Entrevista com os Irmãos Campana: “Buscamos fazer ao contrário do modernismo”
Fernando e Humberto Campana estão entre os maiores designers do mundo, e levam as lembranças do interior do Brasil para as suas criações
O destino dos irmãos Campana parece ter acontecido de forma orgânica, assim como a TransRock Chair, que abre essa matéria. A visão que os artistas têm da vida se assemelha à visão que eles têm de suas obras. Enxergam em materiais improváveis novas formas, que se entrelaçam ao tecido de suas ideias.
Vão além de limites e possibilidades. E o mesmo aconteceu em suas vidas. Poderiam ter tido mil outros destinos, poderiam se acuar à Ditadura, à dificuldade de trilhar o caminho da arte, ao isolamento de suas ideias em contextos menos inspiradores. Mas, se fosse assim, não seriam os Campana.
Os Campana que conhecemos estão entre os maiores designers do mundo. Nasceram em cidades do interior – Humberto em Rio Claro, Fernando em Brotas – e de lá se projetaram para o mundo.
Colecionam prêmios como arquitetos e designers – em 2009, foram escolhidos como os Designers do Ano de Miami; e em 2013, entraram para a lista da Forbes como um dos 100 brasileiros mais influentes, só para citar alguns.
São aclamados por publicações importantes do setor como a Interni e a Wallpaper, que também os premiou como profissionais de design e arquitetos icônicos. Suas peças estão em coleções permanentes do Moma de Nova York, do Pompidou em Paris, do MAM em São Paulo, entre tantos outros.
Mas a projeção internacional não maculou a brasilidade. Pelo contrário. É a brasilidade genuína e inovadora que os fez ganhar importância.
Para chegar até lá, não saíram de dentro de seus sonhos. Trilharam caminhos que saíram do interior, das cachoeiras e da escassez de vanguarda para o apogeu de um design até então inexistente. Eles criaram o inexistente.
Os Campana transformaram sarrafos de madeira em uma cadeira que se tornou hype (cadeira Favela). Que eles fizeram transbordar o vime em cima do plástico. Que utilizaram dezenas de metros de cordões que, entrelaçados, se tornaram uma cadeira. Eles são bem-humorados. Como se fossem um Oiticica das cadeiras, dançando em tecidos sem desenhá-los antes.
“Os europeus nos olham com estupor porque não somos projetáveis. O brasileiro encontra a solução nele mesmo”, nos fala Fernando, citando Jabor. Tantos rodeios do mundo ocidental para chegar na teoria do sustentável, e os Campana sempre se criaram, e criaram o design brasileiro, com zero quilômetros de distância do que precisavam.
Nesta conversa com a CNN Estilo, eles falam sobre como a pandemia os transformou. O olhar sai do exterior para viajar pelo Brasil e focar em projetos do Instituto Campana em Brotas, cidade de onde vieram. A ideia é trazer a natureza de volta para sua melhor forma, como fazem com o que encontram pela frente.
A primeira parte da conversa é com Fernando Campana, o irmão mais novo. A outra parte é com Humberto Campana, o irmão mais velho. Os dois estavam separados e falaram conosco com 2 semanas de distanciamento. Ainda assim, as conversas se entrelaçam. Detalhes sutis, visões de sonho. Ambos com uma alma calma.
O importante é ligar a poesia à função, a forma.
Fernando Campana
A história de vocês tem caminhos curiosos…
Fernando Campana: Tudo aconteceu de forma espontânea. Trabalhei como guia e assistente de montagem na Bienal de SP, em 1983. Conheci Anish, Keith, Grupo Fluxus. Foi maravilhoso. Humberto tinha feito advocacia e fazia artesanato. Ele me chamou para ser o contador dele e desde então trabalhamos juntos. Os dois conhecem muito bem o chão de fábrica e o da rua também. Nossa inspiração vem das formas e das soluções espontâneas do brasileiro em geral. Ouvi um depoimento do falecido querido Arnaldo Jabor em que ele dizia “não adianta, o brasileiro tem todas as soluções, basta olhar”.
A solução está em nós, né?
Exatamente.
Nosso isolamento mostrou que vocês já previam algumas coisas?
Eu acho que sim. Nossas gerações passaram por todas as mudanças. Quando nasci, Brasília foi inaugurada, era toda aquela euforia, eufemismo. Aí veio o período militar, depois a Tropicália. E veio um total silêncio. E então vieram os Campana fazendo móveis que não existiam na Itália. E agora, apesar de toda essa mudança pandêmica, com todos pendurados na Internet mais do que nunca, continuo focando no futuro de forma rudimentar.
Como é prever o futuro de forma rudimentar?
Quando não tinha televisão em Brotas, fui ao cinema assistir “2001” (Stanley Kubrick). Meus pais tinham veneno anti-monotonia, como dizia Cazuza. Depois eu vi “Blade Runner”. O cinema foi a linguagem que me mostrou ser possível imaginar o futuro. Morei em cima do Cinema Biju, na praça Roosevelt. Eu era aquele irmão pivete, que vai atrás dos mais velhos. Acho que nunca me confirmei com a idade que tinha. Mudava a idade nas carteirinhas do colégio para entrar no cinema, tinha pressa de crescer para ver esse futuro imaginado.
O cinema parece ser importante parte do seu repertório.
O cinema deu uma baita abertura. Quando eu tinha que optar para a faculdade, queria ser ator. Mas não podia, por causa da Ditadura Militar. Então eu pensei: vou ser cenógrafo. Assim me aproximava do cinema, do teatro e da arquitetura também, que é um cenário bem feito. Agora, olho para vários cadernos de desenho e anotação e penso, poxa, você tem uma trajetória. E continuo traçando meu caminho, resistindo e propondo novas formas de viver.
Com a pandemia alguma coisa mudou no modo de vocês criarem?
Acho que consolidou a forma como olhamos para nossa trajetória, nosso legado. Eu e Humberto fizemos uma retrospectiva na exposição “35 Revoluções”, no MAM do Rio, que abriu poucos dias antes da pandemia, fechou, e reabriu meses depois, que já apontava para esse novo olhar.
Para onde você vai quando está em Brotas?
Tenho meus refúgios, riozinho, uma cachoeira. A propriedade que temos lá que nosso pai nos deixou. E graças a Deus meu pai tinha um senso de preservação, ficou um bosque. Tem a passagem do rio Jacaré onde as pessoas fazem rafting. O Humberto e eu estamos mantemos isso porque mudou muito a paisagem no interior. Nossa ideia é que outras propriedades rurais de pequeno porte criem o mesmo ambiente. Já está acontecendo. Mas o Brasil infelizmente vive uma contramão disso. Vamos e convenhamos. Artistas precisam falar.
Para onde precisamos olhar hoje em dia?
Vejo uma reeducação. Desde o espaço físico, que pode ser exíguo. Em Brasília, tenho um espaço pequeno e vi que com pouco, eu vivo muito, até mais do que eu vivo em São Paulo. Precisamos trazer a memória afetiva para dentro de casa. O meu olhar é de preservação, cinema, cultura em geral. Precisamos também olhar para a educação primária.
Você aprendeu várias línguas desde cedo. Já queria sair para o mundo?
Sempre quis. Meu sonho era ser comissário de bordo. Até fui chamado porque falava francês e inglês. Até que um belo dia o Humberto me convidou: você não quer me ajudar? Comecei a fazer a nota fiscal das entregas de artesanato de toda São Paulo. Já tinha um senso de bom gosto. Até hoje a gente tem uma relação acima de tudo de cumplicidade. Somos irmãos e como irmãos brigamos bastante. Na cumplicidade nós temos um outro respeito. Quer dizer, não é que brigamos… é que são 40 anos juntos. Um casamento sem sexo.
Como vocês organizam isso? Estou falando de duas mentes visionárias. Olhando de fora enxergamos uma autoria única. Como fazer para criar uma marca de dois, sendo que são dois?
Ainda existe a complementação. Por vezes um tem a visão mais técnica e outro mais poética. E vice-versa. Cada um também tem sua criação. Eu adoro fazer aquarela, colagem, pequenas esculturas. O Humberto é mais low tech, gosta de artesanato, se envolve com jardinagem e arquitetura. E os dois adoram o surrealismo. O surrealismo sempre viveu ao nosso lado. Não sei de que forma porque Brotas não é uma cidade surrealista, né. Mas de perto, entre aspas, ninguém é normal.
O surrealismo sempre viveu ao nosso lado. Não sei de que forma porque Brotas não é uma cidade surrealista, né? Mas de perto, entre aspas, ninguém é normal.
Fernando Campana
Surrealismo em Brotas não estou conseguindo imaginar.
Através de insetos totalmente estranhos. De sonhos, uma lua cheia com a de ontem. Acordar e sonhar com outra realidade. Apesar de estar vivendo uma realidade mais rural, mais pé no chão. De ir ao cinema e ver o cinema como uma janela para o mundo. Assistir Polanski, Kubrick, Bertolucci. Eu ia ver tudo e não tinha idade ainda, né. Eu vi “Teorema” (Pasolini) com meu pai, minha mãe e a babá.
O surrealismo então está na sua cabeça. Não importa o território, vocês carregam essas visões de mundo gigantes.
Exatamente. Recentemente, teve no Centre Pompidou Metz uma exposição sobre Giuseppe Arcimboldo, teve presença surrealista nossa lá. O que fazemos com brinquedos, transformamos em esculturas, objetivos. A cadeira Vermelha é a solução da matéria, do sentar. A de bichos de pelúcia dá o nome. Banquete que seria um processo de relatar um processo natural de um ser antropofágico.
Vocês misturam necessidades reais com necessidades surreais.
Acho que isso é que é importante: ligar a poesia à função, a forma. E, lógico, adequar mais ao custo. Algumas são edições limitadas e outras já, finalmente, conseguimos colocar em produção industrial, com a coleção “Blow Up para a Alessi. São cestos só de bastões, que, olha lá a influência, têm nome de filme.
Quando você pensa em algo que vocês fizeram e te realiza, o que vem em mente?
Emoção. E humor.
Cita pra gente uma obra que te faça sentir que realmente deixarão um legado.
O humor da cadeira Banquete. A emoção de um trabalho que fizemos para ajudar na reconstrução de Mariana, feito lá no Vale do Jequitinhonha, o cobogó “Mão”.
Uma última pergunta: qual sua rotina básica? Que horas toca seu despertador?
Eu acordo 4h30 da manhã, naturalmente. Tomo muita água. Começo a assistir os jornais, leio. Quando dá vontade desenho alguma coisa. Aí tem a rotina do estúdio, que não é rotina graças a Deus. E vou dormir um pouco tarde, meia-noite. Não tenho rede social, só uso whatsapp e telefone. Invento meus emojis pois acho que as pessoas têm que criar com humor. Porque loucura pouca é bobagem.