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    Correndo como iguais: As atletas de elite que lutam pela aceitação

    Promessas como Annet Negesa e Maximila Imali, e a campeã olímpica Caster Semenya, foram impedidas de competir em razão do alto nível de testosterona no sangue

    Ivy Nyayieka, Christina Macfarlane e Jo Shelley, da CNN

    Como adolescente ambiciosa e determinada, Annet Negesa estimulava seu corpo a correr mais rápido – e seu corpo, sempre leal, a atendia. Mesmo antes de ter um treinador, Negesa, uma corredora de meia distância, já se classificava para (e vencia) as principais competições regionais.

    Aos 19, ela viajou para Daegu, na Coreia do Sul, para o Campeonato Mundial de 2011. Depois de garantir um dos três primeiros lugares nas categorias de 800 e 1.500 metros em quatro competições internacionais, a atleta de Uganda se classificou para representar seu país nas Olimpíadas de Londres de 2012.

    No ano seguinte, a jovem de Iganga, uma pequena vila no leste de Uganda, foi escolhida como “Atleta do Ano” pela Federação de Atletismo de Uganda e parecia determinada para uma vida com os holofotes do atletismo.

    Isso de fato aconteceu. Mas não da maneira que ela esperava. Muito se escreveu em todo o mundo sobre Negesa. Não só por causa de suas vitórias na pista, mas também por causa do que aconteceu com ela fora delas.

    Em agosto de 2011, durante o Campeonato Mundial, a atleta fez exames de sangue. De acordo com a Associação Internacional de Federações de Atletismo (IAAF, hoje conhecida como World Athletics), essa era uma exigência para todos os atletas que competiam naquele ano.

    Mas Negesa diz que nunca recebeu os resultados dos testes e, sem eles, a vida continuou normalmente, com treinos intensos para os Jogos de Londres.

    Foi enquanto estava na Europa, poucas semanas antes da competição, que Negesa recebeu um telefonema de seu empresário informando que não poderia mais competir na olimpíada.

    Segundo ela, o empresário explicou que as amostras de sangue revelaram níveis do hormônio testosterona em seu sangue que a IAAF considerou muito altos e que, por recomendação do órgão regulador do atletismo, ela precisaria fazer mais exames.

    O futuro brilhante de Negesa mudou rapidamente a partir desse ponto. Ela foi a um hospital especializado no sul da França, cujo nome foi fornecido pela IAAF. Lá, foi submetida a uma avaliação médica que envolveu novos exames de sangue e uma ressonância magnética.

    Mais uma vez, Negesa diz que não entendeu o que estava acontecendo, nem recebeu qualquer papelada. “Ninguém me deu conselhos, algo como ‘se você fizer isso, acontecerá tal coisa depois’. Ninguém me explicou quais eram as consequências.”

    Relatório de médicos em Uganda que impediu terapia com estrogênio de Negesa
    Relatório de médicos em Uganda usado para impedir Negesa de fazer terapia com estrogênio
    Foto: CNN

    A World Athletics contesta essa afirmação, dizendo em um e-mail que a “Sra. Negesa e sua equipe receberam os resultados dos testes realizados”. A organização também acrescenta que posteriormente avisou Negesa por e-mail “que era importante que um médico em Uganda a acompanhasse e lhe explicasse quais são as diferentes opções terapêuticas”.

    Em novembro de 2012, depois de ser levada para o Hospital Internacional de Mulheres e Centro de Fertilidade em Kampala, Uganda, a então jovem de 20 anos acordou da cirurgia e soube que seus testículos internos haviam sido removidos.

    “Acordei com cortes na barriga e fiquei me perguntando o que tinha acontecido comigo. O que fizeram comigo?”

    Negesa diz que entendeu que estava sendo tratada para hiperandrogenismo (os níveis naturalmente elevados de testosterona que seu corpo produzia) mas não havia autorizado a cirurgia. Ela conta: “Eles me deram a sugestão de fazer uma cirurgia simples ou usar uma injeção [para remover] o excesso de testosterona no corpo. Minha sugestão foi usar a injeção”.

    Um relatório médico, visto pela CNN, afirma que os médicos em Uganda “impediram-na de iniciar a terapia com estrogênio”, alegando que estavam “aguardando novas discussões” com um médico da IAAF.

    O estrogênio foi essencial para a recuperação de Negesa. O endocrinologista aposentado Peter Sonksen não tratou Negesa, mas observou a importância do estrogênio no tratamento de pacientes como ela.

    “Uma vez que os testículos são removidos, como neste caso, os níveis de testosterona e estrogênio no sangue caem para zero e a atleta fica ainda mais deficiente em hormônios do que uma mulher na pós-menopausa”, disse. “É essencial, portanto, fazer uma terapia de ‘reposição’ de estrogênio. Na sua ausência, a atleta sofrerá vários problemas que afetam a maioria dos sistemas corporais.”

    A World Athletics disse à CNN que “não teve envolvimento no tratamento de Negesa” e que “teria que pedir [ao médico em Kampala] para explicar a referência nesta carta”.

    Com dor e sem os cuidados posteriores necessários, o corpo de Negesa não pode funcionar como antes. Em um relato de sua história publicado pela Human Rights Watch, Negesa compartilhou que perdeu sua bolsa de estudos universitária, e depois seu empresário a abandonou.

    Também enfrentando a curiosidade pública sobre seu sexo, Negesa logo caiu em depressão, explicando que em Uganda, era muito difícil para uma pessoa como ela, “uma pessoa intersexual”. Em 2019, ela recebeu asilo do governo alemão.

    O que significa ser intersexual?

    Pessoas intersexuais têm variações naturais na anatomia reprodutiva, padrões cromossômicos ou outras características que podem não se alinhar com as definições binárias típicas de feminino ou masculino. Essas variações às vezes são chamadas de diferenças no desenvolvimento sexual (DDS).

    É difícil estimar quantas pessoas têm traços de DDS; muitas vivem suas vidas inteiras sem nunca saber que têm um. Cientistas estimam até 1 em cada 50 pessoas nasce com traços de DDS.

    Uma pessoa intersexual pode ter qualquer identidade de gênero – e pode ser cisgênero ou transgênero – dependendo do sexo que lhe foi atribuído no nascimento. A medicina moderna vê o sexo como um espectro com muitas variáveis.

    • Cromossomos e genes

    Pessoas com cromossomos XX são normalmente designados como mulheres ao nascer. Aqueles com cromossomos XY são normalmente designados como homens. Mas as pessoas também nascem com variações como XXY e X0. Os genes ligados ao desenvolvimento sexual também podem influenciar traços como a produção de hormônios.

    • Hormônios

    Existem vários hormônios diferentes que são produzidos naturalmente em uma variedade de níveis em pessoas de todos os gêneros e sexos. A sensibilidade aos hormônios também pode afetar o desenvolvimento da anatomia e pode causar variações anatômicas que não estão associadas às categorias binárias típicas de homem ou mulher. Há um debate na comunidade científica se os hormônios androgênicos como a testosterona são marcadores úteis de vantagem atlética.

    • Anatomia

    Algumas pessoas designadas como mulheres nascem com testículos internos; algumas pessoas designadas do sexo masculino têm um útero ao nascer. Embora muitas pessoas recebam um sexo no nascimento com base apenas na anatomia externa, existem muitas variações que ocorrem naturalmente na anatomia interna e externa.

    • Características sexuais secundárias

    Alguns traços DDS só se tornam aparentes na puberdade, quando as características sexuais secundárias, como pelos faciais, tecido mamário ou formas corporais distintas começam a se desenvolver. Algumas características são descobertas apenas ao tentar começar uma família ou por meio de testes especializados que a maioria das pessoas nunca faz.

     

    Em uma pista de atletismo em Berlim, à sombra do estádio olímpico de 1936, Negesa ainda está visivelmente magoada com sua experiência. Ela conta à CNN que se sentiu confusa com a descoberta de que seu corpo era diferente do que imaginava, e se sentiu impotente e completamente sem apoio enquanto sua vida se desfazia.

    “Eu ainda era um adolescente, não tive escolha porque eu tinha um amor pelo esporte, e eles sabiam todas as consequências do que faziam.” Referindo-se à IAAF, ela acrescenta: “Eles violaram meus direitos como ser humano. Eles me trataram como uma cobaia”.

    O hospital não quis comentar, alegando confidencialidade. Em um e-mail para a CNN, a World Athletics disse: “Os regulamentos de hiperandrogenismo da IAAF afirmam que o tratamento deve ser prescrito por um médico independente da IAAF e que a IAAF não está de forma alguma envolvida no processo. Sob nenhuma circunstância o atleta pode ser forçado a se submeter a qualquer tratamento específico”.

    Uma carreira acabada

    Em 2013, enquanto Negesa lutava para aceitar o que havia acontecido com ela, no vizinho Quênia, Maximila (Max) Imali estava aprendendo que o sucesso no esporte poderia acabar com uma vida de pobreza para ela e sua família.

    Ela se lembra que seu treinador do ensino médio a encorajou a treinar para a corrida de 800m, ao invés de curta distância, dizendo: “Você pode fazer com que sua família consiga um outro nível de vida”.

    “Eu só queria correr bem para poder alimentá-los”, diz Imali sobre sua família – mãe, dois irmãos e dois órfãos que ela também cuidava. “Eu estava tão motivada.”

    Maximila Imali foi impedida pela IAAF de competir por alto nível de testosterona
    A queniana Maximila Imali também foi impedida pela IAAF de competir na prova dos 800m por causa do alto nível de testosterona no sangue
    Foto: Reprodução/olympics.com

    Em julho de 2014, Imali teve a chance de competir no Campeonato Mundial Junior nos Oregon, nos EUA. “Foi a primeira vez que participei de uma corrida tão importante. Depois disso, percebi que podia ir bem”, lembra.

    Ela se destacou nas eliminatórias, mas caiu na final do evento dos 800m. “Depois que voltei para casa, conversei com o treinador sobre como podia melhorar e o que era melhor para fazer, para que eu pudesse ter sucesso nos 800m e 1.500m”, conta.

    Mas Imali não teve essa chance. A jovem, que estava ganhando reconhecimento nacional e internacional rapidamente, também entrou na mira dos regulamentos da IAAF.

    De volta ao Quênia, a atleta recebeu uma ligação de uma autoridade do Atletismo do país, dizendo: “Maximila, eles querem que você faça o teste da IAAF”.

    Então, Imali pegou um microônibus de Eldoret para um hospital em um bairro nobre de Nairóbi e fez um exame de sangue e um teste físico.

    Coerente com o relato de Negesa, Imali diz que recebeu poucas informações sobre os procedimentos ou suas consequências. Referindo-se aos médicos do hospital, ela diz: “Eles não me disseram nada sobre o meu corpo. Depois de todos os exames, apenas colocaram os resultados no envelope. Em seguida, eles levaram o envelope para o escritório do Atletismo do Quênia”.

    Vários meses se passaram antes que Imali ouvisse de seu empresário, em um telefonema, que ela não teria permissão para competir na categoria dos 800m.

    Ele teria dito: “Max, você não pode correr porque tem um alto nível de testosterona no sangue”. Ele listou todas as corridas nas quais ela não poderia competir e compartilhou uma carta da IAAF explicando os regulamentos.

    Confusa com as perguntas sobre sua identidade de gênero que as avaliações levantaram, Imali foi falar com sua mãe. O que ela ouviu a tranquilizou. “Para mim, tenho criado você como uma menina desde o início, quando você nasceu, e é isso. Eu sei que você é uma menina”, a mãe disse à época.

    Mas Imali diz que ser rejeitada pela forma como Deus a fez, assim como as questões sobre seu esporte e o futuro, afetaram a saúde de sua mãe. Em setembro de 2016, Eunice Khaleha morreu.

    “Minha mãe foi internada por minha causa, por causa da pressão”, lamenta Imali, com a voz cheia de tristeza e arrependimento. “Ela morreu por minha causa. Ainda me afeta porque sempre sinto que sou a causa da morte dela.”

    “Levante a camisa e abaixe as calças”

    Muitos eventos esportivos, do atletismo à ginástica, da natação ao basquete, são divididos de acordo com uma separação binária de gêneros. Apesar do consenso médico moderno, no que diz respeito a grande parte do mundo dos esportes existem apenas duas categorias reconhecidas: homem e mulher.

    No entanto, Negesa e Imali têm (ou tinham) níveis de testosterona que os dirigentes de seus esportes consideraram altos demais para algumas competições femininas.

    A World Athletics agora tem um conjunto de regras para atletas com o que chama de diferenças de desenvolvimento sexual (DDS), exigindo que eles reduzam os níveis naturais de testosterona em seu sangue para cinco nanomoles por litro de sangue (5 nmol/L) por meio de medicação ou cirurgia se quiserem competir em certas corridas.

    As regras do World Athletics sobre testosterona

    infográfico - nível testosterona World Athletics
    Foto: CNN

    Em 2019, a World Athletics (antiga IAAF) proibiu algumas atletas de competir em corridas internacionais de meia distância feminina, a menos que usassem intervenções médicas para reduzir a testosterona que ocorria naturalmente em seus corpos. A restrição visa atletas que competem em eventos femininos e têm certas diferenças de desenvolvimento sexual (DDS).

    As faixas de testosterona que a organização considera “normais” para homens varia entre 7,7 nmol/L e 29,4 nmol/L. Para mulheres, essa faixa fica entre 0.06 nmol/L e 1.68 nmol/L.

    Seus “regulamentos DDS” se aplicam a atletas que competem como mulheres, mas não como homens.

    As restrições se aplicam a atletas que são “legalmente mulheres (ou intersexuais)” de acordo com os seguintes critérios:

    – Testosterona no sangue na faixa de 5,0 nmol/L ou superior;

    – “Sensibilidade de andrógeno suficiente” (ou seja, capacidade de usar testosterona);

    – Cromossomos XY e não XX;

    – Com testículos e sem ovários.

    Essas atletas precisam diminuir seus níveis de testosterona para menos de 5 nmol/L para competir.

    Para fazer isso, as atletas afetadas devem:

    – Tomar uma pílula anticoncepcional oral diariamente;

    – Receber uma injeção mensal de um bloqueador hormonal;

    – Remover os testículos por meio de cirurgia.

     

    O não cumprimento significa que os atletas com DDS não podem competir em eventos como as corridas de 400m ou 800m organizadas pela World Athletics.

    O caso mais conhecido entre os atletas afetados pelos regulamentos DDS é o da corredora sul-africana e campeã olímpica Caster Semenya, que travou uma longa batalha legal para poder competir no evento de 800m que está atualmente no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

    Depois que seus advogados entraram com o processo no tribunal em 25 de fevereiro, Semenya tuitou: “É uma luta que não diz respeito só ao meu caso, e sim ao de assumir uma posição e lutar pela dignidade, igualdade e os direitos humanos das mulheres no esporte”.

    A disputa de Semenya com a World Athletics dura mais de uma década, mas a luta para competir em igualdade de condições remonta a quase um século.

    Depois de muita oposição – o fundador do movimento olímpico moderno, o barão Pierre de Coubertin, era contra a inclusão das mulheres nos Jogos –, a participação das mulheres no esporte começou a crescer no início do século 20.

    À medida que a competição na categoria feminina se intensificou, os corpos dos atletas – e em particular, os das esportistas de sucesso – foram investigados.

    Campeã olímpica Caster Semenya é caso mais conhecido sobre regulamentos DDS
    Caso da corredora sul-africana e campeã olímpica Caster Semenya é o mais conhecido entre atletas afetados pelos regulamentos DDS
    Foto: Philippe Wojazer – 11.jun.2019/Reuters

    Uma história de testes de sexo no atletismo feminino

    • Anos 1930

    Curiosidade do público

    O escrutínio dos corpos das mulheres passou a ser público pelo menos desde os anos 1930, quando o atletismo feminino ganhou maior visibilidade. Antes da Olimpíada de Berlim de 1936, o ex-presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI), Avery Brundage, defendeu exames médicos sistemáticos para atletas que competiam em eventos femininos.

    Nos Jogos de 1936, a medalhista de ouro dos 100m Helen Stephens foi acusada de ser um homem. A corredora norte-americana passou pelo primeiro teste de sexo feito em um evento. Ela é retratada aqui (à esquerda) com a polonesa Stella Walsh, medalhista de prata dos 100m.

    • Anos 1960

    “Desfile de nudez”

    Os primeiros testes sexuais sistemáticos ocorreram no Campeonato Europeu de Atletismo de 1966, em Budapeste. As mulheres foram submetidas a um exame visual dos órgãos genitais e características sexuais secundárias, realizado por um painel de três médicas. Os exames são chamados de “desfiles de nudez”.

    “Você tinha que entrar, levantar a camisa e abaixar a calcinha”, disse Maren Sidler, uma lançadora americana nos Jogos Pan-americanos de 1967 em Winnipeg. “Lembro-me de uma das velocistas, uma menina minúscula e magra, balançar a cabeça para frente e para trás dizendo: ‘Bem, eu não passei. Eu não tinha o suficiente na parte de cima”.

    • 1967

    Primeira desqualificação

    A velocista polonesa Ewa Klobukowska, medalha de ouro olímpica, foi reprovada em um teste de sexo na Copa da Europa de 1967, em Kiev. Ela fez um teste cromossômico após um exame visual ser considerado ambíguo.

    • 1968

    Novo teste do COI

    O COI introduziu o teste corporal de Barr na Olimpíada da Cidade do México, chamando-o de “mais simples, objetivo e mais digno”. O exame usava células coletadas do interior das bochechas dos atletas e foi criado para indicar a composição cromossômica de um atleta.

    Os especialistas médicos agora criticam o teste corporal de Barr como impreciso e prejudicial, já que não reconhece a complexidade dos fatores que determinam o sexo.

    • 1985

    Uma proibição é revertida

    A corredora espanhola María José Martínez-Patiño foi banida da competição em 1985 depois que um teste revelou um cromossomo Y. Ela foi reintegrada três anos depois, depois de provar que tinha insensibilidade androgênica completa, o que significa que seu corpo não responde à testosterona.

    • Anos 1990

    Fim do teste obrigatório

    A Associação Internacional de Federações de Atletismo (IAAF) encerrou os testes sexuais obrigatórios em 1992 e o COI abandonou os exames em 1999, mas eles continuaram a conduzir avaliações médicas caso a caso.

    • 2009

    Agitação e triunfo de Semenya na pista

    A atleta da África do Sul Semenya venceu os 800m no Campeonato Mundial em Berlim em 1:55.45. Depois disso, a IAAF exigiu que Semenya se submetesse a um “processo de verificação de gênero”. O ANC – partido governante da África do Sul – chamou os testes de “sexistas e racistas”.

    • 2011

    Uma mudança para testosterona

    A IAAF divulgou novos regulamentos declarando que uma atleta só poderia competir em eventos femininos se seus níveis de testosterona estivessem abaixo de 10 nmol/L, a menos que ela tivesse “resistência aos andrógenos”.

    • 2015

    Regras suspensas após decisão do tribunal

    As regras foram suspensas por dois anos pelo Tribunal Arbitral do Esporte (CAS, na sigla em inglês) após uma contestação legal da velocista indiana Dutee Chand, que havia sido banida da competição por causa de seus níveis naturalmente altos de testosterona. O CAS citou a falta de evidências sobre a relação entre os níveis de testosterona e a melhora do desempenho esportivo em mulheres.

    Em 2015, regras sobre testosterona foram suspensas pelo CAS
    Em 2015, regras sobre testosterona foram suspensas pelo Tribunal Arbitral do Esporte (CAS) após contestação legal da velocista indiana Dutee Chand
    Foto: Darren Whiteside – 26.ago.2018/Reuters

    • 2016

    Atletas com DDS se destacam no Rio

    Livre para competir após a decisão do CAS em 2015, Semenya conquistou o ouro nos 800m nos Jogos do Rio em 1:55.28. Francine Niyonsaba, do Burundi, e Margaret Wambui, do Quênia – que também seria afetada por regras posteriores sobre os níveis naturais de testosterona – levaram para casa a prata e o bronze.

    • 2019

    Regulamentações de testosterona restabelecidas

    A World Athletics, anteriormente IAAF, introduziu novos regulamentos para corridas de meia distância de 400m a uma milha: mulheres com “sensibilidade androgênica suficiente” e níveis de testosterona de 5 nmol/L e acima devem reduzir seus níveis por meio de medicamentos ou cirurgia.

    Semenya apelou dos regulamentos ao CAS – e perdeu em um caso histórico. Para atender aos padrões atuais do Atletismo Mundial, ela terá que reduzir seus níveis de testosterona se quiser correr os 800m novamente.

    A atenção não veio exclusivamente dos órgãos esportivos. Ao longo de décadas, comentaristas esportivos ajudaram a divulgar uma visão limitada do que significa ser (e parecer) uma mulher.

    Três dias após a abertura das Olimpíadas de Roma em 1960, William Barry Furlong, escreveu para o “The New York Times” um artigo intitulado “Vênus não era uma lançadora de peso”, no qual ele refletiu: “Mais e mais pessoas do sexo feminino estão competindo nos esportes, levantando uma questão profunda: será que os homens podem se passar por meninas atléticas?”

    Como cirurgias de “normalização de gênero” ficaram mais comuns no Norte Global, e mais atletas do Sul Global passaram a dominar os eventos de atletismo, nomes como Dutee Chand, Maximila Imali, Annet Negesa e Caster Semenya, entre outras, chegaram aos holofotes da mídia e sob o olhar atento da associação mundial.

    “A World Athletics quer reconhecer as pessoas da maneira que elas se identificam”, disse o advogado da World Athletics, Jonathan Taylor, à CNN. “O problema é que, no campo esportivo, já estabelecemos que deve haver uma distinção entre a competição masculina e feminina para promover a justiça e a igualdade”.

    Ele continua: “Uma vez decidido que, depois de traçar uma linha, é preciso classificar as pessoas, isso significa decidir por que a linha é traçada”.

    Taylor acha que a World Athletics vive um dilema: precisa avaliar uma questão que preferia não ter que fazer, mas deve, a fim de tirar a “vantagem enorme e insuperável que é conferida por esses níveis mais altos de testosterona” em eventos como os 400m, corridas com barreiras de 800m, 1500m e 400m, competições mundiais de atletismo classificadas como “eventos restritos” em 2019.

    “Se você tem alguém com identidade de gênero feminina, mas testículos XY e níveis masculinos de testosterona, precisa decidir o que fazer. Alguém poderia dizer: ‘Você não pode competir na categoria feminina’, o que a World Ahtletics não quer fazer, porque quer reconhecer a identidade de gênero. Então, em vez disso, eles dizem que é preciso reduzir a testosterona aos mesmos níveis de todas as mulheres e de todas as outras mulheres na categoria”, detalhou.

    Ao contrário da afirmação de Taylor, “todas as mulheres” na categoria não têm o mesmo nível de testosterona.

    Pelas regras da World Athletics, um atleta com síndrome do ovário policístico, por exemplo, pode competir apesar de ter testosterona alta porque tem cromossomos XX e nenhum testículo. Atletas com altos níveis de testosterona cujos corpos não respondem ao hormônio também podem competir nas categorias restritas.

    E assim a World Athletics, ao guardar obstinadamente a linha que traçou, se posicionou como um árbitro do que significa ser uma mulher no esporte. Taylor diz que tudo foi feito “para promover a justiça e a igualdade”. Mas as regras são baseadas em pesquisas científicas fortemente contestadas.

    Testosterona x desempenho atlético

    “Há boas evidências de que o volume muscular aumenta com o aumento da dosagem de testosterona”, contou o médico endocrinologista Sonksen, que já manifestou seu apoio a Semenya. Mas ele acrescenta que a relação entre o nível de testosterona no sangue e o desempenho permanece “complexa e controversa”.

    “Medir o nível de testosterona no sangue dá alguma indicação da quantidade que é produzida e a testosterona aumenta a proteína, portanto a síntese muscular, mas a ação [do hormônio] é regulada também por outros fatores”, explica ele.

    “A World Athletics está tentando refinar cada vez mais, à medida que as políticas são examinadas. Mas a ciência ainda é muito contestada”, afirma Katrina Karkazis, antropóloga e coautora de “Testosterone: An Unauthorized Biography” (“Testosterona, uma biografia não autorizada”, sem edição no Brasil), um livro de 2019 que busca desmascarar alguns dos mitos em torno do hormônio.

    Quando se trata de desempenho esportivo, Karkazis e sua coautora, Rebecca M. Jordan-Young, escrevem sobre estudos que ligaram a alta testosterona natural à velocidade e potência, estudos que não encontraram nenhuma ligação e ainda outros que mostram que o contrário é verdadeiro: a alta da testosterona leva a um pior desempenho.

    Karkazis disse à CNN que a falta de evidências conclusivas não impediu a World Athletics de formar suas políticas. Ela cita, a título de exemplo, uma decisão do Tribunal Arbitral do Esporte (CAS) que afirma que nas corridas de 1500m e 1 milha, a evidência de vantagem atlética significativa “poderia ser descrita como esparsa”. O CAS recomendou que “a IAAF pode considerar o adiamento da aplicação dos regulamentos DDS a esses eventos até que mais evidências estejam disponíveis”.

    “Mesmo quando as evidências não estavam lá, eles decidiram incluí-las e regulamentá-las de qualquer maneira”, conta Karkazis.

    Não apenas esses regulamentos – introduzidos e aplicados sem consenso por toda a comunidade científica – são considerados bons para os jogos. Para Taylor, falando pela World Athletics, eles também são bons para atletas com DDS.

    “Não estamos impedindo as pessoas de competir”, declarou o advogado. “Estamos tentando facilitar a competição” e “um dos benefícios dos regulamentos é que você identifica, diagnostica e trata também as condições de DDS”.

    Mas há cada vez mais resistência aberta de partes da comunidade médica, dos pais e das próprias pessoas intersexuais, dizendo que ser intersexual não é um “problema” médico a ser “resolvido” mais do que nascer homem ou mulher.

    A luta por aceitação continua

    Na última Olimpíada, os Jogos do Rio 2016, Caster Semenya, Francine Niyonsaba (do Burundi) e Margaret Wambui (do Quênia) conquistaram as medalhas de ouro, prata e bronze, respectivamente, nos 800m.

    Este ano, em Tóquio, nenhuma dessas mulheres competirá nessa categoria: todas as três foram impactadas, dizem, pelas regras da World Athletics que regulam a testosterona em mulheres. Em sua busca pela Justiça, atletas e ativistas afetadas dizem que a associação foi profundamente injusta.

    Falando à CNN de Londres, a defensora dos direitos dos atletas e acadêmicos Payoshni Mitra disse: “As regras podem ser necessárias no esporte, mas elas também devem garantir a segurança dos atletas. Nenhuma regra deve levar a violações dos direitos humanos, e essas regras estão levando a violações dos direitos humanos dos atletas”.

    Para Mitra, as regras da World Athletics não são apenas sexistas: também são racistas. “Parece claramente uma política racista. Temos corpos de mulheres do Sul Global – mulheres não brancas – no esporte. Seus corpos são cada vez mais examinados. É um fato que eles não podem negar.”

    Taylor nega, contrapondo: “O que estamos tentando fazer é garantir condições equitativas para todas as mulheres, de qualquer cor, para que todas possam ter a excelência como meta”.

    O governo sul-africano não via da mesma forma. O então Ministro dos Esportes, Tokozile Xasa, saiu em apoio a Semenya depois de o World Athletics propor novos regulamentos em 2019. “Os corpos das mulheres, seu bem-estar, sua capacidade de ganhar a vida, sua própria identidade, sua privacidade e senso de segurança e pertencimento no mundo, estão sendo questionados.”

    E assim, da perspectiva da defensora Mitra, é difícil entender o foco “inflexível” da World Athletics nos regulamentos DDS quando já houve tanto sofrimento, tanto em jogo para os atletas individuais, tanto a perder e muito mais para o mundo do esporte para abordar.

    “Por que eles são tão inflexíveis sobre esses regulamentos é realmente difícil de entender, visto que existem tantos outros problemas no esporte. O doping é um grande problema no atletismo. Se você olhar para as questões relativas à segurança das mulheres, assédio e abuso sexual, essas são questões tão importantes no esporte hoje… [Os líderes da World Athletics] querem apenas que essas pessoas saiam. Eles querem apenas uma noção purificada da categoria feminina sem nenhuma dessas atletas. O que a World Athletics tende a esquecer é que os atletas são, afinal, humanos.”

    O que essas atletas dizem que querem mais do que tudo é fazer o que amam, sem escrutínio ou restrição especial. Elas querem ser iguais.

    Imali, que está em casa no Quênia e continua treinando para as corridas de 100m e 200m, está decidida: “Deus queria que eu fosse como sou”.

    Já Negesa voltou às pistas depois de quase uma década e se permite sonhar mais uma vez com a glória olímpica: “Só rezo a Deus para que continue fazendo melhorias a cada dia para que possa realizar meu sonho. Ele foi tirado de mim em 2012… Não quero perder de novo”.

    (Texto traduzido; leia o original em inglês)

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