Tensão no Irã: o que está acontecendo no país que reflete no time na Copa do Catar
A caminho para do Mundial, houve apelos para que o país fosse expulso do torneio; seleção se recusou a cantar o hino nacional na estreia
Nos últimos meses, o futebol no Irã foi cercado de pequenos atos de desafio contra o regime em meio a protestos generalizados no país. A recusa do craque Sardar Azmoun em celebrar o empate contra o Senegal e o movimento de vários jogadores mudando suas fotos de perfil de mídia social para preto são dois exemplos. Como tudo no Irã, o futebol tem sido afetado pelos protestos, caos e violência que convulsionam o país e ameaçam a própria natureza do regime que está no poder há mais de 40 anos.
Foi no meio dessa agitação que a seleção iraniana viajou pelo Golfo Pérsico até o Catar, onde enfrenta dois dos rivais geopolíticos mais ferozes do país, a Inglaterra e os Estados Unidos, que estão em busca de vitórias. No Irã, muitos chamam os dois países de “Velha Raposa” e o “Grande Satanás”, respectivamente. O jogo contra a Inglaterra, nesta segunda-feira (21), terminou em 6 a 2 para os ingleses.
“Como esse time pode viajar e jogar quando deveria ser uma equipe nacional, um representante do povo?”, questionou Peyvand Mossavat, ex-jogador de futebol canadense nascido no Irã e agora treinador, à CNN.
No caminho para a Copa do Mundo no Catar, houve apelos para que o Irã fosse expulso do torneio. Na estreia contra a Inglaterra nesta segunda-feira, em uma aparente demonstração de apoio aos manifestantes em casa, o time optou por não cantar o hino nacional.
Com o time estreando com derrota para Inglaterra no segundo dia do torneio, todos os olhos estavam em seus jogadores – e as conversas iam muito além do futebol.
Citados por especialistas como os mais significativos desde o estabelecimento do governo teocrático após a Revolução Iraniana de 1979, os protestos foram provocados pela morte de Mahsa Amini,, uma jovem de 22 anos que faleceu depois de ser detida pela polícia da moralidade iraniana. Ela não estaria cumprindo o código de vestimenta conservador do país.
O que começou como um clamor pelos direitos das mulheres se transformou em um movimento, ainda impulsionado pelas mulheres, exigindo o fim de um regime que “as pessoas não acreditam mais; [e um regime] é reformável’, disse Abbas Milani, diretor de estudos iranianos da Universidade de Stanford, à Christiane Amanpour, da CNN, no início deste mês.
“Eles querem um contrato social diferente sem que o clero reivindique seu direito divino”, disse o especialista.
As forças de segurança iranianas desencadearam uma resposta violenta, matando pelo menos 378 pessoas, segundo a ONG Iran Human Rights NGO (IHRNGO), com sede na Noruega. Uma autoridade da ONU diz que 14 mil pessoas foram presas em todo o país, incluindo jornalistas, ativistas, advogados e professores.
A CNN não pode verificar de forma independente esses números, pois a mídia não estatal, a internet e os movimentos de protesto no Irã foram todos suprimidos. Os números de mortos variam de acordo com grupos da oposição, organizações internacionais de direitos e jornalistas que rastreiam os protestos em curso.
Esporte número um
O futebol é o “esporte número um” no Irã, diz o técnico canadense Mossavat, nascido no Irã, dando ao time uma plataforma muito poderosa para expressar seu apoio aos manifestantes.
No passado, a seleção nacional era sido vista como mais representativa do povo iraniano do que o próprio regime, como contou à CNN Omid Namazi, treinador assistente da seleção iraniana de 2011 a 2014.
Tanto é que, quando a conta do Twitter da Copa do Mundo da Fifa postou imagens dos jogadores iranianos sorrindo e se divertindo em uma sessão de fotos antes do torneio, choveram críticas nas redes sociais.
“Estou tão decepcionado, tão desanimado com eles”, escreveu o jornalista de futebol iraniano Sina Saemian.
“A falta de senso comum, a falta de empatia e insensibilidade mostradas nessas imagens é genuinamente desanimadora. A foto posada é obviamente uma exigência da Fifa, mas as poses não são. Há uma clara ausência de qualquer senso de consciência”.
Embora o seu atacante mais famoso, Azmoun, tenha demonstrado apoio aos manifestantes, Namazi diz que muitos dos outros jogadores da seleção nacional permaneceram relativamente quietos, “deixando um gosto amargo”.
“A percepção mudou realmente sobre os jogadores, sobre a própria seleção nacional”, acrescentou. “As pessoas chamam a seleção de equipe da República Islâmica e não a equipe nacional do povo do Irã”.
Azmoun, que joga pelo time alemão Bayer Leverkusen, fez vários posts nas redes sociais e mudou sua foto de perfil para preto em apoio aos manifestantes. A atitude, segundo o próprio jogador, poderia ter lhe custado um lugar na equipe da Copa do Mundo.
“Isso vale a pena sacrificar por um fio de cabelo feminino iraniano”, escreveu nos stories do Instagram. “Que vergonha de vocês que matam as pessoas tão facilmente. Viva as mulheres iranianas”.
Azmoun foi finalmente selecionado para jogar no Catar, mas a Iranwire, uma agência de notícias da oposição, informou que o treinador da seleção masculina, o português Carlos Queiroz, estava sob pressão do Ministério do Esporte do Irã para deixá-lo de fora da escalação.
Protestar na Copa do Mundo, o maior palco mundial do futebol, traz riscos potencialmente enormes para os jogadores atuais da seleção nacional.
“Os jogadores estão sob muita pressão do governo. Isso afeta seus meios de subsistência, seu futuro, seus ganhos”, lembrou Namazi, que foi treinador da seleção de 2011 a 2014.
No entanto, os jogadores terão liberdade para protestar na Copa do Mundo, desde que não violem as regras da FIFA, disse o técnico Queiroz.
“Não sei se eles farão alguma coisa”, contou o torcedor iraniano Payam, que não deu seu sobrenome por razões de segurança.
“Estamos todos esperando que eles façam alguma coisa. Se não, vai voar um ovo grande na cara deles, sinceramente”.
O zagueiro Ehsan Hajsafi foi o primeiro membro da seleção nacional a falar na Copa do Mundo em aparente apoio aos manifestantes antigoverno. “Elas devem saber que estamos com elas. Que nós as apoiamos. E simpatizamos com elas em relação às condições”, disse a repórteres, de acordo com a Reuters, no domingo (20).
A CNN procurou a Fifa sobre sua posição sobre possíveis protestos de jogadores, mas ainda não recebeu uma resposta.
O ex-jogador Ali Daei, um grande ídolo do futebol no Irã, apoiou publicamente os manifestantes e se recusou a participar da Copa do Mundo.
Por sua vez, o jogador de futebol de praia Saeed Piramoon fez um gesto imitando cortar os cabelos, sinalizando seu apoio aos manifestantes, depois de marcar o gol vencedor na final da Copa Intercontinental de Futebol de Praia. A equipe dele não cantou o hino nacional iraniano antes da partida – mesma atitude da seleção no jogo desta segunda.
As autoridades do futebol do Irã prometeram que “pessoas que não seguiram a ética profissional e esportiva serão tratadas de acordo com os regulamentos”, segundo um comunicado publicado pela Federação de Futebol do Irã após o jogo de futebol de praia.
“Tenho arrepios só de falar da coragem que é necessária”, afirmou Mossavat, o ex-jogador que hoje vive no Canadá. “Toda a equipe foi procurada no aeroporto por não ter celebrado”.
Um vídeo publicado na BBC Persian mostrou jornalistas impedidos de falar com o time de futebol de praia quando ele chegou no Aeroporto Imam Khomeini, em Teerã. A CNN não pôde verificar o vídeo.
A construção da Copa do Mundo tem sido dominada por discussões em torno dos direitos humanos, que envolvem desde a morte de trabalhadores migrantes e as condições que muitos sofreram no Catar aos os direitos LGBTQIA+ e das mulheres.
Em outubro, o site The Athletic informou que a Inglaterra – primeira adversária do Irã – não tinha planos de “demonstrar publicamente sua solidariedade” aos manifestantes iranianos. Falando à CNN, um porta-voz da Associação Inglesa de Futebol disse: “Estamos cientes dos protestos no Irã e acompanhando a situação. É obviamente preocupante, mas as melhores pessoas para comentar sobre isso são o povo iraniano”.
A CNN também contactou as federações do País de Gales e dos EUA, equipes que também estão no grupo do Irã, mas ainda não recebeu resposta.
Mostrar ao mundo
Na sequência dos protestos e das violações dos direitos humanos que ocorrem no Irã, vários grupos dentro e fora do país pediram à Fifa que a proibisse da Copa do Mundo.
Em outubro, um grupo de atletas iranianos proeminentes pressionou a Fifa por meio de um escritório de advocacia, instando-a a suspender a Federação Iraniana de Futebol (FFIRI) e proibindo-a de participar da Copa do Mundo.
“A brutalidade e a beligerância do Irã em relação ao seu próprio povo chegaram a um ponto crítico, exigindo uma desassociação inequívoca e firme do mundo do futebol e do esporte”, afirmou um press release emitido junto com a carta.
Ao conjunto de atletas uniu-se o grupo de direitos humanos Open Stadiums, que se descreve como “um movimento de mulheres iranianas que procuram acabar com a discriminação” e permitem que elas frequentem estádios de futebol.
“A FA iraniana não é apenas cúmplice dos crimes do regime: é uma ameaça direta à segurança das torcedoras no Irã e onde quer que nossa seleção nacional jogue no mundo”, escreveu o grupo em uma carta aberta à Fifa em setembro.
A Federação Ucraniana de Futebol também pediu à Fifa que “considere excluir” a seleção nacional do Irã, citando as “violações sistemáticas dos direitos humanos” lá e “o possível envolvimento do Irã na agressão militar da Rússia contra a Ucrânia”.
A CNN contactou a Fifa e a FFIRI para comentar os pedidos para que o Irã fosse banido da Copa, mas, até o momento da publicação, não havia recebida nenhuma resposta.
O presidente da Fifa, Gianni Infantino, defendeu a participação do Irã na Copa do Mundo do Catar de 2022 em sua coletiva de imprensa pré-torneio, dizendo que “duas equipes de futebol” se enfrentam nas partidas, e não “dois regimes” ou “duas ideologias”.
Infantino lembrou aos jornalistas o papel da Fifa como organização, dizendo que “não somos as Nações Unidas. Nós não somos a polícia mundial. Nós não somos… Eu não conheço os capacetes azuis”.
Saman Ghoddos, o único jogador do Irã a jogar na Premier League inglesa, e que apoiou publicamente os protestos, também acredita que o Irã deve competir na Copa do Mundo.
“Eu ouvi essa conversa e não sei se é a direção certa”, afirmou em outubro. “Porque sempre acho que o futebol deve estar fora da política e não deve estar envolvido nisso”.
“Embora não pense que seja o certo expulsar o Irã da Copa do Mundo, talvez possamos colocar uma luz e mostrar às pessoas o que está acontecendo”, completou.
Para Mossavat, a Copa do Mundo parece estar operando em uma realidade alternativa aos protestos que se desenrolam em seu país de origem.
“Enquanto isso está acontecendo, não consigo ver as pessoas muito empolgadas [com a Copa do Mundo] com gente nas ruas lutando pela liberdade”, pontuou Mossavat. “Acho que vai ser difícil animar as pessoas”. De acordo com o que o técnico Queiroz escreveu no Twitter, a seleção está buscando trazer “alegria, felicidade e orgulho” para os torcedores do Irã.
“Ele tem a audácia de sair a público para dizer: ‘Ah, nosso trabalho é entreter as pessoas e fazer as pessoas felizes’. Que pessoas você está fazendo feliz?” atacou Mossavat.
“Os pais de Mahsa Amini ou [os pais] de Navid Afkari podem ficar felizes, ficar alegres de verem vocês jogando futebol? Isso é impossível”.
Afkari, mencionando acima, foi um famoso lutador iraniano que foi executado pelo governo no Irã em 2020 por um crime que, segundo ativistas de direitos humanos, sua família e amigos, ele não cometeu.
O futebol parece de menor importância na sequência do luto que os iranianos têm experimentado nos últimos meses.
“Quando você sabe o que está acontecendo, é muito difícil priorizar o futebol”, acrescentou Ghoddos. “É muito difícil e o futebol vem em segundo lugar porque são vidas que estão sendo perdidas lutando pela liberdade”.
Quando a seleção de futebol do Irã estiver em campo na Copa do Mundo, completa com hinos nacionais, bandeiras e como uma manifestação visível do próprio país, estará em jogo mais do que o progresso para as fases eliminatórias – o momento vai se misturar com a luta pelo futuro do Irã.
(George Ramsay, Angus Watson, Sophie Jeong, Don Riddell, Artemis Moshtaghian, Adam Pourahmadi e Jonny Hallam, da CNN, contribuíram com a reportagem)