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    Biles e os ‘twisties’: Como o medo afeta a saúde mental e segurança das ginastas

    Os 'twisties' são um fenômeno misterioso: de repente, uma ginasta não é mais capaz de fazer um movimento que já havia feito milhares de vezes antes

    A ginasta americana Simone Biles, favorita ao ouro em todas as categorias de ginástica artística, escolheu deixar de competir no geral por equipes para preservar sua saúde mental
    A ginasta americana Simone Biles, favorita ao ouro em todas as categorias de ginástica artística, escolheu deixar de competir no geral por equipes para preservar sua saúde mental Foto: Tom Weller/Getty Images

    Elle Reeve, da CNN

    Você pode aprender muito sobre uma subcultura pelas gírias que ela desenvolve. A ginástica, por exemplo, tem um monte de gírias em torno do medo.

    A ginástica é obviamente exigente fisicamente, e tem uma alta taxa de lesões, mas também é extremamente difícil psicologicamente. Muitos dos movimentos podem até mesmo matar um atleta. 

    Para cada movimento perfeito e flutuante realizado em uma competição, existem milhares feitos na prática, muitos deles terminando com quedas e “quase acidentes” assustadores.

    Quando Simone Biles deixou a maior parte da final da equipe olímpica nas Olimpíadas de 2020 nesta semana, ela disse que não foi por causa de uma lesão física, mas sim de sua saúde mental.

    Isso não significa que ela se sentiu triste ou não teve coragem de competir. Isso significa que seu estado psicológico a coloca em risco físico significativo. Se seu cérebro não acompanhasse o que seu corpo sabe fazer, ela poderia se ferir gravemente.

    Simone Biles, dos EUA, teve dificuldade no salto durante final por equipe
    Foto: Jamie Squire – 27.jul.2021/Getty Images

    Saúde mental

    O salto foi a primeira prova dos Estados Unidos e da Rússia nas finais por equipes em Tóquio. Biles deveria competir com um movimento chamado Amanar — um salto giratório com 2,5 voltas. 

    O Amanar tem gerado lesões em joelhos de atletas, mas Biles tem competido com este tipo de salto de forma espetacular desde que tinha 16 anos e usava aparelho ortodôntico em 2013. Em Tóquio, porém, durante a prova, ela executou apenas uma volta e meia após o salto e, com pouca altura, precisou forçar um passo profundo na aterrizagem, perdendo um pouco o passo.

    Um Yurchenko, com uma volta e meia, vale muito menos do que um Amanar, então Biles marcou 13,766 na competição. Os Estados Unidos ficaram um ponto atrás da Rússia depois do salto, que normalmente é onde os americanos garantem uma grande vantagem, e isso tornou a possibilidade de ganhar o ouro muito baixa, não importando quão bem as companheiras de equipe de Biles tivessem se recuperado.

    A campeã olímpica Simone Biles também treinou nesta quinta-feira em Tóquio
    Foto: Ashley Landis/AP

    Depois do episódio, Biles retirou-se do resto da competição por equipes. “Simplesmente não confio tanto em mim como antes”, disse Biles a repórteres em Tóquio. “Fico um pouco mais nervosa quando faço ginástica. Sinto que também não estou me divertindo tanto.”

    Biles mais tarde também se retirou da competição individual geral, novamente dizendo que queria se concentrar em sua saúde mental.

    Um caso de ‘twisties’

    A jornalistas, Biles disse que tinha um pouco de “twisties”, uma gíria em inglês — sem tradução em português — usada pelas ginastas americanas para explicar uma espécie de bloqueio mental ou perda da consciência plena do espaço e do movimento durante sua execução.

    Os “twisties” são um fenômeno misterioso — de repente, uma ginasta não é mais capaz de fazer um movimento que já havia feito milhares de vezes antes. O corpo simplesmente não coopera, o cérebro perde a noção de onde está no ar e a atleta só descobre onde está o chão quando bate nele.

    A ginasta suíça Giulia Steingruber afirmou que teve este tipo de bloqueio em 2014. “Quando eu queria girar, especialmente no salto, não tinha a sensação de onde estava. Fiquei realmente com medo”, disse Steingruber em um documentário de 2016. “Foi muito difícil para mim, porque não entendi por que isso aconteceu e não pude evitar. Foi simplesmente estranho para mim e foi horrível. A sensação era realmente horrível.”

    Simone Biles (de máscara) ao lado das outras ginastas dos EUA nas Olimpíadas
    Foto: Gregory Bull – 27.jul.2021/AP

    Recomeço

    Ela teve que reaprender os movimentos, começando com uma simples meia rotação no chão. “Comecei a aprender o giro novamente como uma criança pequena.” Em 2016, ela ganhou a medalha de bronze olímpica no salto.

    Virar e girar ao mesmo tempo pode ser extremamente desorientador — você não pode apenas observar onde está com os olhos, mas tem que sentir isso. Isso é propriocepção, uma sensação de onde seu corpo está no espaço e o que está fazendo.

    Na ginástica, isso é chamado de “sensação do ar”, e Biles é famosa por quão boa é nisso. “Ela sempre teve um senso de ar incrível, que é o que você precisa neste esporte”, disse seu ex-técnico Aimee Boorman à revista Houstonia em 2015. “Ela não cai com muita frequência. Outras crianças, você apenas os verá espatifar-se, ou se perder no ar. Isso não acontece com ela.”

    Ginasta Simone Biles, dos EUA, pratica na trave durante treino em Tóquio
    Foto: Gregory Bull – 21.jul.2021/AP

    Quando este tipo de bloqueio se instala é difícil saber quando irá embora. Mas a decisão de Biles de se proteger marca uma mudança na velha forma da ginástica nos Estados Unidos.

    “Também temos que nos concentrar em nós mesmos, porque, no final do dia, também somos humanos”, disse ela. “Então, temos que proteger nossa mente e nosso corpo, ao invés de apenas sair e fazer o que o mundo quer que façamos.”

    Pressão

    Questionada em 2016 sobre como lidar com atletas que sentem medo, a então coordenadora da seleção americana, Marta Karolyi, afirmou que, no nível da elite, o medo não é mais um problema.

    Isso, obviamente, não era verdade. Questionada pela revista New Yorker em 2016 por que ela não tentaria um salto chamado Produnova, Biles disse: “eu não estou tentando morrer”. Mas muitos ginastas de elite descreveram a pressão para nunca mostrar fraqueza sob Karolyi.

    Simone Biles, dos EUA, se apresenta na classificatória das barras assimétricas
    Foto: Morry Gash – 25.jul.2021/AP

    A ginástica mudou nos últimos anos, e isso tem ocorrido em parte graças a Biles, que tem sido tão extraordinariamente boa como atleta que o time americano teve que responder às suas reclamações. Também tem sido por causa da internet, onde pessoas ligadas à modalidade colocaram uma grande pressão sobre o comando da ginástica para que o esporte mudasse.

    “São os Jogos Olímpicos”, disse Biles à imprensa, “mas, no final do dia, é como se quiséssemos sair daqui, não ser arrastados para fora em uma maca.”

    (Este texto foi traduzido do inglês; clique aqui para ler o original)