A desvalorização do peso acarretou em um aumento brusco da inflação em dezembro e janeiro: o índice saltou de 12,8% em novembro para 25,5% em dezembro e 20,6% em janeiro. Os aumentos de preço desaceleraram para 13,2% em fevereiro, mas ainda acima do índice pré-Milei, e a previsão é que em março fiquem entre 13% e 15%.

    Parlamentares argentinos debatem projeto de lei de reforma econômica do presidente argentino, Javier Milei, conhecido como “lei ônibus” no Congresso Nacional, em Buenos Aires, Argentina / 02/02/2024 REUTERS/Agustin Marcarian

    O efeito inflacionário da desvalorização e as desregulações da economia pelo megadecreto, que fica em vigor se não for barrado pela Câmara, em sessão que ainda não tem data para acontecer, atingiu em cheio a população mais vulnerável.

    Os dados se viram refletidos no aumento da pobreza, que teria atingido 57% em janeiro, segundo o organismo mais reconhecido para esta medição no país, o Observatório da Dívida Social Argentina, da Universidade Católica (UCA).

    Mesmo assim, com exceção de um grande protesto convocado por sindicalistas em 24 de janeiro no dia de uma greve geral que não contou com acatamento expressivo, não houve forte reação nas ruas. E, segundo institutos de pesquisa argentinos, apesar de uma leve redução de imagem positiva, Milei conta com a aprovação de mais de 50% da população.

    Analistas econômicos, por sua vez, se mostram otimistas com as medidas financeiras e fiscais. Tanto pela recuperação das reservas do Banco Central, que o governo de Alberto Fernández deixou com um saldo negativo de cerca de 12 bilhões de dólares e que ainda estão no vermelho, mas em cerca de 5 bilhões, como pela diminuição da taxa de juros de 100% para 80%, provocando uma valorização dos títulos argentinos.

    Outros aspectos positivos ressaltados por economistas foram o início dos pagamentos de dívidas com fornecedores de importações, deixadas pela administração anterior, e a diminuição da brecha entre o dólar oficial e o comercializado no mercado paralelo de câmbio.

    Sem contar a conquista mais alardeada pelo atual governo: de superávit fiscal pelo segundo mês consecutivo. Em fevereiro, o Setor Público não financeiro chegou a um superávit primário de 1,2 bilhões de pesos, o equivalente a 0,2% do PIB argentino, devido a uma contração mensal do gasto de 36,4%.

    Presidente da Argentina, Javier Milei / 17/01/2024 REUTERS/Denis Balibouse

    A preocupação é como o governo manterá o superávit diante da diluição dos salários de funcionários públicos pela inflação, o que explica parte dos bons resultados fiscais: o gasto público com aposentadorias e pensões caiu 38%, segundo o ministério da Economia.

    “Milei aplicou políticas das quais o mercado gosta: diminuiu o déficit fiscal com a dissolução de salários e com a motosserra, mas amanhã terá que buscar outras formas, como implementar novos impostos, fazer gastos de forma mais ordenada”, explica Miguel Kiguel, diretor-executivo da consultoria Econviews.

    Segundo ele, a aceitação do mercado financeiro às medidas, com a diminuição, por exemplo, do risco-país, também se deve a que a população as apoia.

    “Antes isso não era assim. Agora, o discurso de que o Estado deve se responsabilizar por tudo, que o Estado deve ser muito grande, parece ser um discurso que os argentinos estão deixando para trás”, avalia.

    Ganhar a confiança dos mercados é a aposta do governo Milei para poder, futuramente, eliminar travas à compra de dólares, que continua restrita no país, explica o economista Camilo Tiscornia, diretor da consultoria C&T Assessores Econômicos e professor de economia monetária da UCA.

    “O governo continua mantendo muitas restrições do governo anterior para a compra de divisas, e isso está ajudando a conseguir esses resultados.

    Os exportadores não dispõem livremente de moeda estrangeira”, explica Tiscornia, pontuando também que parte do superávit se explica pelo aumento da taxação à compra de divisas, chamada de “Imposto País”, de 7% para 17% para alguns setores, e a manutenção de 30% para os que pagavam essa taxa.

    Para chegar ao superávit até fevereiro, Milei diminuiu subsídios, paralisou obras públicas, deu fim a alguns planos sociais, congelou ou reduziu recursos destinados a pesquisadores do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet) – gerando reação de quase 80 ganhadores de prêmio Nobel, que enviaram uma carta a Milei -, a universidades federais e ao Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais, entre outros entes públicos.

    Organizações sociais denunciam que o governo deixou de enviar alimentos para refeitórios populares, aos quais famílias recorrem diariamente para fazer pelo menos uma refeição por dia.

    Os movimentos, unidos a partidos de esquerda, têm feito diferentes protestos contra a medida, mas a administração Milei afirma que não entregará ajuda a intermediários, que qualifica como “gestores da pobreza”.

    Ele também freou o repasse de verbas para as províncias, o que gerou um forte confronto com governadores, principalmente patagônicos. O governador de Chubut, Ignacio Torres, chegou a ameaçar interromper o envio de gás para o resto do país caso não recebesse recursos que deveriam ser entregues à sua província.

    Também houve a postergação de alguns pagamentos, como os dos subsídios para as empresas de energia elétrica, para que os usuários continuem pagando a energia com desconto, explica Tiscornia. Paralelamente, houve aumentos das contas de energia e na passagem do transporte público, que chegou a subir até 255%.

    Para o cientista político Pablo Touzón, Milei fez todos os ajustes que podia a partir do Executivo – desvalorizando o peso, parando a emissão monetária e atingindo o superávit fiscal -, mas se depara com a falta de ferramentas institucionais.

    “Ele quase não tem ferramentas legislativas, hoje conta com quase as mesmas de quando começou”, explica.

    Sem apoio político suficiente, a estratégia de Milei para tentar promover reformas foi assinar, dias depois de assumir, um megadecreto – um Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) de mais de 300 artigos – que eliminou ou modificou diversas leis que tinham sido aprovadas pelo Congresso, como a lei de aluguéis ou a que regulava planos de saúde.

    Desde que o DNU entrou em vigor, não há nenhuma regulação de prazo mínimo e moeda de transação para a assinatura de contratos de aluguel na Argentina, e muitos planos de saúde particulares informaram aumentos de até 40% mensais, que somam mais de 100% desde dezembro.

    O DNU, que tem que ser aprovado ou rejeitado pela Câmara de uma vez, é considerado inconstitucional por diferentes constitucionalistas. A parte que alterava a legislação trabalhista do texto foi anulada pelo Judiciário, e ainda não se sabe se o governismo terá força entre os deputados para garantir que o decreto continue vigente.

    “Até agora Milei não teve nenhum sucesso no Congresso, essa é uma briga que ele terá que travar e não sabemos se será bem-sucedido”, avalia Kiguel, ponderando sobre a necessidade de apoio parlamentar para levar a cabo reformas estruturais, como tributária, previdenciária e trabalhista.

    Por outro lado, há surpresa entre analistas pela popularidade de Milei apesar da dureza do ajuste e da forte recessão que recaem majoritariamente sobre a classe média e setores mais empobrecidos.

    “As pessoas continuam apoiando sua agenda antissistema. A revolução radical que ele propõe tem apoio popular e acredito que parte do sistema político argentino já aceita que há reformas que precisam ser feitas”, pontua Touzón.

    Milei é eficiente em canalizar a rejeição à permanente crise e a políticos tradicionais. Para ele, existe mau humor nas ruas argentinas, mas ainda direcionado ao governo anterior. A dúvida é quanto tempo o apoio se manterá.

    “Isso não vai durar para sempre. Ele terá que começar a mostrar resultados, principalmente em termos inflacionários. Há raiva nas ruas argentinas e ele a canaliza, mas não sabemos até quando”, conclui.