Atriz que contracenou com Zelensky na TV agora é refugiada em Lisboa
Victoria Mushtey estava de férias em Portugal quando a guerra começou; no início de março, ela estrearia uma peça de teatro na Ucrânia sobre a situação dos russos em Donbass
A guerra adiou os ensaios, as estreias. Transformou atores em soldados, de arma na mão em cenários de guerra.
Victoria Mushtey estava em Lisboa, de férias, quando a guerra começou. Viu-se obrigada ao papel mais duro da sua vida: de refugiada. Procura agora novos palcos que sirvam como refúgio. E guarda memórias, como as do momento em que contracenou com o homem que agora lidera a Ucrânia.
No estúdio de televisão, ele era o presidente, ela a filha de um ministro. O ator Volodymyr Zelensky, protagonista da série “O Servo do Povo”, entra em cena e na sala onde costuma reunir os seus governantes, descobre que estes foram substituídos pelos filhos, sobrinhos e afilhados.
Um desses personagens era interpretado pela atriz Victoria Mushtey, um dos seus primeiros trabalhos na televisão.
Cinco anos depois, da ficção para a realidade, Zelensky é o presidente de uma Ucrânia em guerra. E Victoria uma entre os milhões de refugiados causados pela invasão russa. Ela nunca esperou que ele assumisse o papel na vida real. “É uma espécie de situação surrealista. Sei o que vai dentro da cabeça de um ator. Há muita emoção, muita transformação interna. Mas ele agora é como uma montanha”.
Os olhos brilham ao falar do antigo parceiro de cena na série “O Servo do Povo”, um dos grandes sucessos televisivos do país. Ele a conquistou naquele momento, como agora conquista as atenções internacionais com o seu poder de oratória.
Victoria sabe que ser ator ajuda o presidente a ser bom um comunicador. “Tem a ver com a empatia, com sentir a outra pessoa. Ele sente que o nosso povo é bom”. Ele sente a cena.
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A peça sobre outra guerra que a guerra não deixou estrear
Victoria Mushtey chegou a Lisboa três dias antes da guerra começar para passar alguns dias de férias com o marido. A mala, pequena, levava aquilo com que teve de começar uma nova vida. Voltar a Kiev, no imediato, não era possível. E a capital portuguesa serviu “como o abraço de um melhor amigo”, no momento mais difícil.
Eram uns dias de descanso, antes da estreia da nova peça, “Força de Pelotão”, sobre a guerra em Donbass. “Meu papel era de atiradora furtiva. A estreia desta peça seria no início de março. Agora, parte da nossa equipe de atores está defendendo o país na vida real, com armas nas mãos”.
Desde o primeiro minuto, Victoria tem pensado em como seria a sua vida se estivesse na Ucrânia no dia 24 de fevereiro. “Consigo ter uma arma na minha mão, porque ensaiei para a peça. Talvez tentasse estar no exército”. Vestiria a personagem, pois teve muitas horas de treino e filmes assistidos para que tudo saísse bem no palco.
“Força de Pelotão”, do dramaturgo ucraniano Dmytro Korchynsky, é uma das peças que mais gosta. “Tem pensamentos importantes sobre a Ucrânia, sobre a nossa força, sobre a nossa nação”. Fala sobre a região onde a guerra já é uma realidade há muito. Foi nela, em Lugansk que Victoria nasceu.
“Na casa da minha avó havia pintura ucraniana. Eu conheço a língua ucraniana muito bem. A minha família comunicava em russo, mas isso não era um problema”. Todos sabiam (ainda sabem) bem qual é o seu país.
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“Estou em território português, mas estou na Ucrânia”
Victoria Mushtey está morando em Lisboa com o marido, que é artista gráfico, e Kiev era a cidade onde estavam construindo a vida em família. “Agora, não sei se a minha casa existe ou não”.
Victoria fala isso com uma simplicidade, como se estas palavras não fossem duras de exteriorizar. Mas ela quer voltar assim que puder. E se a casa não estiver lá? “Agora entendo que é apenas uma casa, é apenas um carro. Não é importante, na verdade. Não penso nisso”. Reconstrói-se.
Porque aquilo que é verdadeiramente importante, a família, está em Portugal. O pai, a mãe, a irmã e uma tia estão morando na Guarda, porque lá encontraram um lugar disponível para acolher todos. Para trás, ficaram duas semanas de bombardeamentos na capital ucraniana. “Não conseguia dormir. Tinha de trazê-los para cá. Foram três dias até cruzarem a fronteira. Foi duro”, recorda.
A família está segura. Mas não é possível descansar quando o seu país a que chama de casa está sendo atacado. “Sinto que todos os ucranianos, toda a nação, são uma única família. A maioria dos meus amigos está na Ucrânia. Não sinto que, pela minha família estar aqui, posso estar calma. Estou em território português, mas estou na Ucrânia”.
Quando o coração está onde sempre pertenceu, só resta agir. De Lisboa, Victoria Mushtey mantém o contato diário com os amigos e com voluntários, para perceber quem mais precisa de ajuda. É como se construísse uma outra Ucrânia fora da Ucrânia.
“Espero que seja possível criar uma rede internacional de projetos de arte sobre a Ucrânia, sobre a guerra, sobre a humanidade. Porque é muito importante. Há pessoas na Ucrânia, agora, que não o conseguem fazer isso. Talvez eu consiga, com outros artistas ucranianos que estão fora do país”.
O refúgio temporário
Victoria entra na sala principal do Teatro Nacional D. Maria II para esta entrevista. A face ilumina-se. É como se a plateia, vazia, lhe devolvesse uma sensação que conhece tão bem. Adormecida, não esquecida. Ser atriz era algo que ela queria desde pequena. Aos 15 anos, começou a atuar de forma profissional.
As mãos sentem o espaço. O corpo coloca-se em posição para atuar, bem no centro do palco. Mas dói pensar em todos os teatros ucranianos que estão agora vazios, destruídos. “É uma das maiores dores, porque o teatro é algo muito pessoal para mim. É como uma igreja”. Um refúgio, em todos os sentidos.
Para este refúgio, temporário, Victoria Mushtey preparou algo. Um excerto do poema “Cáucaso”, de Taras Shevchenko, o mais conhecido poeta ucraniano.
“Continua a lutar – com certeza vencerás!
Deus ajuda-te na tua luta!
Pois a glória e a liberdade marcham contigo
E o direito está do teu lado!”