“Nenhum escritor pode dizer que está ausente da intenção de mudar o mundo”, diz Mia Couto
Em São Paulo para participar d’A Feira do Livro, o escritor moçambicano falou à CNN sobre o novo livro que está produzindo, a vontade de contar histórias e a MPB como fonte de inspiração
No Brasil como um dos principais convidados da primeira edição d’A Feira do Livro, que começa nesta quarta-feira (8) na Praça Charles Miller, em São Paulo, o moçambicano Mia Couto conta que chegou por aqui pela primeira vez em 1987.
Era um jovem autor, parte de uma delegação de escritores de todos os países africanos de língua portuguesa, e passou por várias cidades e estados, conheceu Gilberto Gil e achou tudo por aqui “encantatório”.
Na viagem, ele confirmou “a existência de um país que já amava antes mesmo de poder tocar, porque existia apenas na forma de poesia, de canções, de cultura.” Mia fala que tem Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Hilda Hilst e Manoel de Barros como os “grandes mestres” da sua trajetória.
Filho de portugueses exilados na África, Couto cresceu em um país que passou por mais de duas décadas de guerras, um tema constante em sua obra. Foi vencedor do Prêmio Camões em 2013, considerado a premiação mais importante da língua portuguesa, e conta nesta entrevista que gostaria de poder contar todas as histórias que existem em Moçambique.
Seu primeiro romance, “Terra Sonâmbula”, publicado em 1992, foi eleito um dos doze melhores livros da literatura africana do século 20 na Feira Internacional do Livro do Zimbábue, e o escritor aparece frequentemente entre as obras cobradas por vestibulares brasileiros.
Antes de escrever, estudou medicina durante um breve período, mas abandonou o curso para se juntar à Frente de Libertação de Moçambique. O movimento lutou pela independência do país em relação a Portugal, conquistada apenas em 1975, e ele, mesmo que não faça mais parte de nenhuma organização, ainda carrega consigo “a intenção de mudar o mundo”.
Nesta conversa com a CNN, Mia Couto fala sobre o novo livro que está produzindo, a diferença de eventos literários no Brasil e em Moçambique e a vontade de se comunicar com o outro.
As histórias têm sempre a ver com as pessoas, com a capacidade de inventarmos o nosso tempo e sermos os donos dos nossos sonhos.
Mia Couto, escritor
CNN: Mais uma vez você vem ao Brasil. Quando foi a primeira vez que veio ao país? Lembra qual foi sua primeira impressão?
Mia Couto: Vim pela primeira vez em 1987. Fazia parte de uma delegação de escritores de todos os países africanos de língua portuguesa. Estivemos aqui percorrendo vários cidades em inúmeros estados. Naquela altura, em Salvador, o secretário de Cultura da cidade era Gilberto Gil e eu tive meu primeiro encontro com ele, uma coisa encantatória. Nesta viagem, confirmei a existência de um país que já amava antes mesmo de poder tocar, porque existia apenas na forma de poesia, de canções, de cultura.
Você está em São Paulo agora para a Feira do Livro, com a proposta de falar sobre os livros em praça pública. Acha estranho a gente falar em um evento assim acontecendo só agora em São Paulo? Existem feiras do livro de rua em Moçambique?
O Brasil já tem experiências positivas muito interessantes, como a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), por exemplo. O panorama da literatura, dos livros e do conhecimento de escritores mudou profundamente no Brasil quando este tipo de feira, como a de Paraty, começou a ser mais divulgada pelo país.
Em Moçambique, existem essas feiras, mas numa dimensão muito pequena. Há feiras do livro feitas em parques públicos nas três ou quatro maiores cidades do país. São muito movimentadas, pois leva-se o livro ao lugar onde as pessoas já estão, lugares de encontro de famílias e amigos.
Como você enxerga o cenário da literatura em Moçambique hoje? Aqui no Brasil, tanto a venda de livros como o interesse das pessoas pela leitura tem caído nos últimos anos. Acredita que em Moçambique as pessoas estão lendo menos também?
É difícil de saber isso, porque Moçambique tem uma situação muito diferente do Brasil. É um país que tem 30 milhões de pessoas e devem ter umas 12 livrarias em todo o país. É um dos países mais pobres do mundo, portanto não há comparação possível.
Agora, há muito mais gente publicando, pequenas editoras estão nascendo, junto de agremiações de jovens, associações culturais etc. Há um movimento muito bonito que indica um crescimento.
Você e seus irmãos têm a Fundação Fernando Leite Couto, que leva o nome do seu pai. Quais são as ações que a fundação promove para incentivar a literatura em Moçambique?
Nós produzimos e editamos livros. Temos um prêmio literário para jovens que estão editando seu primeiro livro, aqueles que estão estreando na carreira. Temos oficinas literárias e conversas com autores. A grande questão é que ali é uma casa que produz histórias. Os autores já publicados fazem encontros com os jovens para contar a sua própria história. Esse é o grande coração da fundação.
Você era parte da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) durante o período em que o país ainda lutava pela independência. Você segue envolvido com a política, a sua literatura também é uma forma fazer política?
Eu já não sou de nenhuma organização política, faço política eu mesmo. Para mim, a política é assumir uma postura moral, é ter esse projeto de construir um mundo mais justo, mais livre, onde haja empatia e solidariedade. Isso continua presente em mim como quando comecei. Nenhum escritor pode dizer que está ausente dessa intenção de mudar o mundo.
Os seus livros costumam retratar histórias e a cultura de Moçambique, e em várias entrevistas você menciona a importância de um país conhecer a sua própria história. Qual história você quer contar agora sobre seu país?
Todas as histórias. [Risos] Quero contar todas as histórias, todas valem a pena ser pensadas e contadas. Agora, por exemplo, já comecei uma coisa, mas eu sei que essa coisa vai ser engolida, envolvida e devorada pelas outras que vêm a seguir. Mesmo assim, têm sempre a ver com as pessoas, com a capacidade de inventarmos o nosso tempo e sermos os donos dos nossos sonhos. O assunto no fundo é sempre o mesmo.
Você poderia adiantar para a gente sobre essa história que começou?
É a primeira vez que estou a dizer isso, mas a obra é sobre um soldado português junto com nove moçambicanos em um posto de fronteira no norte de Moçambique. Era 1914, Moçambique era um país colonizado, administrado por Portugal, que ainda estava neutro na Primeira Guerra Mundial. Eles estão lá há meses e não sabem o que estão a fazer, porque não há nenhum inimigo nessa altura.
Meses depois, eles veem do outro lado do rio uma canoa que traz alemães. Esse português branco pensa: “Bom, chegou um igual a mim. Vou abraçá-los.” Quando a canoa desembarca, o alemão tira uma pistola e o mata. Este é um episódio verídico. Logo depois Portugal entra na guerra.
É possível dar um palpite sobre quais histórias os livros podem contar do Brasil daqui para frente?
É claro que não consigo responder, mas o difícil no Brasil é não haver tema. Este é um país no qual eu saio às ruas e sou abordado por gente que me conta histórias como se eu fosse um familiar. Quando venho ao Brasil, nunca fico fechado no hotel. Essa vivência, que não faz fronteira entre o que é íntimo e o que é público, é uma maravilha, porque é daí que se recolhem as histórias. Existe uma troca infinita de histórias no Brasil.
Esse é um país no qual eu saio às ruas e sou abordado por gente que me conta histórias como se eu fosse um familiar. Quando venho ao Brasil, nunca fico fechado no hotel.
Mia Couto, escritor
As pessoas costumam traçar paralelos entre sua escrita e a escrita do Guimarães Rosa no Brasil. Você é inspirado por autores brasileiros?
Muito. Boa parte dos meus grandes mestres foram brasileiros. O meu pai era muito apaixonado por Manuel Bandeira. E depois Drummond. Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Hilda Hilst, Manoel de Barros. São tantos que é difícil lembrar todos.
E devo dizer uma coisa, a gente sempre pensa que a literatura é inspirada por outra literatura, mas às vezes ela é inspirada por outras coisas. Esse movimento da Música Popular Brasileira, com Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento. Todos esses me inspiraram muito a escrever também.
Você é formado em Biologia. Se define mais como escritor ou como biólogo? Acha que uma coisa tem a ver com a outra?
Acho que trabalho ali na fronteira entre essas duas disciplinas. Para mim, a biologia não é só uma ciência, é um modo de revelar o mundo. Aprendi biologia como quem aprende idiomas de vários outros seres. Quero falar com eles e quero que eles falem comigo. Quando olho uma árvore não me interessa o lado botânico, me interessa que eu tenha familiaridade com essa criatura. Agora consigo falar com aquilo que não tem voz.
Seu nome é Antônio Emílio Leite Couto, mas o apelido “Mia” surgiu ainda na infância porque você gostava de gatos, é isso mesmo? Alguém ainda te chama de Antônio?
Não, e se chamarem eu não sei quem é. [Risos] Eu inventei esse nome e acho que ali já começou uma certa ideia de que eu gostava de ser atravessado pela fronteira: onde começam os humanos e onde começam os outros.
Eu dormia e comia com os gatos, acho que pensava que era um deles. O curioso foi os meus pais aceitarem isso como uma decisão vinda de uma criança de três ou quatro anos. Criei meu próprio nome e talvez já fosse, sem eu mesmo saber, o início de uma certa ficção. Já tinha o nome do personagem, só faltava agora viver.