Bolha sanitária, mas não política: Jogos expõem o xadrez das nações e fronteiras
Como de costume, as Olimpíadas escancaram questões que ganham outra repercussão quando aparecem em meio às disputas esportivas
Krystsina Tsimanuskaia criticou o Comitê Olímpico de seu país, Belarus, quando se viu inscrita no revezamento 4×400 m. A velocista correu os 100 m rasos, ainda tinha os 200 m rasos na programação e questionou o porquê de ter sido escalada em uma prova para a qual não foi avisada. Ela conta que, em represália, os dirigentes a cortaram das Olimpíadas de 2020 e queriam levá-la de volta para Minsk. A atleta pediu ajuda ao Comitê Olímpico Internacional, à polícia japonesa e, já no aeroporto para ser enviada para casa, temendo ser punida em seu país, mudou a rota: com visto humanitário, foi parar num refúgio na Polônia.
Uma atleta internacional, nos dias do evento mais importante de sua vida, vai da pista do Estádio Olímpico de Tóquio à proteção, junto do marido, em um país vizinho ao seu. De Belarus, ela recebeu notícias nada animadoras de sua família. Na TV, circulava que Tsimanuskaia tinha sérios problemas psicológicos e por isso estava desligada dos Jogos. Era melhor não voltar.
Belarus é um país de cerca de dez milhões de habitantes, emancipado da União Soviética desde 1991. Quando, nas Olimpíadas de 1992, a legenda CEI (Comunidade dos Estados Independentes) aparecia na tela, Belarus fazia parte dela. Desde sua independência, pouco do noticiário deste país, em regime autoritário estabelecido há décadas, ganha espaço em nosso cotidiano informativo.
Como Belarus, muitos outros países, estados, regiões e fronteiras pelo mundo vivem conflitos, impasses e dramas diplomáticos que não podem ser suspensos em nome de uma competição poliesportiva. A ignorância não é negligência: o mundo produz mais terror do que cabe no noticiário, assim como as Olimpíadas têm mais jogos do que conseguimos assistir.
Tóquio 2020 foi, de partida, um desafio diplomático peculiar, dado o momento de relativa suspensão no trânsito internacional que a pandemia impôs ao planeta. A Covid-19 criou uma nova camada de diferenças estruturais e divergências políticas entre regimes, ao mesmo tempo que os parâmetros esportivos corriam risco de serem deformados.
Tudo isso com prejuízo econômico, pressão de patrocinadores e um cenário de fragilidade política que desabilitou o Comitê Olímpico Internacional do simbólico cargo de promotor de uma mensagem de paz e união entre povos. O COI já estava embaraçado demais lidando com a suspensão, por dopagem sistêmica comprovada, de um país do tamanho da Rússia.
Nos Jogos do olhar para a parte falível e humana dos atletas e do debate mais dedicado ao indivíduo por trás da performance, as bandeiras e suas representações políticas não deram trégua. Tóquio 2020 foi também palco desse jogo geopolítico.
Terrenos espinhosos
Mohamed Abdalrasool, judoca do Sudão, se recusou a enfrentar o israelense Tohar Butbul por simpatia à causa palestina. Uma renúncia esportiva em nome de um posicionamento político.
Serge Katembera, doutor em sociologia pela UFPB, pesquisa novas mídias e ativismos digitais na África. Ele falou à CNN sobre casos como os de Abdalrasool e Tsimanuskaia. “Alguns podem achar que é um ato antiolímpico e vai contra os valores dos Jogos. Ao mesmo tempo, o exemplo dos atletas de Itália e Catar (no salto em altura, compartilhando a medalha de ouro) foi positivo. O esporte ocupa um espaço da vida social das pessoas, e as Olimpíadas têm contradições”, diz, lembrando que saudações militares são permitidas pelo COI, mas manifestações políticas no pódio são questionadas, como a da americana Raven Saunders [militante LGBT], do arremesso de peso, que cruzou os braços em forma de X sobre a cabeça para se colocar ao lado dos oprimidos. “Reprime atos que deveria, na verdade, encorajar”, completa Serge.
Filipe Nobre Figueiredo, professor de História e comentarista de política internacional, enxerga, em conversa com a CNN, o espaço para a conciliação. “A trégua olímpica vem da antiguidade, pelo aspecto de sacralidade que os Jogos traziam, e essa sacralidade já não existe, o evento não é mais sagrado. Mas o evento contribui como ferramenta de diálogo conciliador. Te ajuda a ver semelhanças no outro, por exemplo. A encontrar coisas em comum com povos distantes”. Mas também alerta: “O efeito contrário existe. Quando a temperatura sobe demais em uma esfera esportiva entre países, isso reflete na política também”.
O esporte constrói a ponte, mas não faz, sozinho, o mundo atravessá-la. Foi em um torneio de judô nos Emirados Árabes, por exemplo, que este país teve os primeiros diálogos com Israel, onde o judô é muito popular. Serve para a diplomacia oficial, serve para o público que acompanha o evento pela TV.
São mais pessoas de mais lugares praticando mais esportes. É ótimo em termos de exposição de mais pautas. O futebol feminino da Austrália entrou em campo com a bandeira aborígene, uma questão debatida dentro do país, e graças a isso se tornou questão internacional, dividiu espaço com pautas universais
Filipe Nobre Figueiredo, especialista em política internacional
De toda forma, pelo alcance midiático e por carregar milhões de fãs pelo mundo, ainda que a informação esteja em toda parte, o esporte faz com que questões de imigração ou racismo, por exemplo, cheguem mais rápido ao grande público.
Serge lembra como as seleções de futebol da França e da Alemanha puxaram esse debate recentemente. “O corredor da Itália que nasceu nos Estados Unidos, um jogador no vôlei do Brasil que é de origem cubana… Às vezes o Brasil se vê como algo muito grande, algo que é completo, e não olha muito para isso”, comenta, reforçando como o esporte brasileiro ainda parece um ambiente restrito, ou com menor interesse nesse tema, em comparação a potências esportivas — a Itália acaba de vencer a Eurocopa de futebol com três jogadores nascidos no Brasil no elenco.
Vale também para um alerta de como a cor da pele diferencia o tom da crítica destinada a esportistas por parte dos espectadores. Se as redes são tóxicas e violentas, há ainda o evidente componente racial. “É sintomático como é direcionado aos atletas negros. São os mais xingados na internet em todo o planeta, e o mundo do esporte não trata bem essa questão. O Rashford [jogador da seleção de futebol da Inglaterra], mesmo antes de perder o pênalti na final da Eurocopa, já era um dos mais xingados”, complementa Serge.
Xadrez político firme como sempre
O início dos Jogos Olímpicos tal qual hoje conhecemos se deu em 1896, em Atenas, e não surgiu apenas da vontade de praticar esporte, como lembra Filipe: “A Grécia havia recém se tornado independente do Império Otomano. Então os Jogos foram uma maneira de aumentar a simpatia internacional com a Grécia e aumentar o engajamento de potências europeias com aquele país. Quando a Grécia se torna independente, ela tem questões fronteiriças com a Turquia [ainda Império Otomano] e precisava de aliados, desejava ser bem vista. As Olimpíadas foram parte dessa política de projeção internacional grega”.
A diferença é a visibilidade. Quando ocorre o atentado terrorista nas Olimpíadas de 1972, não há estrutura adequada para transmitir aquilo ao vivo. Foi inédito para os padrões da época. Hoje a comunicação se dá direto do atleta para o público, e isso faz com que pareça que temos um esporte mais politizado
Filipe Nobre Figueiredo, especialista em política internacional
As dinâmicas atuais não são muito diferentes. Países usam sua estrutura esportiva para colecionar medalhas que levem ao mundo a imagem de uma saúde sócio-econômica que nem sempre possuem. Toda a disciplina esportiva busca no êxito mais do que só a imagem do indivíduo vencedor. Até por isso, casos que saem desse cercado servem tanto para o debate. “O esporte está tão político quanto sempre esteve”, define Filipe.
Vale a pena ser sede das Olimpíadas?
A pandemia voltou com força em Tóquio. Não que tivesse acabado por completo, claro, mas a cidade voltou ao estado de emergência, o Japão teve recordes de novos casos de Covid-19 e a variante Delta tem disseminado as infecções em nível “nunca visto no passado”, como disse o ministro da saúde do país.
Muitos japoneses se mostraram contrários à realização dos Jogos, enquanto o Comitê Organizador afirma que o aumento de contaminados não tem ligação com as disputas, reforçando que a Vila Olímpica possui um controle rigoroso nessa questão. Fato é que, nos próximos meses, esse debate permanecerá quente na medida em que o vírus continuar se espalhando.
Por outro lado, o país tentou prometer uma ideia de “Jogos da Reconstrução”, tanto pelo momento global de crise ecônomica e pandemia quanto pelos dez anos do desastre acontecido em Fukushima, uma sequência de terremoto, tsunami e acidente nuclear, em 2011. Inclusive o primeiro evento aconteceu exatamente na região, no estádio Fukushima Azuma, que recebeu partidas do softbol ainda antes da abertura oficial.
“Em 2016, muita gente era contra, houve protestos, passeatas, e as Olimpíadas aconteceram. Foi sensacional, uma festa, mas quando terminou, veio a catástrofe. Governador preso, dinheiro do Estado indo para o ralo, professores sem receber, quase que a Universidade Estadual do Rio de Janeiro precisa fechar por falta de recurso… O Rio passou por uma situação muito pesada porque o dinheiro foi drenado para as Olimpíadas. Então domingo termina, aí vamos ver”, diz a escritora Eliana Alves Cruz, que foi chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Esportes Aquáticos.
É uma contradição. Histórias bonitas, as metáforas que o esporte oferece para a vida, a grandiosidade de um evento sem igual. E o efeito que esse encontro causa para as contas e, desta vez, também para a saúde da cidade-sede. Os Jogos já aconteceram, e logo os olhos estarão para o legado, termo tão bem conhecido nos últimos anos do debate brasileiro.