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    Processos na justiça dos EUA expõem décadas de abusos sexuais na natação 

    José Brito, da CNN, em São Paulo

    “Tudo começou com apenas abraços, mas depois abraços mais longos. Se ele estivesse sentado em uma cadeira, ele me puxaria para ele, para que eu sentasse em seu colo. E ele esfregava minhas costas enquanto eu estava sentada em seu colo, mas não era como uma massagem ou algo que faria ajudar meu desempenho na natação, era apenas um toque desconfortável e indesejado”. 

    Em entrevista à CNN, foi dessa forma que a ex-nadadora norte-americana Debra Grodensky, hoje com 51 anos, resumiu os primeiros movimentos que, segundo ela, seriam anos de abusos sexuais que sofreu de seu ex-técnico Andrew King, com quem conviveu entre os anos 1981 e 1988. Debra lembra que, quando tinha entre 13 e 14 anos,  por conta dos torneios em outras cidades ficava constantemente viajando com King. 

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    “Se ficássemos em hotéis, então o abuso sexual ocorreria em seu quarto de hotel. Se estivéssemos nos deslocando, ele parava na lateral da estrada onde era isolado ou era algum tipo de estacionamento onde não havia pessoas por perto. E era aí que ele abusava sexualmente de mim. Muitas vezes no escritório dele, ele fechava a porta e acontecia lá ou até mesmo no carro dele, entre a piscina e a minha casa, se ele estava me levando de algum treino.”, disse. 

    O ex-treinador foi condenado a 40 anos de prisão, em janeiro de 2010, após uma série de acusações de abuso sexual infantil que aconteceram contra ela e outras garotas, desde 1978. Atualmente, King cumpre pena na Prisão Estadual de Mule Creek, na cidade de Ione, na Califórnia. Mesmo com esse desfecho na Justiça, Debra explica que o trauma continua latente e lembra como foi difícil compreender o ambiente favorável que o seu ex-treinador, que chegou a pedi-la em casamento, criou para cometer os crimes contra ela. 

    O treinador Andrew King com seus alunos
    O treinador Andrew King com seus alunos, entre eles, Debra
    Foto: Arquivo pessoal

    “Ele costumava me dizer como o time ficaria com ciúmes de mim porque eu era muito jovem e, ainda assim, era rápida o suficiente para acompanhá-los. Ele falou sobre como eles ficariam com ciúmes da minha aparência. E que ele disse que eu deveria ignorar qualquer tipo de comentário que meus companheiros possam ter feito”, conta. 

    “E não era só eu que ele estava preparando. Era minha família inteira, porque ele falava com meus pais e dizia a mesma coisa para meus pais: ‘O que quer que você ouça de outras pessoas da equipe, desconsidere isso, não escute, porque eles estão apenas dizendo isso por ciúme’. E então, mesmo se alguém tivesse vindo para os meus pais, o que eventualmente eles fizeram anos depois, meus pais não acreditariam em nada do que eles estavam dizendo”, diz.

    A ex-nadadora Debra Grodensky aos 14 anos de idade
    A ex-nadadora Debra Grodensky aos 14 anos de idade
    Foto: Arquivo pessoal

    Em junho de 2019, o governador da Califórnia, Gavin Newsom, assinou uma nova lei que estendeu o tempo para entrar com um processo judicial de abusos sexuais ocorridos na infância. Antes, as vítimas tinham até os 26 anos para registrar uma ação civil ou um prazo de três anos após perceberem um dano psicológico ou doença causado pelo abuso. Agora, são 40 anos de limitação de idade e também cinco anos para a descoberta atrasada.

    Essa mudança encorajou, em junho deste ano, Debra e mais cinco sobreviventes de treinadores-predadores sexuais a moverem processos na Justiça contra a USA Swimming — o órgão regulador nacional do esporte da natação nos EUA – e assinarem uma carta aberta enviada a Tim Hinchey, o presidente da organização.

    “Tendo estado profundamente envolvido no tratamento de reivindicações de abuso sexual contra o USA Swimming por mais de uma década, está claro, para nós, que ainda existe uma cultura profundamente enraizada em sua organização que tolera o comportamento sexual criminoso de treinadores para seus atletas menores de idade”, escreveu o advogado Robert Allard, que defende as ex-nadadoras e está à frente de um escritório especializado em ajudar vítimas de abuso sexual. 

    Paras elas, a USA Swimming não só tinha conhecimento dos crimes como acobertou o comportamento predatórios de seus membros e isso seria a raiz dessa epidemia. Ele pede o banimento permanente de oito pessoas por serem predadores sexuais ou por contribuírem para a omissão e perpetuação da exposição de nadadores a abusos e assédio sexual.  

    Allard disse à CNN que se não retirarem as “maçãs ruins” entre os membros da organização, você não pode seguir em frente para fazer mudanças. “Isso remonta pelo menos ao início dos anos 1970. Eu ouço história após história, principalmente de nadadoras. Ouvi três novos casos envolvendo Don King, que molestou várias mulheres, tanto no Havaí quanto na Califórnia, e o padrão é exatamente o mesmo. Você tem predadores tendo acesso às crianças, eles cuidam delas, eles mantêm o fascínio da glória olímpica sobre suas cabeças, eles tocam as crianças progressivamente, eles ganham sua confiança e eventualmente fazem o que eles querem que é molestar crianças”, explica. 

    Em nota enviada por e-mail, a USA Swimming respondeu que os infratores mencionados nos processos da Califórnia estão há muito tempo na lista de indivíduos permanentemente suspensos ou inelegíveis para associação do USA Swimming devido às alegações de má conduta, nas décadas de 1980 e 1990, e o U.S. Center for SafeSport reconheceu e honrou as proibições. 

    “Estamos cientes das informações divulgadas publicamente hoje na Califórnia. Apoiamos totalmente sobreviventes de abuso sexual ao longo de sua jornada de cura. O programa Safe Sport do USA Swimming continua a trabalhar com proeminentes especialistas em saúde e educação para fornecer recursos significativos aos membros e financiamento do SwimAssist para aqueles que precisam. A organização e sua liderança atual permanecem comprometidas em fornecer um ambiente seguro e uma cultura positiva para todos os seus membros”, dizem.

    Jancy Thompson
    Jancy Thompson e o seu ex-técnico Norm Havercroft
    Foto: Arquivo pessoal

    A defensora de vítimas de abusos sexuais e assistente legal do escritório de Allard, Jancy Thompson, de 38 anos, tem lugar de fala sobre uma cultura de predadores na natação do EUA. Ela também é uma ex-nadadora com potencial olímpico que teve depressão e se afastou das piscinas da cidade de Saratoga, no estado da Califórnia, após, segundo Jancy, ter sido molestada pelo seu técnico desde que ela tinha 15 anos. Norm Havercroft nunca foi condenado, apesar das acusações. Ele não foi localizado pela reportagem para dar a sua versão das acusações que sofre.   

    “O aliciamento começou quando eu tinha 11 anos, e no segundo que você entrava no deque da piscina, ele era controlador, manipulador e era do jeito dele ou não. Ele dizia para a minha mãe e eu: ‘Se você quiser ir às Olimpíadas, é isso que você precisa fazer. Eu vou te dar a receita, você segue os ingredientes, não questione nada e faça o que for falado e eu te levo lá’. E esse era um sonho meu era ser uma atleta olímpico um dia e eu teria feito qualquer coisa para chegar lá e minha família também. E, imediatamente, como eu disse, o aliciamento começou. As massagens, o toque inadequado do cabelo e gritando e gritando na piscina. Eu confiava nele como confiava em meu pai e minha família fazia o mesmo”, diz. 

    Em 2010, ela entrou na Justiça norte-americana com uma ação civil contra Hovercraft e a USA Swimming para exigir mudanças nas políticas da organização de natação. “Parei de nadar, apenas para tirá-lo da minha vida, para que eu pudesse respirar novamente. Porque era tão traumatizante apenas entrar na água e isso simplesmente consumiu tudo. Então eu tive que desistir de tudo para poder sobreviver e começar de novo”, lembra.

    Congresso cobrou investigações do FBI

    Em 9 de julho de 2014, o então deputado democrata pelo estado da Califórnia e membro da Comissão de Educação e Força de Trabalho da Câmara dos Representantes dos EUA, George Miller, enviou uma carta de 11 páginas ao então diretor do FBI, James B. Comey, pedindo que a agência investigasse como a USA Swimming tratou denúncias de abusos sexuais infantis de seus alunos-atletas. Após cerca de quatro décadas como congressista e faltando seis meses para se aposentar, Miller e sua equipe prepararam um verdadeiro dossiê, resultado de várias entrevistas sobre abuso infantil e negligência pelo órgão governamental esportivo. 

    “Como resultado da investigação da minha equipe, tornou-se claro que o abuso sexual infantil e a má conduta sexual têm atormentado o USA Swimming desde seu início em 1980. Desde então, o USA Swimming baniu mais de 80 treinadores e outras afiliadas por abuso sexual infantil e outros atos sexuais má conduta. No entanto, a maioria desses predadores sexuais foi banida apenas nos últimos cinco anos, apesar do fato de que alguns deles se envolveram em abusos sexuais por décadas.”, descreve George.

    Miller lembra que, em 2014, o Diretor Executivo da USA Swimming, Chuck Wielgus, pediu desculpas às vítimas de abuso sexual dizendo que ele poderia ter feito mais durante sua gestão. “Voltando no tempo, gostaria de saber muito antes de 2010 o que sei hoje. Gostaria que meus olhos estivessem mais abertos para as histórias individuais dos horrores do abuso sexual. Eu gostaria de ter sabido mais. talvez eu pudesse ter feito mais. Não posso desfazer o passado. Sinto muito, sinto muito” disse Wielgus no blog da organização, que hoje está com o post fora do ar. 

    “Para minha preocupação, os especialistas comissionados do USA Swimming afirmaram que a entidade mantém ‘uma série de arquivos de ‘vítimas não conformes’, nos quais um sobrevivente deu uma declaração clara de abuso, mas não quer ou não pode testemunhar’. Nesses casos, embora queixas confiáveis tenham sido feitas sobre abusos sexuais e outros, sem o testemunho direto da vítima ou outras evidências contundentes (por exemplo, acusações criminais contra o treinador abusador), a USA Swimming pode não tomar uma ação decisiva. De acordo com o especialista contratado pelo USA Swimming, ‘essas dinâmicas podem resultar em um treinador ofensivo tendo acesso contínuo às crianças’”, revela o congressista.

    A preocupação de Miller sobre deixar crianças expostas a danos futuros o fez citar um caso de novembro de 2011, quando uma mulher do Alasca informou ao USA Swimming por escrito uma denúncia que detalhava o abuso sexual de seu ex-marido, um técnico da USA Swimming, em Idaho. Ele diz que essa foi a última reclamação de uma série, visto que a organização já havia recebido reclamações sobre a alegada conduta sexual imprópria do técnico envolvendo menores, na cidade de Montana, em 2009. 

    “A reclamação da mulher do Alasca envolvia o abuso de uma menina de 15 anos. A mulher também forneceu à equipe do USA Swimming Safe Sport e seu investigador um documento escrito da vítima que detalhava o abuso. Após nove meses sem uma resposta, apesar da insistência adicional da mulher do Alasca, o USA Swimming acabou declarando que o caso havia sido revisado e encerrado. O USA Swimming determinou que nenhuma ação poderia ser tomada porque o treinador não era um membro atual da organização. Depois que a mulher corrigiu o USA Swimming, alertando-o do fato de que o técnico era realmente um membro atual da organização, o USA Swimming informou à mulher do Alasca que iria investigar e apresentou um relatório à polícia. O treinador abusivo cometeu suicídio cerca de um mês depois”, diz.

    No dia 26 de agosto, o subdiretor adjunto interino da Divisão de Investigação Criminal do FBI, Maxwell D. Marker, respondeu a solicitação de uma investigação a USA Swimming. O agente disse que a Seção de Crimes Violentos contra Crianças do órgão analisou as informações fornecidas na carta para possíveis violações da lei federal. Uma reunião com a confederação de natação foi feita para discutirem as violações federais aplicáveis ??associadas a questões de exploração infantil e forneceram informações para ajudar nos esforços do USA Swimming para educar seus membros sobre a exploração sexual de crianças.

    Jack Nelson e seleção americana feminina
    Jack Nelson e seleção americana feminina
    Foto: Arquivo pessoal