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    Pai do Kung Fu no Brasil, Mestre Chan ensinou arte marcial no país desde 1960

    Grão-Mestre, Chan Kwok Wai foi responsável por trazer arte marcial chinesa ao Brasil e deixa legado histórico

    Leandro Iamincolaboração para a CNN

    No último dia 17 de janeiro, em São Paulo, Chan Kwok Wai morreu, aos 87 anos, sem dor e, de acordo com a família, de causas naturais.

    Mais de metade da vida de Chan foi vivida no Brasil, onde chegou jovem e plantou uma semente que modificou sua vida: o Kung Fu, arte da qual ele é, no país, considerado o pai e Grão-Mestre. Tanto que os praticantes da modalidade consideram a data de chegada de Chan ao Brasil como o dia do Kung fu.

    A data em questão é 11 de abril de 1960 – e não há qualquer registro anterior da prática no país. Chan Kwok Wai, chinês de Guangdong, sul do país, se instalou com a família em Hong Kong (a 120km de onde nasceu) antes de cruzar o mundo. Ele tinha acabado de completar 24 anos de vida quando desembarcou no continente americano.

    A diáspora chinesa dos anos 50 (Em 1949, a República Popular da China foi proclamada pelo Partido Comunista), época na qual nativos chineses se espalharam pelo mundo, impactou, entre outras regiões, São Paulo, onde Chan chegou sem a família, fincou os pés e recomeçou a vida. Na bagagem e no coração, técnicas de Kung Fu.

    A bagagem

    Seu início na arte marcial foi escrito com um toque de picardia e outro de vocação natural. O treino do Kung Fu não era permitido para crianças, mas, escondido, o pequeno Chan Kwok Wai assistiu e assimilou o conteúdo de Chan Cheok Sing, renomado mestre em uma vila de Taishan. Quando descoberto, perto dos cinco anos de idade, ao invés de um corretivo, ganhou o estímulo do professor, que ficou encantado com o domínio da arte por parte do menino. Ele se tornou pupilo de Sing.

    Após se estabelecer em São Paulo, Chan ajudou a criar o Centro Social Chinês, no bairro da Liberdade. O Grão-Mestre usou as dependências do lugar por cerca de uma década, até que, em 1973, inaugurou a Academia Sino-Brasileira de Kung Fu, no bairro da Barra Funda, São Paulo – hoje é sediada no bairro de Pinheiros.

    Em 2004, foi reconhecido como 10 grau (máximo) pela Organização de Mestres de Wu Shi e Kung Fu, em Vancouver, em cinco estilos: Shaolin do Norte, Yan Taiji, Bagua, Xingyi e Hung Sing Choy Li Fut.

    “Até o início da pandemia ele não deixava de ir todo dia à academia. Muitas vezes eu, dando aula, me sentia cansado, mas só de olhar para o mestre reabastecia o ânimo”, recorda Marcus Vinicius Alves, secretário geral da Confederação Brasileira de Kung Fu Wushu (CBKW).

    No Brasil, sua didática foi marcada pela disciplina e pelo exemplo. De personalidade forte e palavras muito bem planejadas, não era preciso longos discursos para se fazer entender e respeitar. Marcus Alves faz outra lembrança: “Me recordo de ouvir sempre o mestre dizer: ‘Se você treinar, a técnica passará a ser sua também. Senão, ela continuará sendo só minha.’”

    Jorge Jefremovas, professor e proprietário da Escola Jing Wu, também se lembra de outra característica de Chan: a atividade. “Nos anos 90, convidei o Mestre Chan para participar da mesa de honra de um evento e Curitiba. Ele ficou sentado na mesa e achei que estava confortável. Mas depois ele me repreendeu, pois queria se movimentar, não queria ser apenas uma referência sentada. Ele gostava de ensinar, não de ser homenageado”.

    A primavera

    Chan Kwok Wai não foi, naturalmente, o único a viajar ao Brasil com conhecimentos marciais. No entanto, para ele e os outros, o mais elementar obstáculo se impunha de início: nos primeiros anos só era possível, por limitações idiomáticas, dar aulas para a própria comunidade chinesa. Conforme, com o tempo, Chan aprendeu o português – e os brasileiros assimilaram a presença chinesa -, abriu as aulas para os nativos e aumentou o alcance de seu legado. Mas nada se compara ao alcance de um gênio do cinema.

    Embora Bruce Lee tenha morrido em 1973, seus filmes continuaram publicados e rodando o mundo. O legado de Bruce Lee se transformou em febre póstuma, e novos filmes foram lançados até 1981. Esta foi uma década particularmente especial para a relação entre China e Brasil. Os anos 80 de um cidadão médio foram vividos com Bruce Lee semanalmente na TV das famílias. O Kung Fu viveu a sua primavera no país.

    “Os filmes de Kung Fu, as academias de artes marciais e a comida chinesa são as maiores portas de entrada da nossa cultura para o mundo. É comum ver quem assiste um filme, procura uma academia e depois estuda mandarim e até visita a China”, garante o professor Ye Xin, especialista no estilo Shaolin do Norte e aluno do Grão-Mestre Chan.

    O pico no interesse e a difusão dos gestos da arte marcial causaram até o fortalecimento institucional da modalidade. Não é um acaso que, em 1992, após alguns anos de atividade informal, a CBKW tenha sido fundada. Em três décadas de vida, a entidade posicionou o Kung Fu brasileiro nos espaços formais de exibição e competição em escala nacional e internacional. Herança do impulso dos anos 80.

    Com registros mais sólidos e agenda interligada, o Kung Fu, a partir dos anos 90, colheu os frutos deste público novo ao mesmo tempo em que Grão-Mestre Chan se consolidava como a referência maior da prática não só no Brasil, mas no continente americano, por onde as ramificações da arte marcial já cruzavam.

    O Shaolin do Norte

    O que mais caracteriza o estilo de Kung Fu Shaolin do Norte são os movimentos fluídos, os socos longos e um vasto repertório de chutes e rasteiras. É, também, uma modalidade que envolve muitas armas brancas como adagas e espadas. O estilo era a especialidade de Chan Kwok Wai.

    O Shaolin do Norte é uma prática cujo nome homenageia o templo onde foi criado, no norte do território chinês. Este templo era um dos mais importantes cenários da arte marcial que se tinha notícia, e foi criado em 1495. Como base de comparação, isso foi pouco antes dos portugueses chegarem ao Brasil.

    Cinco séculos depois da criação do templo, Chan respondia por este estilo, que não era o único, mas o principal de seu repertório. O Shaolin do Norte, inclusive, serve de registro dos primeiros movimentos de sua família: no tempo em que Chan viveu em Hong Kong, foi lá que procurou e teve aula com o Mestre Ma Kim Fong. Fong foi quem sofisticou e aumentou ainda mais o repertório de Chan no Shaolin do Norte.

    “É difícil medir em números, mas o Shaolin do Norte é talvez o que mais se difundiu geograficamente e em tradição no Brasil”, afirma Ye Xin. Do Acre ao Rio Grande do Sul, passando por Manaus e Mato Grosso, de fato, o Shaolin do Norte está formalmente representado com pegadas de Chan Kwok Wai.

    A partida

    Mestre Chan comemorou o seu último réveillon absolutamente lúcido e comunicativo, planejando inclusive fazer atividades fora de casa. No entanto, sua condição inspirava cuidados para além das aparências.

    Mestre Chan usava, há algum tempo, um tubo de oxigênio — um enfisema pulmonar comprometera sua independência respiratória. Durante toda a pandemia, Chan se afastou da vida social e de sua grande paixão: a academia onde construiu o seu legado. Ali estava, inegavelmente, o seu ar.

    A academia ficou fechada. Para manter o organismo do Kung Fu ativo, os filhos de Chan deram aulas online, como mandavam as normas sanitárias. Sem a ida diária à academia (que agora serve, a quem ficou, como um templo que atesta e afirma o seu legado), Chan Kwok Wai pode não ter dado as aulas que o consagraram. A solenidade e o imenso respeito com que sua morte foi tratada pela comunidade das artes marciais, contudo, é o máximo que um mestre pode querer.

    Chan Kwok Wai deixou cinco filhos e sete netos, além de 3 bisnetos e seu legado nas artes marciais.

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