“Viver no Catar era uma tortura”, diz catariano que se assumiu gay
No país que recebe a Copa 2022 é crime ser gay, lésbica, bissexual ou transgênero e sexo extraconjugal, incluindo entre pessoas do mesmo sexo, pode ser punido com até sete anos de prisão.
“É difícil ouvir o governo do Catar dizer: ‘Claro, todos serão bem-vindos no país’, quando eu não sou bem-vindo na minha própria casa”, diz Nasser Mohamed, o primeiro catariano a se assumir gay publicamente. Médico, Mohamed vive desde 2015 em São Francisco, nos EUA, país que lhe concedeu asilo por entender que ele corria risco no Catar simplesmente por ser gay.
No país que recebe a Copa 2022 é crime ser gay, lésbica, bissexual ou transgênero e sexo extraconjugal, incluindo entre pessoas do mesmo sexo, pode ser punido com até sete anos de prisão.
Mohamed anunciou ao mundo sua orientação sexual em maio por estar incomodado com a imagem que o Catar vinha tentando vender. “Tem um marketing sendo feito para a Copa que não está passando a imagem real do que acontece com as pessoas LGBT+ no país”, diz ele.
“Falei publicamente sobre mim para dar voz à nossa comunidade, trazer nossa perspectiva, porque temos medo até de falar. No começo do ano, soava como se pessoas LGBT+ não existissem lá. Eles (o governo) falam que gays serão bem-vindos, que a sociedade é tolerante. Isso não é verdade. É uma sociedade violentamente homofóbica. Isso precisa ser conhecido.”
Alvo de fúria
Desde que começou a conceder entrevistas sobre sua orientação sexual para veículos internacionais, Mohamed passou também a ser alvo de ataques na internet, conta. “Eles variam de ameaças de morte a bullying online.”
O médico diz temer que o governo faça algo contra ele, sobretudo depois do Mundial. “Honestamente, não sei o que podem fazer. Os movimentos deles são imprevisíveis e o alcance é grande. Estão conectados com políticos e pessoas ricas em todos os lugares, pessoas que estão dispostas a fazer qualquer coisa por eles.”
Mohamed, entretanto, acredita que, enquanto a Copa durar, estará relativamente seguro. Isso porque, ao falar com a imprensa internacional, ele começa a se tornar conhecido globalmente. “O Catar se preocupa muito com sua imagem. Como tem muita gente prestando atenção em mim agora, eles não vão me machucar. Meu desafio é conseguir continuar seguro depois da Copa.”
A preocupação de Mohamed pode parecer ser exagerada para pessoas que não conhecem o Catar, mas, segundo a ONG Human Rights Watch (HRW), há denúncias de casos no país em que o Departamento de Segurança Preventiva prendeu e espancou arbitrariamente pessoas LGBT+. Uma mulher trans afirmou à HRW que apanhou até perder a consciência. Outra, que foi mantida em uma solitária por dois meses. Cinco pessoas reportaram à ONG que, entre 2019 e 2022, foram vítimas de assédio sexual enquanto estavam presas. Foi Mohamed quem ajudou a HRW a entrar em contato com parte dessas pessoas.
Esses catarianos, ainda de acordo com a HRW, tiveram de se comprometer a participar de sessões de “terapia de conversão” e assinar documentos em que afirmavam que cessariam “atividades imorais”. Não tiveram direito a defesa e não receberam nenhum registro de que haviam sido presos.
Repressão
Uma mulher trans que contou sua história para a ONG afirmou que foi detida em uma rua de Doha, com policiais a acusando de “imitar mulher”. Um homem gay disse ter sido preso após ser vigiado pela polícia na internet. “As vítimas dizem que o governo prende pessoas com base em suas atividades online, uso de aplicativos de relacionamento, mensagens. Não sabemos a extensão e a capacidade de vigilância, tudo indica que é ampla”, diz a diretora da HRW no Brasil, Maria Laura Canineu.
Por e-mail, um oficial do governo afirmou ao Estadão que “nunca houve relatos de violência contra pessoas com base em seus antecedentes ou crenças”. Disse também que o país é “relativamente conservador” e valoriza “a privacidade e o respeito, valores que são estendidos a todos.”
“O sistema legal do Catar protege os direitos de todas as pessoas e garante procedimentos jurídicos de acordo com a lei. Isso inclui aconselhamento jurídico e julgamento justo para todos”, destacou.
Procurado pelo Estadão, o governo catariano reforçou que o país é “inclusivo e acolhedor” e tem uma “cultura de hospitalidade calorosa”. “Nosso histórico de sucesso em sediar centenas de eventos internacionais demonstra isso claramente, e a Copa do Mundo de 2022 não será diferente.”
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