“Ninguém vai sofrer sozinho”: Marília Mendonça, menina-prodígio
Pesquisadores destacam empoderamento e maturidade na superlativa obra de uma das artistas mais populares do Brasil, morta aos 26 anos
“Lembranças vêm e vão / Me aquecem sem querer / São a minha herança, o que restou de você”. Amor e saudade, sentimentos tão humanos, se confundem na letra de “Minha Herança”, escrita quando Marília Mendonça tinha apenas 12 anos de idade.
A juventude não a fez menos profunda: mulher, sertaneja, mergulhou com intimidade de veterana na alma brasileira. Precoce carreira e jornada artística, tragicamente encerrada em um acidente aéreo na tarde desta sexta-feira (5), deixando a mais dolorosa das sofrências nas mesas de solitários e infiéis.
A CNN conversou com pesquisadores e fãs para tentar dimensionar o tamanho do Universo Marília Mendonça. Universo, sim, pois se trata de um fenômeno superlativo: fez a live mais assistida do YouTube em todos os tempos, no ano passado (3,3 milhões de visualizações simultâneas); artista mais ouvida do Brasil no Spotify nos últimos dois anos; vencedora de Grammy Latino; 38,7 milhões de seguidores no Instagram e uma legião de fãs que lotaram praças de surpresa, mulheres que se empoderaram e muitas histórias de amor (ou não) embaladas pela jovem goiana.
A primeira entrevista da cantora, quando ela passou de compositora para intérprete, foi ao blogueiro Marcus Bernardes (conhecido como Marcão Blognejo) que mantém um dos principais portais sobre o sertanejo na internet. É ele quem lembra que “Minha Herança”, composta quando ela tinha apenas 12 anos, foi a primeira canção gravada por outra dupla sertaneja. “O mais impressionante sempre foi a maturidade, você vê essa música de amor, saudade, feita por uma criança. E a partir daí ela foi falar a linguagem do povo, com temas do cotidiano: infidelidade, bebida, noitada. Sempre com muita maturidade”, relata Marcão à CNN.
Um cometa na história da música brasileira e que dialoga com as antecessoras. A pesquisadora Chris Fuscaldo, que defendeu no ano passado uma tese de doutorado em Literatura sobre a trajetória de mulheres compositoras, identifica em Marília Mendonça a continuidade da obra de Roberta Miranda, a Rainha do Sertanejo. “Ela rompeu barreiras, e assim como a Marília, foi gravada primeiro por cantores masculinos”, lembra Chris, que diz ser uma “lenda” a ideia de que o Brasil é um país de cantoras. “As mulheres são menos de 8% das arrecadadoras de direitos autorais. Não somos um país de cantoras”, destaca.
Em um mercado dominado por homens, Marília se agigantou. Fez sucesso, fortuna e subverteu a lógica predominantemente masculina da música brasileira: no lugar do homem que sofre, se separa, bebe, trai, ama e desama, deu vez aos sentimentos delas. “A obra da Marília dialoga com mulheres que não tinham com quem dialogar. Ela rasga o verbo falando o que muita mulher tinha vontade de dizer”, frisa Chris Fuscaldo.
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Todos os cantos
O empoderamento das mulheres ressaltado pela pesquisadora se traduz em um movimento musical — “feminejo” — para definir a geração de intérpretes mulheres de música sertaneja. Marcão Blognejo, no entanto, discorda do termo. “Acho que reduz um pouco o que elas fizeram. São profissionais mulheres que compunham para homens antes de se tornarem intérpretes. É muito mais que só cantar”, assevera ele, listando Matheus e Kauan, Wesley Safadão e Cristiano Araújo como alguns dos cantores de seu sucesso.
Milton Nascimento e Fernando Brant cantaram que “todo artista tem que ir aonde o povo está”. E até isso Marília Mendonça subverteu: sem avisar, foi em várias capitais do país com shows gratuitos, que levaram milhares às praças das cidades, para lançar músicas novas. O projeto, de 2018, impressionou o pesquisador musical Lucas Prata Fortes. “Esse projeto literalmente a levou para todos os cantos do país. Ela foi uma cantora trabalhada desde as categorias de base, de criança, e cantou o amor e suas dores com muito conhecimento de causa”, sublinha.
Múltipla e intensa, Marília Mendonça deixou um filho, ainda bebê. Certamente ele ouvirá muitas histórias da mãe, dentre elas a que lembrará que Caetano Veloso lhe fizera uma homenagem numa canção lançada poucos dias antes do acidente. “Acho que nem posso acreditar”, escreveu o baiano no Twitter, horas depois da morte.
Ninguém pode, Caetano, e “ninguém vai sofrer sozinho”, como cantou a Marília por todos os cantos do Brasil: “todo mundo vai sofrer”.
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