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    Entenda como Diego Maradona redefiniu o futebol em menos de cinco minutos

    "La Mano de Dios" foi um dos fatores definidores da conquista da Argentina na Copa do Mundo de 1986

    Marcela Mora y Araujoda CNN

    Se a história do cinema já foi descrita como antes e depois de “E o Vento Levou”, pode-se argumentar que a história das Copas do Mundo também pode ser definida como antes e depois do jogo entre Inglaterra e Argentina em 1986 – na qual Diego Armando Maradona foi o grande protagonista.

    Não que a partida em si tenha mudado a forma como o futebol é jogado ou provocado um efeito duradouro sobre as regras e regulamentos do esporte – isso, aliás, aconteceu em outro jogo entre as duas nações, na Copa do Mundo de 1966, quando o volante argentino Antonio Rattin foi expulso pelo árbitro, mas se recusou a sair, alegando que não entendia inglês.

    A recusa de Rattin atrasou o jogo por tanto tempo que, na copa seguinte, em 1970, cartões amarelos e vermelhos foram introduzidos para indicar com clareza as punições de advertência e expulsão, no caso de faltas graves dos jogadores.

    Voltando a 1986, o que aconteceu no espaço de alguns minutos foi que tudo o que é possível num jogo de futebol se materializou ali, na frente de todos que assistiam, e feito por um homem. O bom e o mau, o feio e o belo, a ilegalidade e a perfeição: tudo aconteceu ali.

    O escritor argentino Juan Sasturain costumava dizer que a palavra “futebol” está errada, porque não se trata de um jogo praticado com o pé (foot, em inglês), mas de um jogo em que não se pode jogar com a mão. É quase a regra principal. No entanto, o primeiro gol da Argentina contra a Inglaterra foi marcado com a mão – mas, como nem o árbitro nem os bandeirinhas perceberam a transgressão, o tento foi confirmado.

    Foi a famosa “mão de Deus”, como Diego Maradona descreveu sua participação no lance com uma certa malandragem (e não blasfêmia), quase como uma criança culpando o irmão por roubar os doces. “Deve ter sido a mão de Deus”, Maradona riu, ao ser questionado pelos meios de comunicação logo após a partida.

    Foi um momento que surpreendeu o mundo. Um homem minúsculo supera o goleiro alto – Peter Shilton – saltando no ar com o braço esticado e dá um soco na bola na direção da rede. Tão chocante quanto injusto, o momento tenso só aumentou quando os torcedores, tanto no estádio como em suas casas, vendo pela TV, se perguntaram se o gol seria validado.

    Alguns comentários ao vivo sobre o jogo sugerem que ele não seria confirmado: “acho que ele toca a bola com a mão”, disse um; “isso é handebol?”, ironizou outro. Mas as autoridades em campo não anularam o ato e o gol ficou.

    Para os ingleses, foi uma injustiça gritante tão difícil de engolir que os apostadores da casa William Hill pagaram as apostas daqueles que puserem dinheiro no empate. Alguns minutos depois de enganar o árbitro com um gol embusteiro, o baixinho Maradona voltou a fazer uma jogada espantosa – mas, dessa vez, com tanta genialidade que resultaria no “Gol do Século”, como foi posteriormente votado numa enquete da FIFA.

    Maradona recebeu um passe do seu amigo de longa data, o meia El Negro Enrique, perto do meio do campo, e começou a enfileirar dribles como uma criança solta-se no potrero – o nome dado aos campos abertos argentinos onde as crianças correm com qualquer objeto que possa parecer uma bola, sujando-a, pendurando-se com ela, acariciando-a e dançando com a bola, sempre com a certeza de que ninguém vai tomá-la.

    Como se a bola estivesse de alguma forma presa ao seu pé esquerdo, ele passou por um, dois, três, sete jogadores ingleses e tocou para as redes. Cada oponente foi “deixado para morrer”, como descreveu um comentarista inglês na época, com um olhar atordoado, uma mistura
    do horror pelo que acontecia na cara deles e de admiração por testemunhar essa maravilha.

    Joe de Putter, cineasta holandês e autor de livros sobre futebol, descreveu a cena como o único milagre do século 20, e ele não estava brincando. “Não tem nada a ver com a guerra”. Os dois gols aconteceram e nós todos os vimos. Foram reais. E fizeram história.

    Muito tem sido dito desde então sobre eles, sobre o seu autor, e talvez tenhamos insistido em buscar algum significado adicional para o momento. Os dois países tinham uma longa tradição de rivalidade de futebol.

    Só que essa foi a primeira vez que se encontraram num estádio desde a Guerra das Falklands ou Malvinas, quatro anos antes. Muitos dos jogadores tinham, pelo menos do lado argentino, amigos ou familiares que tinham sido recrutados, talvez até tivessem perdido sua vida.

    A frase “isso não tem nada a ver com a guerra” foi repetida muitas vezes, o suficiente para instilar a noção de que, sim, o jogo poderia ter alguma coisa a ver com as hostilidades em 1982. Como os hinos nacionais foram cantados por jogadores de ambos os lados, alguns argentinos ostentaram um olhar guerreiro, uma dica de que aquele era o rival que eles particularmente queriam derrotar.

    “Ele destruiu as tropas de Sua Majestade sem outras armas, exceto o número 10 costurado em sua camisa”, canta “Maradó”, música lançada pela banda de rock argentina dos anos 90 Los Piejos.

    Há também uma quantidade significativa de textos e livros afirmando, de alguma forma, que na Argentina – onde se diz muitas vezes que o único crime é ser capturado –, as pessoas gostaram mais do primeiro gol do que do segundo.

    E é verdade que existe uma narrativa nacional que procura justificativa, talvez até mesmo perdão para o primeiro gol, racionalizando – talvez erroneamente – que as vítimas mereceram de alguma forma.

    “Foi como se a gente batesse a carteira de um inglês”, comparou Maradona, descrevendo seus sentimentos no rescaldo do jogo. Um amigo do craque, o músico Fabian Von Quinteiro, uma vez chegou a dizer: “O naufrágio do Belgrano foi também um gol de mão”, falou, fazendo referência ao cruzador da Marinha argentina, que foi, de forma controversa, afundado por um submarino britânico fora da zona de exclusão durante o conflito de 1982.

    Jorge Valdano, que jogou ao lado e tentou acompanhar Maradona na esperança de receber um passe, diria mais tarde: “No potrero, o segundo gol vale por dois”, como se as regras informais da pelada de rua devessem ter prioridade sobre as regras formais da Copa do Mundo.

    Outro jogador argentino, o meia Jorge Burruchaga, quando perguntado se viu o handebol do primeiro gol, disse a CNN: “Não. Eu estava no lado oposto, a uns 25 metros de distância, então eu não notei. Eu percebi [que algo acontecia] porque todos tinham cara de surpresa, e nós celebramos. Mas também depois disso veio um gol que, para mim, continua a ser o melhor da história da Copa do Mundo. Um gol que valeu a pena aquele com a mão e mais dois”.

    É como se os dois gols se desenrolassem num só, e a Argentina como um todo não pode pensar num sem o outro. Pergunte a qualquer
    argentino sobre a ‘mão’, e eles mencionarão a ‘finta’ na mesma hora. Reinvenção de uma fênix Maradona, o grande ídolo argentino morreu de insuficiência cardíaca em novembro de 2020.

    Será que ele foi o melhor jogador de futebol que já existiu? Será? Ele é sempre comparado com outros grandes. Será que foi melhor que
    Pelé, que Johan Cruyff? Ele chegou na esteira do maior da Argentina, Alfredo Di Stefano, e deixou a posição para o atual supremo mundial, Lionel Messi.

    Maradona é tão adorado que, quando os seus delitos fora do campo, para não dizer crimes, o deixaram muitas vezes à beira da morte,
    vigílias em massa surgiram em todo o mundo, desde Bangladesh até Nápoles, onde ele reinou no time local.

    Uma igreja foi aberta em seu nome. Há um museu dedicado a ele em Buenos Aires, localizado na casa onde passou a adolescência. Homens graúdos choram quando conseguem evocar as emoções que ele conseguiu despertar com seu talento indiscutível.

    Mas, curiosamente, quando as pesquisas de opinião são realizadas para escolher a melhor personalidade desportiva da Argentina na história, por exemplo, Juan Manuel Fangio sempre ganha facilmente.

    Nos anos após os dois gols que acabamos vendo como um único evento, a montanha-russa da vida de Maradona o colocou nas manchetes em várias ocasiões: ele subiu ao status de divindade e caiu da graça para os poços mais escuros imagináveis apenas para se levantar de volta.

    De um dos maiores escândalos de dopping do mundo numa Copa, a uma reinvenção semelhante a fênix como o gestor encantador de sempre a embelezar o jogo, as suas questões pessoais com dependência, abuso de substâncias, filhos ilegítimos e dívidas são poucas em comparação com a sua enorme personalidade.

    Quando ele apresentou um programa de TV, foi o mais incrível e surreal que alguém já tinha visto. Quando ele entrava num ambiente, as pessoas se punham em posição cerimoniosa. Poder. Encanto. Talento. E a capacidade de ser visto como frágil, vulnerável e imperfeito ao mesmo tempo.

    Uma contradição ambulante que, de alguma forma, valida a própria contradição; nos dá permissão para aceitar nossa própria humanidade, nossas falhas, nossos desejos indesejáveis. Se Maradona foi ou não melhor que Pelé ou Cruyff não é o ponto.

    Ele foi realmente único, e a prova literal disso pode ser vista nos dois gols que marcou contra a Inglaterra em 1986.

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